Os fantasmas do Pulador

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Os fantasmas do Pulador

Em 24/05/2012, por Miguel Augusto Guggiana


Os fantasmas do Pulador[1]

Os Fantasmas do Pulador[2]

É... O fim está chegando. O velho gaúcho, já gasto pelo tempo, curtido pelas intempéries, teve esse pressentimento naquela quarta-feira. Fez suas orações para sua santa Maria Pequena, com uma devoção muito maior do que nos outros dias, e até pensou que, talvez, o momento de falar-lhe pessoalmente estivesse próximo.

De qualquer maneira, fosse qual fosse o sentimento de epílogo, iria manter a mesma rotina de muitos anos, prazer que se lhe impusera, muito embora soubesse que no retorno levaria uma tunda de laço de sua companheira. Fazia parte do ritual. Apanhava sorrindo. As chicotadas desferidas com rabo de tatu, vara de guamirim, ou até de piaçava, tinham um significado. Fora e voltara. Abusava dos prazeres da cama, da comida, da bebida e, como todo borracho, voltava aos braços da mulher amada. E ela sabia disso.

Também, entendia como justo, chegava ao amanhecer no rancho tapado de canjebrina, com aquele cheiro inconfundível do chinaredo e sem nenhum pila na guaiaca. E por que não, então, carinho da chibata, tendo como algoz a mulher de sua vida? Não sabia dizer que prazer maior: a ida, o resfolego no puteiro, ou o afago do retorno.

Nos dias posteriores, a vida seguiria igual, ali no fundão da Estância dos Mello, onde nascera, se criara e teria seu fim. Levantava com o nascer do sol. Fazia a recorrida no campo branqueado de geada, desempenhava a lide campeira, voltava a tempo do amargo, doce com a presença dela. Sem conversa. Entendiam-se assim. À tardinha, nova campereada, e o açoite do minuano a fustigar-lhe o corpo. Volta ao calor da casa.

E isso dia após dia. Até que o próximo ano chegasse, e a cada 27 de junho nunca soubera o porquê, seria novamente sua redenção, combustível na medida para alimentar-lhe a alma e o corpo. E deixá-lo pronto para a faina que se seguiria. E isso ano após ano.

Na tardezinha, antes do pôr do sol, partiu, zaino encilhado, bons pilas na guaiaca, barba aparada, melena gominada, exalando água de cheiro pelo corpo, espingarda e arma branca à mão.

E ei-lo ali, na bailanta da Papagaia, pertinho da Raia do Toco. Corria à boca grande na comunidade libertina campeira que aquela casa de tolerância era abençoada com a presença rotineira do padre Ramos, que inclusive teria ali uma afilhada exclusiva, sem pecados, por certo.

Antes, como sempre, passara no povoado, acertara as contas com o Juca Tigre, dono da bodega, negociara uma carga de melancia, atualizara as notícias e tomara um bom trago para aquecer a alma e abrir as ideias.

Aquela noite estava sendo ímpar. Tivera, desta vez, atenção especial da dona do bordel, que lhe concedera os serviços de uma novidade, Mercedes Delatorre, castelhana, linda, sensual, que estava estagiando na casa, provinda da fronteira e que o alimentaria naquela noite.

Outra não poderia ser melhor. Fina, experiente na profissão, vinte e tantos anos na lide e, com certeza, conduziria o embate de forma que o gaúcho, já na “capa da gaita”, pensasse que tivesse tido desempenho a contento. Ah! Y aquel acento dábale algo singular. Valorizaba el entrevero por entre los pelejos.

E o destino a colocara ali, naquele momento, a oferecer-lhe a oportunidade de uma boa ação, conceder prazeres simbólicos àquele ente necessitado de afirmação  e curtir, talvez, nesta vida, pecados de uma outra.

E assim foi... Chegara a hora da volta. Aquela noite, especialmente fria e escura, madrugadita, cabaré vazio, só ele, o gaiteiro que não se dera conta do final da noite e seguia dormindo, dedilhando a sanfona encardida, gaguejando a mesma vanera preguiçosa, sem mudar, e as gurias, na varanda, protegendo-se do minuano, acompanhando a triste partida, certificando-se que o taura conseguira montar o zaino.

E ele tapado de canjebrina, seco dos pilas, com o inconfundível cheiro do chinaredo, agora especial, de uma estrangeira digna de uma despedida. Campante da vida. Como sempre, pensara, não negara fogo.

À medida que se afastava, agarrado ao pelo do parceiro, conseguira olhar para trás e perceber, ainda, os abanos de suas irmãs, e as chamas trêmulas dos candeeiros definhando. Como ele.

Pocotó... pocotó... pocotó...

Agora passaria o velho atalho até seu rancho. Chegara no limite do campo mal assombrado e como num passe de mágica o efeito da cachaça passara, e ele, inconscientemente, empertigara seu corpo franzino. Empunhava sua espingarda taquari e a faca solinger da Tramontina, tal qual um oficial farroupilha. Invocava Maria Pequena, não para protegê-lo, mas para lhe dar força para o combate, se este se lhe oferecesse, e o fim, fosse qual fosse, desde que com valentia.

E o cavalo, de matungo, assumia o porte de um árabe, digno do nobre que levava. Este não falava, mas entendia o que seu dono queria dizer. E estava pronto para tudo, inclusive oferecer-lhe seu corpo como muralha amiga, para protegê-lo.

O transcorrer daquele percurso era mágico, ambos, cavaleiro e cavalo, sestrosos, sentiam sons da artilharia metralhando seus inimigos, investidas de infantaria, homens terceando ferro, gemidos e gritos de dor e de guerra, cavalaria fustigando. Avançar! Recuar! Verdadeira batalha campal, estupidez de uma luta fratricida. Daí a posição de “em armas” assumida por cavalo e cavaleiro.

Mas o sentimento procedia. Embora não os vissem, eles estavam ali, fantasmas combatentes, republicanos e federalistas, protagonizando aquela luta feroz, e a contenda só cessava num momento, como aquele, para que Blau desfilasse, naquele palco, a 27 de junho de cada ano... E as tropas ensanguentadas, suarentas, fedidas pelo entrevero cessavam a insanidade da refrega e prestavam continência, reconhecendo um dos seus, ao som do clarim guerreiro.

E Blau, num gesto consciente, que pensara sempre como loucura assumida, não sabia para quem, nem por que tapeava o chapéu, levava a palma da mão, trêmula, à fronte, respondendo um cumprimento militar, e o cavalo, agora puro sangue, acompanhando o cerimonial, marchava solenemente por entre os espectros guerreiros.

Esses minutos necessários para percorrer aquelas poucas braças cobertas de macega, enfrentando o corte do capim cola-de-burro, serpenteando banhados e valos, circundado por mata, eram intermináveis para os vivos e os mortos.

Gracias, Maria Pequena... pensara Blau. Conseguira chegar ao fim daquela  jornada, no limite do alambrado, não que este tivesse marco, mas sim porque percebia, como sempre, os quero-queros como que o aguardando em distância que os protegesse de balas perdidas, e escoltavam, então, o gaúcho velho, agora bêbado novamente, em segurança, até seu rancho.

E tão pronto seu cavalo, agora assumindo sua condição de matungo, transpusesse as patas do limite invisível do campo de batalha, a luta insana, sanguinária, retomava toda a ferocidade, até que um vencedor [quando?] fosse definido.

O agora capitão Blau assistira tudo de cima.

Não se reconhecera. Meu Deus! Aquele corpo desminluinguido era dele.

Viu a chegada de sua companheira de manhãzinha, alertada pelo voo rasante e o palavreado dos quero-queros esganiçando um rekue etern, avisando que algo de anormal acontecera.

E a mulher, miúda, silenciosa como sempre, dobrou-se sobre o corpo inerte e frio de Blau e chorou, resignadamente.

Escoltou seu próprio féretro, caixão pobre sobre uma carroça, até o Cemitério da Cruzinha, acompanhado pela sua mulher, toda de negro, e de seu filho Aparício que viera da Estância dos Cunha, de Ponche Verde, para o infausto, e que ficaria ali com a mãe e assumiria a mesma rotina de Blau. Toda...

Mais não viu. Retirou-se ansioso para apresentar-se a seu comandante e retomar seu lugar na Batalha do Pulador, ali no campo dos Mello... Quem o aguardaria, que forças reforçaria, a que general prestaria continência? Rodrigues Lima ou Gomercindo Saraiva?

A cerimônia fora breve, poucas palavras do padre Ramos. Naquela vida, Blau nem biografia tinha. Pouca coisa a dizer.

Aparício, agarrando sua herança, espingarda e arma branca, perguntou à sua mãe, já pensando em seguir os passos de seu pai: “onde fica a venda do Juca Tigre?”. Começaria por lá.

Montou no seu cavalo, apertando-lhe levemente suas ilhargas: “vamos Pica-Pau!”, imprimindo mudança na marcha, mais acelerada, quase num trote, agora galopando, varando aquele campo tapado de capim cola-de-burro, com o vento frio a pentear-lhe as melenas, gritando Biiiuuhhhhhuuuuuuu! Chinaredo, aguarde-me.

Não pensasse ele que sua condição de galo novo ciscador seria passaporte, para incólume cruzar o atalho. Faria, sim, continência sem saber a quem, cavalo e ele sestrosos assumiriam posição “em armas” e sentiriam que algo acontecia ali, doutro mundo, clamaria, sim, pela proteção de Maria Pequena e que num futuro seria um deles. Junto ao capitão Blau ou não?

Mal sabia ele que de seu pai herdara não tão somente armas, mas também a têmpera e o destino... (GUGGIANA, Miguel A. (2014) página 55)[3]

Referências

  1. “Este conto ficcionista inspirou-se na leitura dos livros Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo e O massacre dos porongos & outras histórias gaúchas, ambos de autoria do historiador Paulo Monteiro. Foi dada relevância especial à Batalha do Pulador”.
  2. Ilustração: Leandro Doro
  3. GUGGIANA, Miguel A. (2014) Garçom, a saideira! -Passo Fundo: Projeto Passo Fundo. 100 páginas. E-book