Dois romancistas passo-fundenses

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Dois romancistas passo-fundenses

Em 31/12/2003, por Paulo Domingos da Silva Monteiro


Dois romancistas passo-fundenses

PAULO MONTEIRO[1]


Até meados do século XX, nos anos 40 e 50, encontramos apenas dois romancistas em Passo Fundo: Jurandyr Algarve, autor de um único romance, Marta (1947); e Jorge Edeth Cafruni, também com um único romance impresso, Irapuã (1955)  e Irapuã (1962).

A maioria dos escritores passo-fundenses não é de nativos, mas de pessoas que adotaram o município. É o caso de Cafruni e de Algarve. Este casou com uma passo-fundense, deixando gerações de descendentes que contribuem para a prosperidade de Passo Fundo.

Cada um deles escreveu um romance e ambos pertenceram à Academia Passo-Fundense de Letras.

Jurandyr Algarve nasceu em Laguna, Santa Catarina, no dia 13 de outubro de 1917. Veio muito moço para a Capital do Planalto, onde constituiu família, vindo a falecer a 13 de julho de 2001. Aqui, em 1947, sob o pseudônimo de Montclaire, publicou Marta (romance brasileiro). O livro não traz local de impressão, nem tipografia. Pedro Vilas-Bôas, em Notas de Bibliografia Sul-rio-grandense (Editora A Nação-SEC, Porto Alegre, 1974), afirma que o livro foi publicado em Passo Fundo, na Tipografia de Izauro Rodrigues.

Marta é um folhetim, a começar pelo pseudônimo francês do Autor. Em exatas cem páginas é narrada a vida de Marta, filha de Arlete (uma costureira) e Olegário Gomes (militar aposentado e jogador compulsivo). Premida por um complexo de inferioridade social, a jovem não aceita casar-se com Raul, o narrador, um médico. Muda-se de Curitiba para São Paulo, com a mãe. São acolhidas por uma bondosa milionária (D. Iolanda) que morre, deixando-nas na miséria. Para garantir segurança à mãe, Marta aceita casar-se com Mário, também médico, e amigo de Raul.

O casal vai passar férias em Laguna, onde Raul está residindo; ali nasce Valéria. No hospital, Marta confessa seu amor por Raul e pede para ficar com ele. O marido fIagra os dois de mãos dadas e em seguida retoma com a esposa e a menina à paulicéia. Logo partem para a Europa, onde ele vai especializar-se, antes de se descobrir um testamento da bondosa Iolanda, deixando uma fazenda em Cruz Alta para suas protegidas.

Mário retoma da Europa com o sistema nervoso completamente abalado, contando que a mulher falecera na Polônia, onde ficara sepultada.

Dezesseis anos depois, completamente mudada, Marta aparece em Vacaria, onde Raul se encontrava, contando que o marido, enciumado, a deixara abandonada na Polônia. Pede ajuda para encontrar a filha. É auxiliada e vai para São Paulo, onde assiste, à distância, o casamento de Valéria. Ninguém a reconhece.

Adoentado, Raul vai para São Paulo. Mário, que poderia salvá-lo, acaba matando o rival. Valéria encontra-se com a mãe, que leva para morar em sua casa, onde o pai já está abrigado. Marta e Mário se encontram. Ela tem uma hemoptise e morre. Mário desaparece para sempre.

O romance de Jurandyr Algarve tem todas as características do clássico folhetim: a luta entre o bem e o mal, a fatalidade, a multiplicidade de cenários (Curitiba, São Paulo, Laguna, a Fazenda Fortaleza, em Cruz Alta, Europa, Vacaria ... ), o amor infiel (ainda que platônico), o amor que tudo sacrifica (Marta e Arlete), o amor bandido, a vilania (representada em Mário) e o final vingadoramente trágico do vilão.

Apesar de ter escrito este único romance, Jurandyr Algarve deixou seu nome inscrito entre os ficcionistas da terra adotiva.

Outro passo-fundense por opção foi Jorge Edeth Cafruni, que legou uma obra mais vasta e multiforme. Poeta, historiador e romancista, nasceu em Porto Alegre, no dia 8 de agosto de 1913. Exerceu diversas profissões: mascate, auxiliar de farmácia, barbeiro, representante omercial.jornalista e bancário.

Seu romance IRAPUÃ teve duas edições. A primeira, em 1955 (Tipo-Lito-Fabril, Passo Fundo); e a segunda,em 1962 (Edições Dispal, Passo Fundo) . Foi o primeiro romance que li na minha vida, assim que aprendi a ler. Cafruni soube usar a mídia da época, especialmente o jornal O Nacional e as rádios Passo Fundo e Municipal, para divulgar seu livro. Lembro-me que, levado por essa propaganda, meu pai comprou e leu o livro que foi lido e relido por mim.

A história se passa entre 1612 e 1651, durante a ocupação francesa do Nordeste brasileiro, narrando as lutas entre os tabajaras, moradores do interior, na Chapada de Ibiapaba, na divisa do Ceará com o Piauí, e os potiguaras, indígenas litorâneos, aliados dos invasores franceses.

Irapuã era filho de Ubiratã, líder da nação tabajara. Era para chamar-se Tupàcininga, o raio, mas Juruetê, o pajé, profetizou que o menino traria grandes desgraças. Por isso, passou a chamarse Irapuã, abelha que produz mel ruim; e foi criado junto às mulheres, para não ser guerreiro.

Por esse fato, sua mãe, Aracati, era humilhada. Aos quinze anos, o filho foi mandado por ela para a tribo de seu tio Acangatu, onde aprendeu a arte de usar as armas de guerra, com seu primo Itamiri.

Mais tarde retornou a sua taba, onde continuou acompanhando as mulheres em seus trabalhos domésticos e de lavoura.

Certa feita, antes que os guerreiros conseguissem caçar uma temível canguçu, ele abateu a fera, e acabou matando o filho do cacique dos juris, uma tribo tabajara. Foi condenado à morte. Solto por sua mãe, fugiu, mas retomou trazendo como prisioneiro Ataguer, irmão de Camaragibe, o tuxaua potiguar que, com seus aliados brancos, ia atacar os tabajaras para tomar as esmeraldas que eles costumavam usar como botoques.

Voltou à aldeia com o prisioneiro, sendo julgado e absolvido. Os tabajaras foram atacados. E Ataguer foi solto pela índia Coema. Tentando matar Irapuã, que permaneceu perto das mulheres, feriu Aracati. Indignado, Irapuã empunhou o tacape e destacou-se na batalha que termina com a fuga dos atacantes.

Ferido por um tiro disparado pelo comandante francês, Ubiratan renuncia e Irapuã prepara o revide aos inimigos. Descem para o litoral reforçados por outras tribos e atacam os potiguaras e seus aliados brancos. Apaixona-se por Maniú, irmã de Camaragibe, que é orientada pelo pajé de sua nação a atraí-lo a uma emboscada. É preso e conduzido à taba litorânea. Maniú é indicada para executá-Ia, mas não consegue. Deixa cair a clava, revelando sua paixão e, incontinenti, é morta por seu próprio irmão.

Os tabajaras atacam. Na confusão, Caititi, que é apaixonada por ele, sem a devida correspondência, entra na taba inimiga e o liberta. Na fuga, para protegê-Ia, é morta. A batalha é terrível. Ao final restam vivos apenas o chefe branco e outro soldado francês, além dos tabajaras Irapuã, Japiaçu e Ubiratã. Na perseguição aos maires, o herói pára diante da rede mortuária de Maniú. É flechado pelo próprio pai indignado com a atitude do filho.

Japiaçu abate o soldado francês e é posto fora de combate pelo chefe maire. Este, mata Ubiratã e tenta fugir para uma embarcação com uma carga de esmeraldas.

Japiaçu sobrevive para contar a história, que termina assim:

"Abatinga, o estrangeiro, soltou convulsa gargalhada. Era o único Iidador, entre a infinidade de Maires, Potiguaras e Tabajaras que ainda se mantinham de pé, depois da duradoura peleja.

"Tomou, então, do fardo do outro, contido numa rede, e, com esforço, levou às costas.

"Japiaçu tinha o ombro quebrado e as suas forças esvaíam-se com o sangue que borbotava, ruidoso, do ferimento. Viu o Maire afastar-se, dobrado ao peso da carga, rum ando para a igaraçu, à margem do rio.

"Japiaçu tentou soerguer-se, mas resvalou no próprio sangue; chorou então, como se fora mulher e não guerreiro.

"Nisto, Irapuã, prostrado em terra, alçou vagaroso a fronte empoeirada.

"Seus olhos eram dois brasidos, quase extintos, que reavivavam. Os dedos tacteantes procuraram o rijo arco e a dura seta.

"Ajoelhou-se: um fio sangrento escorria-lhe do peito, sob a haste encravada. Seus membros musculosos tremiam e sua boca, entreaberta, resfolegava, quando, com esforço, se aprumou nos pés.

"E cambaleava, quando dirigiu suas armas para o estrangeiro, que já transpunha a passagem da caiçara que olhava para a alva praia.

"- Jurupari, empresta-me a tua força! clamou.

"Estirou, arquejante, a fina corda. A flecha sibilou por sobre ruínas e cadáveres, espetando, com estalo, no crânio do Maire que, lançado para diante, foi estatelar-se no pó, à saída da aldeia.

"A carga tombou, a rede soltou-se, e as pedras verdes de Jurupari esparramaram-se, cascalhantes, sobre as nódoas de sangue de Tabajaras e Potiguaras.

"Irapuã sorriu.

"Apoiou-se, então, no grande arco de braúna, mas logo rodou caindo em terra.

"Assim, morreu Irapuã, o guardião dos Tabajaras." (sic).

Sabino Santos, em seu livro, Os Imortais de Passo Fundo (Instituto Social Padre Berthier, s/d, 1963), conta que o primeiro livro que Cafruni leu, "aos 13 anos de idade, foi "Iracema", de José de Alencar, que lhe causou profunda impressão". Como se vê, a impressão foi tamanha a ponto de situar seu romance indianista no estado natal de Alencar.

"Assim como Walter Scott fascinou a imaginação da Europa com seus castelos e cavaleiros - escreveu Antônio Cândido, no ano de 1964, em sua Formação da Literatura Brasileira, 2°. volume, 5 ed., Editora Itatiaia, da Universidade de São Paulo, 1975, p. 224 -, Alencar fixou um dos mais caros modelos da sensibilidade brasileira: o do índio ideal, elaborado por Gonçalves Dias, mas lançado por ele na própria vida quotidiana. As Iracernas, Jacis, Ubiratãs, Ubirajaras, Aracis, Peris, que todos os anos, há quase um século, vão semeando em batistérios e registros civis a "mentira gentil" do indianismo, traduzem a vontade profunda do brasileiro de perpetuar a convenção, que dá a um país de mestiços o álibi duma raça heróica e, a uma nação de história curta, a profundidade do tempo lendário". (sic).

Podemos, pois, concluir que nossos dois romancistas, escrevendo ao redor de 1950, literariamente falando, pertencem a um século antes. Jurandyr Algarve reproduz o folhetim, difundido por Eugêne Sue, Scribe, Féval e Alexandre Dumas (pai), por volta de 1830 ;e Jorge Edeth Cafruni continua o indianismo, a maneira do José de Alencar de 1857, seguindo a trilha aberta anos antes por Walter Scott e Chateaubriand. E é exatamente esse atraso literário o maior responsável para que os romancistas passo-fundenses não alcançassem repercussão fora do município. Eram homens do século XX, escrevendo no estilo do século XIX.

Apesar de suas limitações, tanto Irapuã quanto Marta merecem ser lidos e estudados, porque representam o que foi realmente produzido em Passo Fundo, naquele período. Cabe aos escritores pósteros, escreverem trabalhos melhores, superarem os escritores do passado, produzindo obras que insiram as letras passo-fundenses nas literaturas gaúcha e brasileira.

Referências

  1. Paulo Monteiro exerce o jornalismo literário há 29 anos. Pertence à Academia Passo-Fundense de Letras, Cadeira 32, que tem como patrono o poeta e jornalista Gomercindo dos Reis; e a diversas entidades culturais do Brasil e exterior