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|978-85-8326-429-3


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'''Assim me contou o vento: contos'''
'''Assim me contou o vento: contos''' Naquelas terras perdidas nos confins do mundo, havia duas povoações e uma
 
Capital. A Capital e Lugar Nenhum foram fundadas há mais de um século pelo grande líder Uzzy, que trouxe seu povo perseguido por bárbaros e inimigos milenares para aquele local isolado. Ele prometeu, aos que o seguiam, terras, alimento e paz. Cumpriu sua promessa. Não era, como outros líderes, conhecido como rei, mas sim como o Benfeitor.
 
O Benfeitor nomeou toda aquela área ocupada, todo aquele território como Terras de Zzy.
 
Seu filho, Uzzy II, seguiu sua linha política de justiça e benemerência e construiu a Capital. No entanto, seu neto, Uzzy III, e agora o bisneto, Uzzy IV, explorava o povo de forma vil e, por isso, não era chamado pelo povo de Benfeitor, mas sim de Feitor.


== Apresentação ==
== Apresentação ==
''APRESENTAÇÃO, pelo Autor''
Nas noites frias de inverno, nos reuníamos com frequência ao derredor do fogão, na casa de meus avós ou na pensão de nossa amiga Maria Roncadeira. Nestes eventos, enquanto as mulheres conversavam, e muito, fazendo tricô ou crochê, os homens tomavam chimarrão, bicavam um vinho ou um licor e de vez enquando até jogavam um carteado. Nestes momentos de alegria e confraternização, sempre tinha alguém contando um causo, uma estória, um conto, uma anedota, enfim, dando colorido àquele momento de integração social, promovendo o riso a reflexão e despertando a imaginação de todos. O bom contador sempre atraía olhares admirados.
Eu, com meus nove anos, tinha uma “sede”, uma vontade de também contar um causo, mas não tinha coragem, não tinha assunto, não tinha criatividade e tinha a certeza que, se me dessem a palavra, eu ga-gaguejaria, suaria frio e ficaria com o rosto vermelho.
À noite em minha cama, debaixo das cobertas, eu rezava, pedindo para logo ficar grande e, então, contar as aventuras que certamente eu vivenciaria; as anedotas que aprenderia nas ruas, quem sabe, até recitar alguma poesia.
Estes serões aconteciam do início ao fim do inverno, tempo em que se faziam estoques de lenhas e de nós-de-pinho. As chapas dos fogões chegavam a avermelhar. A cozinha, quentinha, se transformava no centro da casa, era o lugar certo para se encher a barriga de guloseimas: da rapadura ao pinhão, da bolacha à pipoca, do chimarrão ao café, ao chá e ao quentão.
É nesse tempo que o vento mostra seu poderio. O minuano chega pelo Oeste, vindo lá da cordilheira, gelado, enregelante, açoita toda a natureza com seu uivo zuuuuuuuu, penetrando sem cerimônia por frestas e por buracos, entanguindo um paisano que ande extraviado e levantando nas esquinas os vestidos da mulherada.
Na beirada de nossa casa, que era sólida e aguentava o repuxo, tinha uma laranjeira centenária. Quando o Minuano a pegava, a torcia e a retorcia, ela raspava o telhado com garras de poderoso felino. Os galhos raspavam tanto que eu tinha a impressão que ele, o vento, queria entrar e se sentar junto ao fogão. Imaginava-o com uma tez branca e cintilante como o gelo, cabeleira longa e barba pontiaguda, donde escamas de geadas escorriam pelos fios. Compunha, ainda, esta figura mística um olhar azul, profundo, penetrante. Eu presumia que ele queria roubar todo o calor do fogão, tirando toda a friagem e a umidade que o envolvia e, quem sabe, se transformar num vento norte quente e seco e assim visitar novas moradas.
Em meu quarto, em cima de minha cama, pertinho de meu ouvido, tinha um furinho redondo na parede, donde se desprendeu um minúsculo nó de pinho. Era um buraquinho pequeno, pequerrucho, que eu conseguia tapar com meu dedão, com meu polegar. Pois nesse minúsculo orifício o minuano penetrava zunindo, e eu cobria a cabeça para não ouvir a sua ladainha.
Não sei se vocês sabem? O minuano fala diversos idiomas, o quíchua, o guarani, o castelhano, o português e outros. O meu quarto era contíguo à cozinha. De manhãzinha, mas bem de manhãzinha mesmo, eu enrolado em minhas cobertas ouvia papai e mamãe conversando, falavam baixinho, para não me acordar:
- Venha, venha meu bem, o café já está na mesa.
- Um momento, querida, estou terminando a barba.
Papai se punha num canto da cozinha em frente a um pequeno espelho, pendurado na parede, e enchia a bacia alouçada com água morna para escanhoar o rosto; o silencia era tal que eu ouvia o barulho da lâmina cortando a barba. Não tendo o que fazer, eu me enrolava nas cobertas e voltava a cochilar, naquela doce madorna que envolve e deixa qualquer vivente cheio de preguiça.
Pois foi num desses dias, eu numa soneca morna e, quem sabe, atendendo aos meus pedidos, o minuano entrou pelo buraquinho e veio direto ao meu ouvido. Eu, mais que depressa, cobri a cabeça, mas não teve jeito, ele entrou para debaixo dos cobertores e começou a falar, de início em uma linguagem que eu não entendia; daí, então, ele deu uma rajada, balançando a casa, e começou a falar em português, ou melhor dizendo, num gauchês bagual. Daí eu entendi.
Contou-me, então, causos, que eu ouvia, meio arrepiado de medo, mas ele não dava importância ao meu temor, falava e falava, e tudo o que ele dizia ficava gravado em minha mente. Muitas manhãs durante todo aquele inverno ele me contou e voltou a me contar contos sempre com riqueza de detalhes.
Ao me levantar, esfregando uma mão na outra por causa do frio, sentava-me em uma mesa pertinho do fogão. Ali, naquele calorzinho aconchegante, eu passava, a lápis, para um caderno, aquelas estórias. À noite, mostrava ao meu pai, que admirado comentava com mamãe:
– Este menino tem muita imaginação!
Finalmente chegou o dia, ou, melhor, a noite que eu tanto sonhava. Fiquei muito feliz, mesmo exultante, quando nos reunimos na casa de vovô e da vovó para um serão. Corria então o mês de agosto. Papai pediu a palavra:
- Gostaria de contar uma estória que foi escrita por meu filho.
Como bom proseador que era, fez alguns floreios, valorizando o conto, e narrou tudo o que eu tinha escrito. Ao final, entre sorrisos, todos me cumprimentaram; papai vergou o corpo e me deu um beijo na testa, passou a mão em minha melena, espalhando meus cabelos.
Agora passados tantos anos, tomei tento, busquei no fundo de minha memória e resolvi contar tim-tim por tim-tim tudo o que ouvi das pessoas que frequentavam nossos encontros, bem como tudo aquilo que me contou o vento.
Conto estas estórias para matar as saudades daqueles tempos, e para compreender por que à medida que fui ficando velho o vento deixou de conversar comigo. Entendo que hoje já não existem mais fogões à lenha, o povo já não se reúne, a cozinha deixou de ser o centro da casa, tem criança que nem conhece rapadura.... Os tempos são outros; é a ditadura dos eletrodomésticos: quem manda agora é a televisão, que, junto com os celulares, tabletes e outras maravilhas, deixa o povo de cabeça baixa, em silêncio, não abrem a boca. Incrível, não há mais diálogo, quem fala agora são os dedos.
Mas o frio é o mesmo, o zuuuuuuuu é o mesmo. Quando o encontro nas ruas, nas esquinas, ele faz redemoinhos em meu entorno, gela minhas orelhas, mas, para meu desespero, não fala, não conversa. Em minha nova morada fiz, um buraquinho na parede para ele entrar. De nada adiantou.
Concluí, depois de muito pensar e com tristeza no coração, que o vento só conversa, só fala com crianças. Será que perdi minha imaginação? Minha capacidade de sonhar...?


== Índice ==
== Índice ==
* A AGULHA INVISÍVEL  19
* O TATU E O RATINHO  41
* A TERCEIRA CADERNETA  61
* O ÓDIO DA PAIXÃO 127
* OS PROVISÓRIOS 137
* A MALDIÇÃO DO CAIPORA  179


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Latest revision as of 11:35, 27 February 2022

Assim me contou o vento
Descrição da obra
Autor Telmo Mario Dornelles Gosch
Título Assim me contou o vento
Subtítulo contos
Assunto Contos
Formato E-book (formato PDF)
Editora Projeto Passo Fundo
Publicação 2019
Páginas 196
ISBN 978-85-8326-429-3
Impresso Formato 15 x 21 cm
Editora Projeto Passo Fundo
Publicação 2019

Assim me contou o vento: contos Naquelas terras perdidas nos confins do mundo, havia duas povoações e uma

Capital. A Capital e Lugar Nenhum foram fundadas há mais de um século pelo grande líder Uzzy, que trouxe seu povo perseguido por bárbaros e inimigos milenares para aquele local isolado. Ele prometeu, aos que o seguiam, terras, alimento e paz. Cumpriu sua promessa. Não era, como outros líderes, conhecido como rei, mas sim como o Benfeitor.

O Benfeitor nomeou toda aquela área ocupada, todo aquele território como Terras de Zzy.

Seu filho, Uzzy II, seguiu sua linha política de justiça e benemerência e construiu a Capital. No entanto, seu neto, Uzzy III, e agora o bisneto, Uzzy IV, explorava o povo de forma vil e, por isso, não era chamado pelo povo de Benfeitor, mas sim de Feitor.

Apresentação

APRESENTAÇÃO, pelo Autor

Nas noites frias de inverno, nos reuníamos com frequência ao derredor do fogão, na casa de meus avós ou na pensão de nossa amiga Maria Roncadeira. Nestes eventos, enquanto as mulheres conversavam, e muito, fazendo tricô ou crochê, os homens tomavam chimarrão, bicavam um vinho ou um licor e de vez enquando até jogavam um carteado. Nestes momentos de alegria e confraternização, sempre tinha alguém contando um causo, uma estória, um conto, uma anedota, enfim, dando colorido àquele momento de integração social, promovendo o riso a reflexão e despertando a imaginação de todos. O bom contador sempre atraía olhares admirados.

Eu, com meus nove anos, tinha uma “sede”, uma vontade de também contar um causo, mas não tinha coragem, não tinha assunto, não tinha criatividade e tinha a certeza que, se me dessem a palavra, eu ga-gaguejaria, suaria frio e ficaria com o rosto vermelho.

À noite em minha cama, debaixo das cobertas, eu rezava, pedindo para logo ficar grande e, então, contar as aventuras que certamente eu vivenciaria; as anedotas que aprenderia nas ruas, quem sabe, até recitar alguma poesia.

Estes serões aconteciam do início ao fim do inverno, tempo em que se faziam estoques de lenhas e de nós-de-pinho. As chapas dos fogões chegavam a avermelhar. A cozinha, quentinha, se transformava no centro da casa, era o lugar certo para se encher a barriga de guloseimas: da rapadura ao pinhão, da bolacha à pipoca, do chimarrão ao café, ao chá e ao quentão.

É nesse tempo que o vento mostra seu poderio. O minuano chega pelo Oeste, vindo lá da cordilheira, gelado, enregelante, açoita toda a natureza com seu uivo zuuuuuuuu, penetrando sem cerimônia por frestas e por buracos, entanguindo um paisano que ande extraviado e levantando nas esquinas os vestidos da mulherada.

Na beirada de nossa casa, que era sólida e aguentava o repuxo, tinha uma laranjeira centenária. Quando o Minuano a pegava, a torcia e a retorcia, ela raspava o telhado com garras de poderoso felino. Os galhos raspavam tanto que eu tinha a impressão que ele, o vento, queria entrar e se sentar junto ao fogão. Imaginava-o com uma tez branca e cintilante como o gelo, cabeleira longa e barba pontiaguda, donde escamas de geadas escorriam pelos fios. Compunha, ainda, esta figura mística um olhar azul, profundo, penetrante. Eu presumia que ele queria roubar todo o calor do fogão, tirando toda a friagem e a umidade que o envolvia e, quem sabe, se transformar num vento norte quente e seco e assim visitar novas moradas.

Em meu quarto, em cima de minha cama, pertinho de meu ouvido, tinha um furinho redondo na parede, donde se desprendeu um minúsculo nó de pinho. Era um buraquinho pequeno, pequerrucho, que eu conseguia tapar com meu dedão, com meu polegar. Pois nesse minúsculo orifício o minuano penetrava zunindo, e eu cobria a cabeça para não ouvir a sua ladainha.

Não sei se vocês sabem? O minuano fala diversos idiomas, o quíchua, o guarani, o castelhano, o português e outros. O meu quarto era contíguo à cozinha. De manhãzinha, mas bem de manhãzinha mesmo, eu enrolado em minhas cobertas ouvia papai e mamãe conversando, falavam baixinho, para não me acordar:

- Venha, venha meu bem, o café já está na mesa.

- Um momento, querida, estou terminando a barba.

Papai se punha num canto da cozinha em frente a um pequeno espelho, pendurado na parede, e enchia a bacia alouçada com água morna para escanhoar o rosto; o silencia era tal que eu ouvia o barulho da lâmina cortando a barba. Não tendo o que fazer, eu me enrolava nas cobertas e voltava a cochilar, naquela doce madorna que envolve e deixa qualquer vivente cheio de preguiça.

Pois foi num desses dias, eu numa soneca morna e, quem sabe, atendendo aos meus pedidos, o minuano entrou pelo buraquinho e veio direto ao meu ouvido. Eu, mais que depressa, cobri a cabeça, mas não teve jeito, ele entrou para debaixo dos cobertores e começou a falar, de início em uma linguagem que eu não entendia; daí, então, ele deu uma rajada, balançando a casa, e começou a falar em português, ou melhor dizendo, num gauchês bagual. Daí eu entendi.

Contou-me, então, causos, que eu ouvia, meio arrepiado de medo, mas ele não dava importância ao meu temor, falava e falava, e tudo o que ele dizia ficava gravado em minha mente. Muitas manhãs durante todo aquele inverno ele me contou e voltou a me contar contos sempre com riqueza de detalhes.

Ao me levantar, esfregando uma mão na outra por causa do frio, sentava-me em uma mesa pertinho do fogão. Ali, naquele calorzinho aconchegante, eu passava, a lápis, para um caderno, aquelas estórias. À noite, mostrava ao meu pai, que admirado comentava com mamãe:

– Este menino tem muita imaginação!

Finalmente chegou o dia, ou, melhor, a noite que eu tanto sonhava. Fiquei muito feliz, mesmo exultante, quando nos reunimos na casa de vovô e da vovó para um serão. Corria então o mês de agosto. Papai pediu a palavra:

- Gostaria de contar uma estória que foi escrita por meu filho.

Como bom proseador que era, fez alguns floreios, valorizando o conto, e narrou tudo o que eu tinha escrito. Ao final, entre sorrisos, todos me cumprimentaram; papai vergou o corpo e me deu um beijo na testa, passou a mão em minha melena, espalhando meus cabelos.

Agora passados tantos anos, tomei tento, busquei no fundo de minha memória e resolvi contar tim-tim por tim-tim tudo o que ouvi das pessoas que frequentavam nossos encontros, bem como tudo aquilo que me contou o vento.

Conto estas estórias para matar as saudades daqueles tempos, e para compreender por que à medida que fui ficando velho o vento deixou de conversar comigo. Entendo que hoje já não existem mais fogões à lenha, o povo já não se reúne, a cozinha deixou de ser o centro da casa, tem criança que nem conhece rapadura.... Os tempos são outros; é a ditadura dos eletrodomésticos: quem manda agora é a televisão, que, junto com os celulares, tabletes e outras maravilhas, deixa o povo de cabeça baixa, em silêncio, não abrem a boca. Incrível, não há mais diálogo, quem fala agora são os dedos.

Mas o frio é o mesmo, o zuuuuuuuu é o mesmo. Quando o encontro nas ruas, nas esquinas, ele faz redemoinhos em meu entorno, gela minhas orelhas, mas, para meu desespero, não fala, não conversa. Em minha nova morada fiz, um buraquinho na parede para ele entrar. De nada adiantou.

Concluí, depois de muito pensar e com tristeza no coração, que o vento só conversa, só fala com crianças. Será que perdi minha imaginação? Minha capacidade de sonhar...?

Índice

  • A AGULHA INVISÍVEL 19
  • O TATU E O RATINHO 41
  • A TERCEIRA CADERNETA 61
  • O ÓDIO DA PAIXÃO 127
  • OS PROVISÓRIOS 137
  • A MALDIÇÃO DO CAIPORA 179

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