Uma paixão chamada Festival

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Uma paixão chamada Festival

Em 30/11/2004, por Gilberto Rocca da Cunha e Paulo Domingos da Silva Monteiro


Uma paixão chamada Festival

"O Festival Internacional de Folclore de Passo Fundo projetou o tradicionalismo gaúcho para o mundo."

O nome Paulo Dutra é hoje, praticamente, "sinônimo" de festival. Especialmente do Festival Internacional de Folclore de Passo Fundo que, em 2004, de 13 a 21 de agosto, teve realizada a sua oitava edição, na cidade. Esse passo-fundense, nascido em Santo Antão, desde criança se sentiu atraído pela arte e pela tradição gauchescas. Veio, junto com os pais, morar na cidade, aos sete anos de idade. Durante o período escolar, se envolveu com os movimentos culturais praticados no meio estudantil da época. Na década de 70, fez parte do Grupo Literário Nova Geração. Trabalhando e estudando, formou-se em Economia, pela UPF, e, por concurso público, ingressou no quadro de funcionários da Prefeitura Municipal de Passo Fundo, onde, concomitantemente com os seus múltiplos envolvimentos culturais, exerce a sua atividade profissional do dia-a-dia.

Paulo Dutra, junto com o Grupo Terra Pampeana, revolucionou a dança gauchesca, introduzindo a abertura e o encerramento, e modernizando a indumentária dos dançarinos. Foi além da dança, e o seu relacionamento com o CIOFF colocou Passo Fundo no mapa do circuito dos festivais internacionais de folclore. E, apesar do respeito e da credibilidade que goza, mantém a simplicidade e a humildade do menino de Santo Antão que, um dia, motivado pelas ondas do rádio, se sentiu irresistivelmente atraído pela música e pela cultura do povo rio-grandense.

Os acadêmicos Welci Nascimento, Pedro Ary Veríssimo da Fonseca, Jurema Carpes do Valle, Santina Dal Paz, Helena Rotta de Camargo, Getulio Vargas Zauza, Paulo Monteiro e Gilberto Cunha receberam Paulo Bilhar Dutra, delegado do Conselho Internacional das Organizações de Festivais Folclóricos e Artes Tradicionais (CIOFF) para o Rio Grande do Sul, durante um encontro da comissão editorial da revista da Academia Passo-Fundense de Letras.

O CIOFF é um organismo internacional que mantém relações com a UNESCO (Organização para Arte, Ciência e Cultura), órgão das Nações Unidas. O Conselho foi fundado em 10 de agosto de 1970 e mantém sua sede na cidade de Confelens, Departamento de Charrantes, na França, A Secção Estadual do Rio Grande do Sul, cuja sede se localiza em Passo Fundo, foi organizada em 10 de junho de 1992.

Os acadêmicos discutiram com Paulo Dutra, em especial, a divulgação do folclore e o Festival Internacional de Folclore, que se realiza na cidade desde 1992.

APL - Paulo, como começou sua preocupação com o folclore e a cultura?

Paulo Dutra - Nasci em Santo Antão, na zona rural de Passo Fundo. Meus pais, embora não praticassem o tradicionalismo, lidavam no campo. Ainda pequeno, ganhei uma potranca. Nem caminhava direito, mas já andava a cavalo. Depois ganhei um traje campeiro. Assim, cresci identificado com o tradicionalismo e a vida campeira. A televisão nem existia para nós. Só tínhamos rádio. Ouvíamos principalmente Teixeirinha, nos inícios da década de 1960. E foi ouvindo as músicas desse cantor que nasceu a vontade de conhecer outras regiões. Quando eu estava com sete anos, vendemos nossa propriedade e viemos para a cidade. Entrei na invernada de danças do Grupo Escolar Anna Willig, na Vila Operária, onde iniciei meus estudos. Depois me transferi para o Instituto Educacional (IE), tendo recebido uma bolsa de estudos. E fui concluir o curso ginasial na Escola Estadual Nicolau de Araújo Vergueiro.

Já no ensino médio, quando cursava Contabilidade na E. E. Joaquim Fagundes dos Reis, participei de atividades culturais e integrei o Grupo Literário "Nova Geração", do qual Paulo Monteiro também fazia parte, na década de 1970, divulgando poesias em jornais e na revista Presença. Nós nos reuníamos na velha sede da Academia Passo-Fundense de Letras ou no Clube Caixeiral. A Academia era um espelho, uma ambição para todos nós.

Antes disso, com 13 anos, trabalhei no fórum, como contínuo, durante cinco anos, o que foi outra grande escola para mim.

O tempo de trabalho no fórum serviu para que eu decidisse uma coisa: não cursar Direito. Acabei fazendo concurso para a prefeitura municipal, enquanto cursava Economia, na Universidade de Passo Fundo. E participava do coral universitário, com a professora Renê Sudbrach. Ali permaneci dez anos, cantando e dirigindo o coral. Ao mesmo tempo, integrava a Invernada de Danças do CTG Lalau Miranda.

APL - E onde é que entra o Grupo de Danças Terra Pampeana nesta tua biografia?

Paulo Dutra - Exatamente aí. O Centro de Tradições Gaúchas Lalau Miranda tinha urna invernada de danças que, como as invernadas de todos os CTGs. não aceitavam qualquer tipo de inovação. Então saímos do CTG e fundamos o Grupo de Danças Terra Pampeana Mas continuamos dançando as danças tradicionais. Em 1984, ganhamos o Festival Gaúcho de Arte e Tradição (FE- GART). Aos poucos, fomos fazendo algumas inovações, diminuindo o comprimento do vestido das prendas, mudando a cor das botas dos peões, modernizando as danças, os ritmos, os passos.

APF- E a proibição imposta ao Terra Pampena de se apresentar num CTG?

Paulo Dutra - Bom, as mudanças que introduzimos contrariaram o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), mas despertaram o interesse da sociedade. A família Tagliari contratou-nos para uma apresentação na festa de aniversário da sua "matriarca", e a patronagem do Centro de Tradições Gaúchas Getúlio Vargas nos impediu de entrar. O Alberto Tagliari garantiu na Justiça a nossa apresentação e a realização da festa no CTG, satisfazendo o desejo da aniversariante, para que dançássemos na sua festa. A patronagem da época filmou toda a apresentação, com as câmeras "pegando um ângulo de baixo para cima". Em virtude de intenso noticiário, o advogado solicitou indenização por danos morais, pois, além da tendenciosidade nas filmagens, foram apresentadas danças argentinas como se fossem gaúchas. O caso teve repercussão nacional, inclusive com matéria na revista Veja, contribuindo para que o Grupo se tornasse muito conhecido. Em decorrência, o próprio CTG Lalau Miranda diminuiu o comprimento dos vestidos de suas prendas.

APL- Vocês introduziram a abertura e o encerramento nas danças gauchescas, que hoje é praticado por todos os grupos tradicionalistas...

Paulo Dutra - Hoje isso é permitido. O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) entendeu que os jovens aderiam melhor se houvesse inovação. Eu acho que o MTG não é intransigente. Já houve renovação e abertura para práticas novas, no novo manual de danças gaúchas do Movimento.

O Rio Grande do Sul é admirado porque mantém suas tradições. Os posteiros hoje adotam os conceitos do MTG. Essa discussão entre a "linha Paixão Cortes" e a “linha do MTG" foi altamente positiva. Houve tempos em que alguns o chamavam de mercenário, porque cobrava alto pelos cursos. Ele mesmo pesquisou o "Chico do Porrete", em Lagoa Vermelha. Encontrou o começo e o fim da dança e o meio ele presumiu.

APL - O gaúcho tem fama de machista. Esse machismo está presente nas danças típicas?

Paulo Dutra - A idéia de que o gaúcho é rude, uma espécie de brucutu, não corresponde à realidade. Nossas danças representam movimentos animais, o que é comum em danças folclóricas, em qualquer arte do mundo. As danças gauchescas, porém, apesar de não fugirem de características comuns ao folclore universal, são "danças de respeito", enquanto muitas danças do Norte e Nordeste do Brasil são de enaltecimento explícito ao ato sexual. Em muitas danças gaúchas o homem presta reverência à mulher.

APL - E a imagem desrespeitosa que algumas músicas pretensamente tradicionalistas fazem da mulher?

Paulo Dutra - A história evoluiu muito, mas, no momento em que passei a conviver mais com o Movimento Tradicionalista Gaúcho, vi que a coisa não é como se apresenta na mídia. O palavreado agressivo à mulher não faz parte da autêntica tradição gaúcha. Muitas vezes as pessoas não entendem ou distorcem o sentido que o autor dá às suas letras. E o caso de "Morocha", onde o compositor satiriza a idéia errônea que se faz do pretenso machismo gaúcho. A letra é uma sátira a esse tal machismo.

APL - O MTG é um movimento de criação urbana?

Paulo Dutra - Criação sempre houve, mas a relação entre patrão e empregado, no meio rural gaúcho, é diferenciada do restante do país. O próprio escravo aqui não foi tão maltratado como em outras regiões brasileiras. E claro que a reunião das danças gaúchas é recente e teve uma fundamentação, uma espécie de sistematização ou criação, como alguns querem, passando a ser uma tradição.

APL - Alguns estudiosos consideram a cultura gauchesca uma criação urbana, a começar pela competição...

Paulo Dutra - A origem da cultura gauchesca é rural, mas o gaúcho veio para a cidade. Critica-se a competição entre as entidades, mas é essa competição que as move. Por isso, o MTG criou dois tipos de festivais, um campeiro e outro artístico.

APL - Como você vê a projeção de Passo Fundo, hoje, no mundo?

Paulo Dutra - Com o Grupo Terra Pampeana fomos representar o Brasil na Guiana Francesa, em 1985, e recebemos, depois, outros convites. Em 1987, conhecemos a delegada do CIOFF e fomos para a Itália, onde ficamos dois meses, com o apoio da comunidade. Aí pensamos em trazer essa oportunidade para Passo Fundo. Fizemos o I Festival e propusemos que os grupos escolhidos pelo MTG fossem os convidados para representar o Rio Grande do Sul em outros estados, o que foi aprovado. No Congresso do MTG daquele ano. Houve contestações e dúvidas quanto à viabilidade da proposta, pois a cultura gaúcha era pouco conhecida fora do nosso estado. Já levamos mais de 40 grupos de danças gaúchas para participar de festivais de folclore fora do país. Ao participar de um festival, o grupo só paga a passagem e vai conhecer e conviver com a cultura de cada povo, fazendo turismo cultural autêntico, e divulgando a cultura de sua região. E tem mais, nenhum grupo vai sem preparação, sem conhecer a cultura que representa.

APL - Como você vê a divulgação do folclore nas escolas?

Paulo Dutra - Quando viajamos, vemos, nos outros países, um movimento estudantil muito preocupado com as questões culturais. Em nosso país, isso é muito raro de acontecer. Nesse sentido, o movimento organizado pelo professor Welci Nascimento, no início dos anos 80, foi fundamental. O problema é que o movimento de difusão cultural nas escolas depende do momento político. A partir desse trabalho pioneiro, as coisas foram num crescendo, até chegarmos, em Passo Fundo, a 32 grupos folclóricos nas escolas, que também aprendiam geografia, história e cultura do Rio Grande do Sul.

Existem leis estaduais e municipais determinando que folclore e cultura regional sejam estudados nas escolas. Aí há um ponto importante: esse estudo deve ser feito de maneira extracurricular. Com isso. tanto o município quanto o estado não estão obrigados a garantir a contratação de professores, além de não existirem professores formados para lecionarem essas disciplinas. O CIOFF, durante um certo período, manteve convênio com a Prefeitura de Passo Fundo, garantindo a contratação de pessoal para ministrar instrução nas escolas municipais. Tivemos de buscar monitores nos centros de tradições gaúchas, pois. mesmo pessoas com especialização na área de folclore, não tinham conhecimentos práticos para dar apoio aos alunos e aos grupos de danças das escolas.

APL - E os cursos de pós-graduação em folclore que chegaram a ser uma espécie de moda em certa época?

Paulo Dutra - Muitos foram fazer pós-graduação com Paixão Cortês, para progredir na carreira do magistério e não por vocação, isto é para ensinar nas escolas.

APL - Então, qual é a solução?

Paulo Dutra - O ensino do folclore e da cultura gaúcha, como disciplina, tem o objetivo de estimular o tradicionalismo junto a crianças e adolescentes. Então estamos diante da seguinte situação: existe uma legislação, mas o município precisa criar um quadro, com cargo específico, a ser preenchido com pessoas que tenham habilitação ou o conhecimento devido.

APL - Como consegues conciliar tua atividade de funcionário público com a divulgação do folclore?

Paulo Dutra - Profissionalmente, sempre gostei de números. Sou economista concursado no município. As minhas atividades no folclore sempre foram uma espécie de lazer. Hoje, estou me dedicando ao trabalho cultural na Secretaria Municipal de Turismo, Desporto e Cultura, por imposição do prefeito municipal, que entende ser importante minha presença naquela secretaria, mas me considero devedor do município. Fui convidado por diversos partidos políticos para concorrer a vereador, mas sempre recusei esses convites. Cheguei a assumir a Setur, interinamente, pois as pessoas depositam muita confiança nos detentores de cargos políticos, que são muito injustos.

APL - O Festival Internacional de Folclore tem ampliado o leque de atividades...

Paulo Dutra - Promovemos o Seminário Mundial da Paz, trazendo a vietnamita Phan Thi Kim Phuc, que ficou mundialmente conhecida ao ser atingida por uma bomba de nepalm, durante a Guerra do Vietnã. Lembro-me da resposta que ela deu, quando lhe perguntaram se perdoava o presidente Richard Nixon: "Perdôo, mas não esqueço". Também trouxemos o príncipe D. Pedro de Órleans e Bragança, herdeiro da família imperial brasileira. E tenho idéia de ampliar cada vez mais esse leque.

APL - O Festival está consolidado?

Paulo Dutra - O Festival está num momento muito bom. Pode ir muito mais longe, se tomar muito maior, mais abrangente e influente, mas precisamos ir devagar. Neste ano enfrentamos a questão financeira do estado, pois o governo aprova os projetos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC). mas não libera os recursos. Sabemos de casos em que eventos culturais foram realizados contando com o dinheiro da LIC. No caso do nosso festival, a captação de recursos tem sido fácil, mas o governo não tem liberado os contratos, com medo de abrir mão dos recursos. Só o aluguel da lona para o festival custa R$ 140.000 e mais uns RS 40.000.00 ou RS 50.000,00 são necessários para o restante da infraestrutura. Essa política de restrição para a liberação dos recursos da LIC tem causado problemas para a produção cultural do estado.

APL - A reunião de pessoas de origens muito diferentes, com hábitos e costumes diversos, deve criar situações interessantes...

Paulo Dutra - Esse congraçamento tem oportunizado experiências marcantes. E na questão gastronômica também. Os nordestinos, por exemplo, não comem o pão, pois preferem um pão mais duro. Os chineses não tomam refrigerantes. Só tomam água fervendo e comem verduras em grande quantidade. A principal dificuldade que nós enfrentamos é em adaptar o cardápio. Os italianos comem massas todos os dias. Não pode faltar massa na mesa deles. Agora, o relacionamento entre os grupos e destes com a comunidade passo-fundense tem sido ótimo. Para tanto, contribui significativamente o trabalho de 150 voluntários locais. E olha que já tivemos um festival com mais de 3.000 artistas. No do ano 2000, foram 80 grupos de Passo Fundo, apresentando o folclore gaúcho. Agora não chega a 60 grupos, em virtude da decadência dessa proposta cultural nas escolas.

APL - A presença dos grupos estrangeiros contribui para o respeito aos diferentes povos?

Paulo Dutra - E claro que sim. A presença desses diferentes grupos estrangeiros desperta na comunidade a discussão e o respeito pelas diversas culturas. Contribui para que sejamos mais tolerantes com os outros. E tem mais: até mesmo em termos de um projeto turístico para o futuro, faz com que as pessoas recebam melhor os forasteiros.