Um romance passo-fundense
Um romance passo-fundense
Em 21/07/2003, por Paulo Domingos da Silva Monteiro
Um romance passo-fundense[1]
PAULO MONTEIRO[2]
Não é todo dia que . um romance é publicado em Passo Fundo. E não é todo dia que um escritor estréia aos 77 anos.
Marconi De Césaro não é nenhum Graciliano Ramos ou um Mário Palmério, que já nasceram para a vida literária, direto para a imortalidade, crescidos em anos. Nenhum deles tinha a idade do nosso novo escritor.
Bocas Amargas (Edição do Autor, Passo Fundo, 2003) é a história de um grupo de metalúrgicos que trabalham em Vila Cruz, cidade do interior gaúcho. Ali, vão levando suas vidinhas, ora entocados na indústria, já decadente, ora em sua vila, numa cidade que é Vila. Veja-se a semelhança entre estas quatro palavras: Vila, vida, vilinha, vidinha. É exatamente isso que acontece com Laércio, Hans, Veiga, João Manoel, Farias, Amaro e todos os trabalhadores da vila, com os comerciantes Del Rovere e Beppe, e com as mulheres, da cafetina Berta a Teresa das Graças. Em toda parte há decadência. Vilinha. Vidinha.
De repente, Vila Cruz (cruz de martírio, sacrifício, mas também de ressurreição) recebe um morador estranho. Todos parecem conhecê-lo, porque sua fisionomia é parecida com a de um velho empresário, cuja fotografia está exposta nas paredes da fábrica. Seu nome é Irânio. Ira/urânio. Raiva, planeta distante, energia atômica, bomba, destruição. Apocalipse, fim de mundo.
E é exatamente isso que ele provoca ao se fixar em Vila Cruz, passando a trabalhar na fábrica. Esta é administrada por burocratas medíocres, verdadeiros dinossauros.
O que distingue esse filho de "uma grande prostituta", como ele mesmo se confessa ao final do livro, daqueles homens que levam uma vida filha daquela da qual ninguém quer ser parente é que ele usa uma arma chamada livro. Lê, estuda, procura e acaba sabendo as respostas. Quem lê, vê o in-visível aos olhos dos homens e mulheres medíocres. Irânio, porém, não encerra um conhecimento puramente livresco. "O velho", como acaba sendo chamado carinhosamente por seus companheiros, tem a experiência da vida. Por isso acaba se destacando no meio em que passa a viver. O seu andar é firme; ele sabe aonde vai porque tem duas pernas musculosas: cultura e experiência.
E é exatamente por aí que começa a revolucionar a vila e os vileiros de Vila Cruz. O sentir a decadência da fábrica vai ensinando-lhe novos métodos, inclusive de ganhar a vida. É assim que começa a fabricar imagens de Jesus crucificado (a Cruz, de novo), juntamente com Veiga.
Volto 15 ou 20 anos no tempo. Vejo "seu" Marconi e os filhos Luis Carlos, Everton e Fernando, fundindo aquele mesmo tipo de imagem. Nossas discussões sobre política e filosofia. Marconi, naqueles dias, não fundia apenas imagens de bronze, modelava as personagens de seu livro.
Voltando ao livro, valho-me da lingüística textual. E sem ela é impossível entender Bocas Amargas. A boca do homem se distingue das outras bocas porque emite palavras que, no mundo civilizado, assumem uma coesão lexical. Os escritores tecem o seu texto articulando as palavras como se fossem minúsculos fios de lã. A visibilidade do tecido ou o produto acabado, se manifesta pela reiteração e a colocação. Do ponto de vista reiterativo, a repetição do mesmo item lexical, da mesma palavra, para fugirmos ao jargão dos gramáticos, tem peso maior no livro de Marconi De Césaro. Com isso, obtém uma linguagem mais espontânea, menos rebuscada, menos afetada até, como se vê em autores que abusam dos sinônimos, hiperônimos e nomes genéricos. A colocação ou contiguidade ainda é mais rara em Bocas Amargas.
O uso contínuo do mesmo item lexical, no romance de Marconi De Césaro, me fez lembrar Paulo Setúbal, um escritor que foi muito lido na juventude do escritor passo-fundense. A propósito, fui reler algumas passagens da autobiografia do poeta paulista, escrita logo após sua reconversão ao catolicismo e pouco tempo antes de sua morte prematura. E é visível uma proximidade estilística do romance gaúcho com a autobiografia paulista.
Não sei se Marconi De Césaro leu Confiteor, mas ambas pertencem à mesma família de obras literárias: aquelas que foram escritas pelos que querem dizer alguma coisa e não por quem quer escrever algo. Os primeiros são criadores; os segundos, estilistas. Ambos merecem ser lidos, porque sem eles não há literatura.