Um poeta antitético

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Um poeta antitético

Em 05/12/2010, por Paulo Domingos da Silva Monteiro


Um poeta antitético

Paulo Monteiro[1]


A recente publicação do volume intitulado Poesias, de Elisomero da Costa Moura (impresso na Tipografia Sananduva, Sananduva, 2005), e seu lançamento na Academia Passo-Fundense de Letras, veio se constituir num verdadeiro evento literário, pela importância da obra do poeta lagoense.

Elisomero da Costa Moura nasceu em Bento Gonçalves em 15 de junho de 1951. Muito cedo sua família passou a residir em Lagoa Vermelha onde o poeta concluiu os cursos primário, ginasial e técnico em contabilidade. Mudou-se para Porto Alegre, ali trabalhando e realizando curso pré-vestibular. Transferiu-se para Passo Fundo, cursando Direito e Letras, na universidade local.

Durante o período de residência em Passo Fundo integrou o Grupo Literário “Nova Geração”, que reuniu um elevado número de jovens intelectuais da Cidade. Pertenceu ao Rotaract Club de Passo Fundo e à Academia Passo-Fundense de Letras.

Viajante insaciável transferiu-se para o Paraná, lecionando em Curitiba e São José dos Pinhais, exercendo a profissão que iniciara no Colégio Bom Conselho de Passo Fundo.

Residiu no Japão, onde fez especialização para continuar a prática do magistério. De volta ao Brasil, reiniciou suas atividades, falecendo em Curitiba no dia 25 de maio de 1995.

Sua irmã, Izete da Costa Moura, que também integrou o Grupo Literário “Nova Geração”, reuniu parte das poesias de Elisomero no livro que acaba de vir a lume.

Amplio, neste ensaio despretensioso, conceitos que emiti quando, em nome da Academia Passo-Fundense de Letras, designado por seu atual presidente, apresentei o livro à intelectualidade local e aos amigos do poeta, que se fizeram presentes à solenidade realizada no prédio-sede do sodalício local.

Elisomero faz parte de uma espécie poética mais comum do que possa parecer: os poetas antitéticos. Em língua portuguesa eles são encontrados facilmente, desde os trovadores galaico-portugueses até poetas contemporâneos nossos.

Na verdade parecem ser verdadeiros filhos espirituais de Heráclito, o polêmico filósofo de Éfeso, que teve acmé há 2.500 anos. Lembre-se que polêmica é quase a transcrição do grego pólemos, como se lê em Filósofos Pré-socráticos – Primeiros Mestres da Filosofia e da Ciência Grega, de Miguel Spinelli (EDIPUCS, Porto Alegre, 2003), página 376. Num dos fragmentos mais conhecidos de sua obra, Heráclito afirma que “Pólemos [a guerra] é pai de todas as coisas, rei de tudo; a uns, os demonstrou como deuses, a outros, como homens; de uns fez escravos, de outros, livres”, na tradução de Damião Berge, à página 261 de O Logos Heraclítico – Introdução ao Estudo dos Fragmentos (INL, Rio de Janeiro, 1969). Ora, a guerra é exatamente uma forma particular, especial, assumida por éris, a luta.

A luta, porém, tanto em Heráclito quanto em outros pré-socráticos, e ao longo mesmo da história do pensamento, só apresenta sentido, do ponto de vista antropológico. Nesse aspecto é meridiana a conclusão de Miguel Spinelli: “O indivíduo, deixado a si mesmo, independente de qualquer relação, isolado, não entra em conflitos, a não ser consigo mesmo. Em qualquer circunstância, é na relação que o conflito se dá. Por ser o filósofo do paradoxo, para Heráclito o conflito é a regra, sendo que a própria Natureza necessita, e muito, de um tal conflito” (Op. Cit., p. 196). É bom que se diga: onde Damião Berge traduz pólemos como guerra, a leitura de Miguel Spinelli é “conflito”.

A essas alturas alguém estará perguntando: “... mas, afinal, o que o Elisomero da Lagoa Vermelha tem a ver com esse tal Heráclito de Éfeso?” E a reposta é simples: “Tudo”. A contradição é a base da obra de nosso poeta. E os poetas antitéticos têm plena consciência disso, ao contrário de outros poetas. Leia-se o poema abaixo, de Elisomero:

EU... ANTÍTESE

Sou o fruto

de uma imaginação maior.

Sou o sonho de um Deus

numa noite de luar.

Sou efêmero

como a partida

e constante como a volta.

 Sou apenas abstrato

intocável como a lágrima

que não sai,

e concreto

como o sorriso

que se solta.

Sou o amante

do momento

do pôr-do-sol e do azul.

Do eterno,

do luar e do jasmim.

Sou o pensamento

de um Deus

e um poema de sua loucura.

Sou um silêncio... cantante.

Antonio Medina Rodrigues, num recente estudo sobre os sonetos camonianos, lembra a presença antiga da antítese na literatura de língua portuguesa, chamando a atenção para os abusos ocasionados pelo emprego excessivo dessa técnica, como define o estudioso de Camões. Este “.. não pratica um mero jogo verbal, como vieram a fazer, mais tarde, alguns poetas barrocos. Camões simplesmente exprime as contradições e perplexidades inerentes à própria vida humana. Quer mostrar o homem dividido, sobretudo entre a esfera do ser e a do parecer” (Roteiro de Leitura: Sonetos de Luís Vaz de Camões, págs. 66 e 67, Editora Ática, São Paulo, 1998).

Ora, todos os verdadeiros poetas, máxime os poetas antitéticos, ao contrário dos meros cometedores de versos, só produzem poesia porque conseguem exprimir essas contradições e perplexidades. É exatamente aquela “contradição consigo mesmo” de que fala Miguel Spinelli, o que dá vida à verdadeira poesia. O mais é mero discurso, simples oratória, e não arte poética.

Todos os verdadeiros poetas, máxime os poetas antitéticos, também, são movidos a emoção pura. Volto a Heráclito e ao fragmento 85 na clássica obra de Damião Berge (Ed. Cit., p. 277): “É difícil lutar contra o coração; o que ele quer, compra-se ao preço da psique”. Ora, o grego psychê, de onde psique, significa simplesmente vida. José Cavalcante de Souza, à página 87 de Os Pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários (2ª. Ed., São Paulo, Abril Cultural, 1978), parece verter o fragmento através do latim: “Lutar contra o coração é difícil; pois o que ele quer compra-se a preço de alma”, pois esta última palavra é originária de ánemos.

Os verdadeiros poetas, máxime os poetas antitéticos, conseguem produzir verdadeira poesia porque têm seu êthos no “coração”. Na transliteração/tradução de Miguel Spinelli (Id., p. 376): êthos, significa “morada, modo de habitar ou viver, índole, costume”, o que aplicado ao fragmento 85 dá no seguinte: “êthos antrôpôi daímon, o êthos humano é o seu daímon”. Lembre-se Damião Berge demonstrar que daímon (demônio), na Grécia de Heráclito, não envolvia o sentido atual de spiritus malitiosus ou malignus, mas de simples divindade (Id., págs. 194 e 195).

Sendo emoção pura os poemas, máxime os poetas antitéticos, têm pago um preço muito caro, geralmente com a própria psique/ánemos/vida. Muitas vezes morrendo cedo ou, como tantos ao longo da história, através do suicídio. Trata-se de éris/pólemos contra eles mesmos, num processo autodestruitivo.

Em Elisomero Moura essa batalha íntima é claríssima. Sirva de exemplo o poema DE TI:

Fale-me de ti.

Dos jasmins que enfeitaram teus passeios,

alvos e orvalhados nos teus fartos cabelos,

e das mãos que, os colheram

e docemente te ofertaram.

Fale-me de ti.

Dos cantos, das vozes que ouviste,

do barulho do cascalho na calçada,

das mãos que te embalaram

e afastaram as minhas.

Fale-me de ti.

Dos olhos que olhaste, dos rostos

que retrataste, das cores nos pincéis.

Do novo aluno que ensinaste o primeiro traço,

e de outro sorriso que se esboçou na alma.

Fale-me de ti.

Do pôr-do-sol no rio,

da maçã com gosto de menta,

de quem te visitou nas tardes de domingo

e te levou timidamente,

uma flor campestre.

Fale-me de ti.

Dos poemas feitos;

das frases quentes que te incendiaram as faces

e te fizeram o coração pulsar descontroladamente

e tuas mãos tremerem.

Fale-me de ti.

De todo este tempo que não foi nosso

que foi apenas dor, saudade e desengano.

Essa luta interior travando-se contra si mesmo, é uma violação da dialética universal. Tudo é porque há unidade e luta dos contrários, que se transformam numa nova qualidade. Sirva de exemplo a fecundação do óvulo pelo espermatosóide: o “amador”, de Camões, se transformado na “coisa amada”, que na verdade é um outro ser.

Pode, também, ser “loucura” como nos fala o poeta em “EU... ANTÍTESE”. Essa loucura é, em tantos poetas, ao longo da História, a oposição entre o êthos pessoal e o êthos coletivo, através do amor proibido. Teimo em retornar ao Efésio, no fragmento 123: “A physis tende a ocultar-se”, na tradução de Damião Berge (Ib., p. 123) ou “Natureza ama esconder-se”, conforme José Cavalcante de Souza ( Ed. Cit., p. 91).

Poetar é brincar de esconde-esconde com physis/natureza humana e ler poesia ou escrever sobre ela é desfrutar o prazer de acompanhar a brincadeira, nem sempre tão inocente do poeta. E Elisomero Moura é um mestre nessa brincadeira.

Referências

  1. Paulo Monteiro pertence à Academia Passo-Fundense de Letras, à Academia Literária Gaúcha e a diversas entidades culturais do Brasil e do Exterior.