Um encontro com a memória viva

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Um encontro com a memória viva

Em 31/07/2005, por Pedro Ari Veríssimo da Fonseca e Paulo Monteiro


Um encontro com a memória viva

VERÍSSIMO DA FONSECA e PAULO MONTEIRO[1]


Numa tarde quente de fevereiro de 2005, mantivemos uma longa entrevista com Leofrida Thevenet Barbieux, conhecida de toda a comunidade como Dona Gringa Barbieux, ou simplesmente Dona Gringa. É uma senhora que, graças à memória privilegiada e à lucidez que conserva aos 93 anos, tem servido de fonte para diversas pessoas que se aventuraram a contar a história passo-fundense dos últimos cem anos.

Seu pai, Mário Borges Thevenet, morador de Uruguaiana, era tropeiro de mulas e, nas suas longas jornadas rumo ao Planalto Paulista, costumava descansar seus animais nos campos de Passo Fundo. Como na lenda popularizada pelo historiador Jorge Edeth Cafruni, deve ter bebido da água do velho chafariz existente próximo à primeira moradia de homem branco, tomando a decisão de fixar residência por aqui, trazendo a família, constituída pela mulher, Matilde Pessano Thevenet, e os filhos, entre os quais estava Leofrida, nascida em 16 de setembro de 1912, então com 15 anos.

Quando a família de Mário Borges Thevenet chegou, Passo Fundo era o mais importante centro comercial, industrial e de serviços de todo o Norte do Rio Grande do Sul e Oeste de Santa Catarina. O município, em 1927, contava com diversas casas comerciais, além de madeireiras e moinhos de arroz, trigo e milho. Também possuía uma cervejaria artesanal, criada por João Corá, que abastecia todo o mercado, de Santa Maria a Marcelino Ramos.

"As garrafas de cerveja eram acondicionadas em caixas de madeira, com quadradinhos também de madeira. Para transporte mais longe, as garrafas eram empalhadas com palha de cevada. O lupo vinha da Tcheco-Eslováquia, enrolado em linho. A cevada era importada da Argentina. O transporte era feito em trens, e para onde estes não chegavam, através de carroças", conta Dona Gringa.

Em Passo Fundo, Leofrida casou com Walter Barbieux, técnico cervejeiro, filho de Jorge Barbieux. Este era filho único. Ficou órfão muito cedo e sua mãe casou com um viúvo que tinha dois filhos. Mesmo sem nunca esquecer de seus parentes na Europa, sempre manteve um espírito aventureiro, que o fez passar por diversos lugares até fixar-se definitivamente em Passo Fundo, em 1915.

Aqui adquiriu a Cervejaria Serrana, de Bramatti e João Cora, que foi ampliada, passando a produzir a Cerveja Gaúcha.

Em fins de 1918, Walter Barbieux foi para a Europa, estudando em Hamburgo, entre 1919 e 1925. Em 1926, iniciou-se a ampliação da cervejaria, com a importação de uma caldeira, que, desembarcada em Porto Alegre, foi transportada de trem até Passo Fundo. O transporte da caldeira da estação ferroviária exigiu o concurso de dois caminhões: um à frente, puxando-a; outro atrás, segurando-a nos declives. Assim, chegou até indústria movida por dois caminhões, um que puxava e outro que empurrava. A cidade parou para ver a operação de transporte.

Com o retorno do jovem técnico cervejeiro, a indústria foi modernizada. Tudo foi eletrificado. Gringa Barbieux lembra que, além de cerveja, a indústria produzia guaraná e limonada gasosa. "O guaraná, natural, vinha do Amazonas em tonéis. A limonada gasosa era produzida com limão natural que vinha de Marcelino Ramos. Todos os produtos eram naturais, com água natural, de um poço artesiano perfurado especialmente para isso. O limão era pasteurizado e conservado em garrafas de vidro, por isso sempre, inverno e verão, podia ser produzida a limonada. Apenas a na água de soda, ia um produto químico, o sódio. Além da Cerveja Serrana, era fabricada a Cervejinha Preta Gauchita".

"A cervejaria era a mãe da seca, pois as pessoas se beneficiavam do poço artesiano, ao tempo em que a cidade só dispunha da água de poço (não dispunha de água encanada). Walter era muito preocupado com a questão social e fazia questão de ceder água para todos. Nas épocas de seca, era uma verdadeira romaria de pessoas em busca de água. As secas sempre foram periódicas e freqüentes. Os moradores das casas próximas se beneficiavam regularmente da água cedida pela cervejaria, encanando-a, até as suas, residências. As pessoas portadoras de insuficiência respiratória valiam-se do oxigênio produzido na cervejaria, nas crises agudas. "Até Dona Jovina Vergueiro, esposa do Dr. Nicolau de Araújo Vergueiro, beneficiou-se de um tubo de oxigênio fornecido pela empresa", lembra Dona Gringa.

"A Cervejaria Serrana - acrescenta Dona Gringa - foi fundada por meu sogro, Jorge Barbieux, após comprar a pequena cervejaria de Bramatti e João Corá; e continuada por meu marido, Walter Barbieux e seu sócio Otto Bade, que vendeu sua parte para a Cervejaria Continental e, em 1945, foi totalmente vendida para a Cervejaria Brahma".

Comparando Passo Fundo de hoje com Passo Fundo da primeira metade do século passado, Dona Gringa Barbieux não tem dúvidas: A Cervejaria Serrana era a empresa que mais contribuía com impostos para o município. Os selos eram comprados na Coletoria Estadual e colados a mão. Uma fileira de piás, sentados em banquinhos, colavam os selos e bebiam gasosa, a bebida preferida da época. Antigamente, Passo Fundo tinha mais indústrias do que hoje. Aqui se produzia de tudo. As indústrias eram mais pesadas, mais diversificadas do que as de hoje. Se produzia quase de tudo em Passo Fundo", reflete, pensando na cidade onde viveu sua juventude, amou e foi amada pelo cervejeiro Walter Barbieux, com o qual constituiu família.

Referências

  1. Pedro Ari Veríssimo da Fonseca e Paulo Monteiro são membros titulares da Academia Passo-Fundense de Letras