Tradição do lazer entre os imigrantes
Tradição do lazer entre os imigrantes
Em 30/04/2006, por Santo Claudino Verzeleti
Tradição do lazer entre os imigrantes
SANTO CLAUDINO VERZELETI[1]
O Centro Cultural Ítalo-Brasileiro Anita Garibaldi, integrado na comunidade passo-fundense e cumprindo com seus objetivos específicos, se destaca pelas iniciativas de semear a cultura e resgatar os usos e costumes de seus ancestrais.
Com o apoio de Sérgio Rigo e Fernando Roveda, o Centro procura salvaguardar, entre outros usos, os jogos e diversões que trouxeram alegria às comunidades, no início da colonização, e se destaca pelas iniciativas de semear a cultura, as tradições e costumes dos que vieram dalém-mar.
Ao chegarem ao Brasil, os imigrantes italianos tiveram que começar, praticamente do nada, sua nova vida.
Segundo Ribeiro (2002), "na serra gaúcha, o imigrante começou a viver uma experiência inteiramente nova de agrupamento espacial, de adaptação ambiental, de relacionamento social, de proprietário rural, e de convivência com camponeses provenientes de outras províncias e regiões da Itália".
A vida social e cultural do imigrante foi sendo reconstituída, tendo como ponto de referência, quando organizada, a capela, onde se desenvolviam atividades religiosas, lúdicas, sociais e políticas.
A ausência de recursos para a prática de esportes e atividades recreativas, nas primeiras décadas, fez com que o lazer, sob forma de encontros familiares, se centrasse especialmente no filó.
Como institucionalização do lazer, o filó era uma reunião de famílias, para conviver, conversar, comer, jogar e cantar. Nesses encontros, floresceram a música, a poesia, o humorismo e, sobretudo, os jogos e brinquedos próprios da sua cultura.
Entre os diversos tipos de jogos, destacavam-se: o baralho (bisca, tressete, quatrilho, canastra, escova e escovão), a bocha e, o mais tradicional de todos, o jogo da mora, com suas diversas versões (a morina, a mora cantada, a mora corrida, a mora lenta e a mora muda).
Tanto durante a semana, no final da tarde, como aos domingos, após a missa ou o a reza do rosário, italianos e descendentes se reuniam para o entretenimento dos jogos.
O jogo da mora foi trazido da Itália, especialmente do Vêneto, e, no decorrer do tempo, se manteve entre os hábitos de recreação não só dos imigrantes, mas também dos seus descendentes.
Segundo Frei Aquiles Bernardi, autor de Nanetto Pipetta, "a mora consiste em acertar a soma dos dedos que os contendores expõem sobre a mesa, entre gritos e batidas, para encanto e emoção da torcida". É indispensável também que o jogador perceba que fez o ponto, e o diga em voz alta, caso contrário, o adversário continua (el da sora) e não se efetua a marcação do ponto.
A mora exige dos participantes movimentação rápida dos dedos e mãos, num alternar que encolhe, abre, fecha e bate, enquanto se ouve um veloz pronunciar dos números, de zero a dez: muta, uno (un), due (du, un per un, un per uno), tre (trr), quatro, cinque (sinque), sei (ces), sete, oto, nove, dieci (diese, o tuta).
Entre todos os jogos, o da mora era o preferido. Ele exige raciocínio rápido, cálculo matemático, agilidade e grande esforço físico, pelos movimentos repetitivos das mãos sobre a mesa.
Basicamente, o mecanismo do jogo se dá na soma dos dedos entre os jogadores, que os expõem na mesa, cantando em voz alta o número desejado.
Quem acerta a soma proposta, juntando seus dedos com os dedos do adversário, marca o ponto.
Em seguida, inicia-se com outro jogador a disputa de um novo ponto. As jogadas e trocas de jogadores se repetem sucessivamente, até chegar a 12, 15, 16 ou 21 pontos, que é a quantidade estabelecida para se ganhar uma partida.
Uma característica da mora é o barulho feito na mesa de jogo, quase sempre de madeira, tanto pelas batidas fortes, como pelas chamadas dos números em alto tom de voz.
Outro aspecto interessante é a chamada dos números pelos jogadores que, freqüentemente, substituem o número 3 (três) e o número 6 (seis) por um simples grito, sem referi-los especificamente.
A marcação do ponto também acarreta uma forte dose de comemoração, vi- bração e emoção.
Mas, o que mais distingue esse tipo de jogo é o exercício do raciocínio e da observação, uma vez que utiliza o processo da adição, exigindo alta concentração e reflexos para acompanhar as jogadas, às vezes realizadas em centésimos de segundo.
A mora é ainda hoje usada como diversão em praticamente todos os municípios do Rio Grande do Sul onde há comunidades italianas, tais como: Antônio Prado, Bento Gonçalves, Garibaldi, Caxias do Sul, Flores da Cunha, Santa Maria, Serafina Corrêa, Silveira Martins, Veranópolis, Vila Flores, São Roque, Passo Fundo, Sarandi e Rondinha. Gaetano Massa, de Roma, assim a descreve: "A mora era um dos jogos preferidos que caracterizavam os filós. Então, depois da reza do terço, reuniam-se em torno de uma mesa e jogavam. Fazia pontos quem acertasse o número sugerido, somando, vez-por-vez, os seus dedos abertos com os dedos do adversário. A habilidade consiste em, rapidamente, prever os cálculos ".
O vinho alegra o ambiente, e os participantes se revezam em um jogo que é pura diversão, não sendo disputado por dinheiro. No máximo, limitam-se ao pagamento de uma rodada de vinho ou cachaça, ou com inofensivos ioiôs e caramelos.
O desafio apresentado pela mora é tão simples quanto o cenário que exige. São pessoas jogando de pé, com apenas uma mesa entre elas e, opcionalmente, um ou dois juizes e/ou marcadores dos pontos.
O mais comum é a disputa entre duplas, mas o jogo pode envolver trios, quartetos e até quintetos.
Quando jogado entre pessoas experientes, ganha um ritmo quase violento para quem ouve e/ou observa, porque, se um jogador é bom, ele deve, sempre que possível, chamar antes do seu adversário. Daí a batida forte na mesa, marcando velozmente o compasso, e até, eventualmente, fazendo sangrar os dedos dos competidores.
Síntese do jogo
Eis, em resumo, como transcorre a jogada da mora:
a) duas pessoas frente a frente, com um objeto plano entre elas, normalmente, uma mesa;
b) cada jogador aproxima o braço do peito e dá a largada direta ou bate uma ou duas vezes na mesa, antes de começar a chamar;
c) cada jogador aponta de 0 a 5 dedos, concomitante com o adversário e, cada um chama um número;
d) a mão fechada, normalmente (a combinar), vale um dedo, pois o polegar poderá causar dúvidas;
e) faz o ponto o jogador que adivinhar a soma dos dedos apresentados sobre a mesa (se os dois chamarem número igual, mesmo que acertem, não é ponto e segue o jogo);
f) os pontos são marcados pelos próprios jogadores, ou por juiz/contador de pontos. (O mais normal é um juiz, mas, às vezes, são solicitados dois juízes. Neste caso, um para marcar os pontos e outro para cuidar da palavra cantada);
g) é comum o juiz fazer a contagem com os dedos apenas;
h) ao fazer o ponto, o jogador grita: mio ou sa la mora, ou alia mora, recolhendo o braço contra o peito, ou levantando-o e já se dirigindo ao outro adversário;
i) vence o confronto o jogador ou equipe que obtiver 12, 15, 16 ou 21 pontos. No caso de chegarem aos 11 pontos empatados (ou 12), param o jogo e combinam se será disputado só o ponto que falta, ou se serão acrescidas mais 5 ou 7 jogadas.
A morina
Uma variante do jogo da mora é a denominada morina.
Esse jogo começa com um dos jogadores chamando sempre o número 6 (seis).
O adversário poderá chamar os números do 2 (dois) ao 10 (dez), menos o 6 (seis).
O jogador que chama o jogo, marca o ponto, quando os dedos de sua mão, somados aos da mão do seu contendor, resultarem na soma 6 (seis).
O adversário, por sua vez, marca o ponto, quando a quantidade de dedos colocados por ele e seu oponente, resultar no número chamado, passando a partir dessa jogada a ter o direito de chamar o jogo com o 6 (seis).
O jogador que marca o ponto e não está chamando o jogo, passa a chamar com o número 6 (seis).
O ponto com o número 6 (seis) só poderá ser marcado por quem estiver chamando o jogo, que segue assim até um dos jogadores marcar. Quando os dois chamam o mesmo número, nenhum marca ponto.
Exemplo:
Tomamos o jogador da esquerda para o mando de jogo, que chamará, cantando sempre o número 6 (seis).
A mão do jogador da direita chamará os números de 2 (dois) a 10 (dez).
Se o jogador da esquerda chamou o 6 (seis) e colocou na mesa 5 (cinco) dedos, e o da direita chamou o número 10 (dez) e apresentou também 5 (cinco) dedos, a soma resulta em 10 (dez).
Nessa jogada, o jogador da direita marcou o ponto, que lhe dará o direito de passar a chamar o jogo com o número 6 (seis).
Outras versões do jogo da mora
Mora cantada - Os versos são introduzidos no jogo, como: cinque la mora cia; sei la mora, cia; mora la mora... continua-se assim até fazer o ponto, quando se canta o estribilho do início. Às vezes os concorrentes expõem os dedos, uma vez com a palma da mão para cima, outra para baixo.
Mora corrida - É a mais comum. Dois jogadores oponentes chamam qualquer número: due, sei, tr... - Ao fazê-lo, o jogador grita: Mio ou sa la mora, ou sei la ou alia mora. Troca então de adversário, passando a jogar com outra dupla.
Mora lenta - Também conhecida como punto-parola (ponto-palavra), os dois jogadores oponentes chamam indistintamente qualquer número - due, sei, ire... Antes de chamar, batem uma ou duas vezes na mesa. E segue como a anterior.
Mora muda - Uma dupla escolhe (ou sorteia) par e a outra ímpar. Nessa competição, a cada batida, tem-se um ponto.
A Revista Água da Fonte tem o prazer de levar ao conhecimento de todos as regras do jogo da mora, e de outras brincadeiras que tanto alegraram o povo italiano, durante os 130 anos que marcam sua presença no Brasil.
Referência
- ↑ Santo Claudino Verzeleti é membro das academias Passo-Fundense de Letrase e de Ciências Contábeis do Rio Crande do Sul; e Secretário geral do Centro Cultural ítalo- Brasileiro Anita Garibaldi.