Os negros em Passo Fundo
Os negros em Passo Fundo
Em 22/07/2013, por Paulo Domingos da Silva Monteiro
Os negros em Passo Fundo[1]
A data em que os negros aparecem na história de Passo Fundo está documentada: 23 de dezembro de 1637, quando a bandeira de André Fernandes ataca e toma a Redução de Santa Tereza de Los Piñales, no Pessegueiro. Expulsa os jesuítas espanhóis “empossando” como sacerdote local seu filho, o jesuíta paulista Francisco Fernandes de Oliveira. Como em todas as entradas e bandeiras aí estavam portugueses (brasileiros brancos), mamelucos (caboclos) e negros. Os bandeirantes aqui permaneceram durante várias décadas, deixando o seu sangue misturado aos dos “índios” que aqui ficaram numa aldeia nas proximidades de um lugar conhecido como “Barro Preto”.
Os negros somente retornariam a Passo Fundo quase dois séculos depois, também com os paulistas que retornaram para montar os primeiros carijós e produzir erva-mate.
Isso aconteceu apenas depois de 1816 quando Atanagildo Pinto Martins redescobriu o chamado Caminho das Missões. Três anos depois o tropeiro paulista João José de Barros, que lideraria a criação de Cruz Alta, passou por aqui transportando uma tropa de mulas. E, em 1822, Manoel Francisco Xavier e seu filho Francisco, juntamente com escravos e índios ervateiros passariam por aqui para montar um carijo em Palmeira, e comprar mulas, na Fronteira, que levou para vender em Sorocaba.
No final de 1827 ou princípios de 1828, chegou em Passo Fundo Manoel José das Neves que construiu um rancho provisório, nas proximidades da atual Praça Tamandaré. Ao redor da “casa” do novel fazendeiro, Manoel José das Neves, agregados e escravos ergueram suas moradias.
Ferido no Combate do Passo das Galinhas, em 24 de setembro de 1825, Manoel José das Neves requereu uma área de terras onde hoje fica a cidade de Passo Fundo. O documento concedendo quatro léguas quadradas de terras apenas foi emitido em 30 de novembro de 1831.
A pressa de Manoel José das Neves em tomar posse da terra solicitada era tanta que nem esperou pela autorização. Pegou a esposa, Reginalda da Silva, parentes, escravos, os tarecos que deixara em São Borja e se mandou para Passo Fundo. É que o “cabo” já conhecia o potencial da área requerida.
Ao redor da casa de Manoel José das Neves, além do “arranchamento” de parentes e escravos foram fixando residência outras famílias, contribuindo para o crescimento vertiginoso do novo povoado.
Praticamente arrasada durante a Revolução Farroupilha (1835-1845) a povoação de Passo Fundo recuperou-se rapidamente. Em 1850 já era mais próspera do que Cruz Alta, a sede do município.
Muito do desenvolvimento da Passo Fundo daqueles tempos se deve ao trabalho escravo. Era o “gado humano” que produzia a erva-mate, a madeira e os produtos agrícolas. Tudo o que dependesse de esforço físico era produzido pelos braços dos escravos.
A importância da mão de obra escrava e da participação do sangue africano para a formação da população passo-fundense pode ser comprovada ao analisarmos os resultados do censo de 1858.
Um ano depois de sua emancipação, através de recenseamento, apurou-se que o município de Passo Fundo contava 1.638 fogões, quer dizer moradias, totalizando 8.208 moradores.
No 1º distrito, sede do município e adjacências, eram 1.826 habitantes, sendo 1.534 homens e mulheres livres, 11 libertos, isto é ex-escravos, e 281 escravos. No 2º distrito (Campo do Meio) eram 505 livres, 13 libertos e 147 escravos, totalizando 665 moradores. No 3º distrito (Nonoai), num total de 451 moradores, eram 372 livres, 7 libertos e 72 escravos. Já no 4º distrito Jacuizinho, correspondendo ao atual município de Carazinho e municípios que dele se originaram, foram recenseados 1.310 habitantes, sendo 980 homens e mulheres livres, 15 libertos e 315 escravos. No distrito de Restinga, eram 938 homens e mulheres livres, 39 libertos, e 217 escravos, para uma população de 1.194 almas. No distrito de Soledade, também conhecido como Botucaraí, eram 980 pessoas livres, 16 libertos e 315 escravos, num total de 1.311 moradores. Finalmente, em Lagoão, entre 1.451 habitantes, eram encontrados 1.080 livres, 26 libertos e 345 escravos.
A população passo-fundense, em 1858, por sexo, estava assim distribuída, entre os três grupos (livres, libertos e escravos) em que se repartia a população da sociedade escravagista da época: 3.203 homens e 3.186 mulheres livres, totalizando 6.389 indivíduos; 72 homens e 55 mulheres libertas, perfazendo 127 pessoas; 940 escravos homens e 752 escravas, somando 1.692 almas. Finalmente, o total de homens que viviam em Passo Fundo, naquele ano era de 4.215 contra 3.993 mulheres, numa população total, como vimos antes, de 8.208 moradores.
Quando, ainda que rapidamente analisamos esses dados chegamos à conclusão de que mais de 22% da população passo-fundense era formada por negros e mulatos, com um razoável percentual de homens sobre as mulheres.
O percentual de negros e mulatos, superior a 20% da população total do município, desmente a afirmativa de que a presença do elemento africano foi pouco representativa em nossa formação social. Por outro lado, demonstra que escravos e libertos foram empregados nos trabalhos braçais, sejam nas lavouras, quanto na extração de erva-mate e madeiras, pois seu percentual, em comparação com os moradores livres era mais significativo nos distritos rurais do que no 1º distrito, onde estava a sede do município.
A emancipação de Passo Fundo contribuiu para o crescimento populacional e o desenvolvimento econômico do novo município. Como vimos pelo recenseamento de 1858, o território praticamente devastado pela Revolução Farroupilha na década anterior, recuperou-se rapidamente.
Do ponto de vista econômico, entre 1º de julho de 1857 e 30 de junho do ano seguinte, foram exportados 665.685 quilogramas de erva-mate, 285.125 dos ervais situados em terras públicas e 280.560 das terras particulares.
Em 1858 foram plantados 120 litros de arroz e colhidos 1.560; 280 litros de amendoim e colhidos 1.960; 280 litros de batatas e colhidos 3.360; 10.400 litros de feijão e colhidos 237.440; plantados 18.000 litros de milho e colhidos 1.800.000 e 1.600 litros de trigo e colhidos 19.200 litros.
Embora alguns historiadores insistam na tese de que existiram quilombos na Região, tecnicamente falando é mais uma invencionice motivada por razões ideológicas.
Várias foram as formas de resistência à escravidão: assassinatos de feitores e patrões, suicídios, sublevações e fugas para o recôndito das florestas, especialmente em locais protegidos por acidentes geográficos e se organizavam em quilombos.
A história oral preserva pelo menos dois casos de violências contra negros no antigo município de Passo Fundo. O primeiro deles narra que um grupo de escravos sublevou-se, matando um algoz branco, refugiando-se nos matos. Caçados por uma canoa policial os fugitivos acabaram presos e encerrados num paiol, em que eram guardados mantimentos, onde foram queimados vivos. A segunda aconteceu na área urbana. Conforme ouvi diversas vezes do Professor Edy Isaías, descendente de escravos passo-fundenses que lutaram na Revolução Farroupilha e na guerra contra o Paraguai, a ama-de-leite de uma família de origem castelhana, cujos nomes de pai e filho aparecem entre os líderes abolicionistas passo-fundenses, foi assassinada pelos mesmos. O mais novo deles encontraremos como oficial republicano durante a Revolução Federalista, ligado a um provável massacre de revolucionários. A jovem escrava amamentava um menino, quando este se afogou com o leite, vindo a falecer. Como represália, conduziram-na para os matos dos Valinhos. Amarraram-na a uma árvore. Cortaram-lhe os dois seios e ali a deixaram até morrer esvaída em sangue. Outra versão da mesma história, conta que a escrava teria se distraído e o menino caiu num poço, perecendo afogado.
Quilombo era, na África daquele tempo, nome aplicado ao local em que os prisioneiros ficavam concentrados até que os navios negreiros, em que eram transportados os escravos, aparecessem para conduzí-los ao lugar onde seriam vendidos. Os quilombos eram praças fortificadas, cercadas de fossos e paliçadas, impedindo que os presos conseguissem evadir-se.
No Brasil esse tipo de fortificação, ainda que conservando o mesmo nome, adquiriu finalidades diametralmente opostas: servir como refúgio e proteção dos escravos fugidos, impedindo a entrada dos escravagistas. Quando nos aprofundamos no estudo da História ficamos sabendo que quilombo tem um sentido eminentemente técnico. Na África, era a fortificação que impedia a saída dos prisioneiros e, no Brasil, o mesmo tipo de praça forte não permitia que os caçadores de escravos fugidos entrassem. Hoje, mais do que uma obra de engenharia, quilombo adquiriu um conteúdo político recentíssimo, significando qualquer local habitado por famílias de origem africana.
Embora alguns historiadores insistam na tese de que existiram quilombos na Região, tecnicamente falando é mais uma invencionice motivada por razões ideológicas.
Em nossa região, desde os primeiros tempos, os negros que buscavam a liberdade, refugiando-se no interior das florestas, eram acolhidos nas próprias aldeias indígenas. Acabaram consorciando-se com os nativos e foram absorvidos pelos seus hospedeiros, especialmente, os caingangues. Por isso é que muitos índios têm a pele mais escura do que outros índios, numa clara demonstração de mestiçagem racial.
Exemplo dessa miscigenação é o caso de um negro que “casou” com uma filha do Cacique Doble. Revoltou-se contra o oportunismo desse líder caingangue. Foi perseguido por Doble e seus amigos brancos. Tanto o “genro” quanto a filha e demais seguidores foram massacrados. O próprio Cacique Doble matou seus netinhos cafuzos a bordoadas.
Uma vez terminada a guerra contra o Paraguai os passo-fundenses que dela participaram – e que sobreviveram – retornaram ao município. A guerra ocasionou profundas conseqüências para todo o país, integrando novos segmentos na sociedade brasileira, especialmente os militares. O contacto dos veteranos com argentinos, uruguaios e paraguaios, que viviam sob regimes republicanos, e onde a escravidão dos negros já fora abolida, favoreceu o surgimento de idéias republicanas e abolicionistas. Quando essas idéias não eram francamente favoráveis à República e à Abolição pelo menos aumentaram a permeabilidade das elites brasileiras a essas mudanças.
A guerra contra o Paraguai marcou o fim do isolamento de Passo Fundo. A convivência dos passo-fundenses com brasileiros de todos os rincões, inclusive intelectuais que abandonavam nossas incipientes faculdades para combater no Chaco, abriu os cérebros daqueles que retornaram da guerra. Tanto isto é verdade que já no dia 13 de agosto de 1871, às 19 horas, com a presença de várias pessoas – brancos, naturalmente -, era realizada uma reunião abolicionista. A reunião foi aberta pelo Dr. Cândido Lopes de Oliveira, defendendo a necessidade de que fosse fundada uma “sociedade libertadora das crianças do sexo feminino”, a exemplo do que já ocorrera em diversas outras vilas e cidades, como Cruz Alta, Porto Alegre e na Capital do Império, que era o Rio de Janeiro.
Cândido Lopes de Oliveira preconizou que fosse adotado como modelo os estatutos da sociedade congênere de Porto Alegre, com pequenas modificações, como o donativo de dez mil réis, ao ano, por parte de cada associado. Propôs que o Dia da Independência fosse comemorado, anualmente, com a libertação do máximo de crianças que fosse possível libertarem com os recursos da sociedade.
O seguinte orador foi o major Antônio Ferreira Prestes Guimarães, que apoiou as propostas de Cândido Lopes de Oliveira e informou sobre medidas já adotadas, entre as quais a formação de diversas comissões abolicionistas nos distritos do município.
Com a aprovação unânime foi fundada a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense e aprovados por aclamação, Pedro Lopes de Oliveira, como presidente, e Antônio Ferreira Prestes Guimarães, como secretário geral. Passo Fundo inseria-se no Movimento Abolicionista.
A Assembléia que decidiu fundar a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense, no dia 13 de agosto de 1871, decidiu, também, delegar poderes para que o presidente, Cândido Lopes de Oliveira, e o secretário geral, Antônio Ferreira Prestes Guimarães, tratassem de organizá-la com vistas a realizar uma grande festa no dia 7 se setembro seguinte. Cândido Lopes de Oliveira afirmou que, como vereador, apresentaria proposta à Câmara para que fossem colocados em uma tabuleta e registrados em livro próprio os nomes dos sócios presentes, sendo declarados beneméritos.
Foram fundadores da Sociedade Emancipadora de Passo Fundo as seguintes pessoas: Cândido Lopes de Oliveira, Antônio Ferreira Prestes Guimarães; Nicolau José Gomes; Matheus Gomes Nogueira; Joaquim Gonçalves Gomide; Ludovig Morsch; Joaquim Dias Medeiros; Amâncio dOliveira Cardozo; Ramon Rico; Cecília Rico; Cícero Melquíades de Figueiredo; Francisca de Mata Figueiredo; Celina de Figueiredo; Zoraida de Figueiredo; Tacir de Figueiredo; Theóphilo Rodrigues da Silva; Mathilde Teixeira de Moraes; Jorge Meister; Pantaleão Ferreira Prestes; Padre Antônio da Rocha Pinto; José Francisco de Oliveira; José Pinto de Moraes; Antônio José de Almeida Teto; Antônio José da Silva Loureiro; Guilhermina Pedrina de Oliveira; João Müller; Francisco de Barros Miranda; Antônio Ferreira de Albuquerque Netto; Bento Martins da Cunha; Manoel Francisco de Oliveira; Joaquim José de Andrade Pereira; Pedro Ferreira da Silva; Polycarpo Ferreira da Silva; Guilherme Block; João Severiano Marques da Cunha; Felicidade Maria Vieira Martins; Maria Luiza Gomes; Affonso Maria Vieira Martins; João Henrique Luiz Daerve; Francisco Teixeira Alves; João Teixeira Procópio; Cesário Antônio Lopes; Manoel Ferreira Carpes; Tibiriçá Tobias de Oliveira; Diogo José de Oliveira (que concedeu liberdade a uma escrava); Manoel José Gomes Ferreira Pedra; João Gabriel de Resende; Leôncio Osana Rico; Adão Rico; Cantalício Rico; Carlos Gosch; C. V. Reutter; Jorge Sturm Filho; Rufino Antônio da Silva (que também libertou uma escrava); Mariano Antônio de Assumpção; Manoel Nunes Vieira; Francisco de Paula Vieira; Maria Joana Vieira (que declarou livre uma escrava) e Anna Thereza Prestes (outra que concedeu liberdade a uma escrava).
Ao estudarmos a organização da Sociedade Emancipadora Passo-Fundense, um detalhe que salta aos olhos é a presença significativa de mulheres, numa sociedade dominada pela presença de pioneiros. Outro ponto que merece destaque é a presença de nomes conhecidos na história de Passo Fundo, o que demonstra a profundidade alcançada pelo movimento abolicionista.
Em folheto divulgado, ainda no mesmo ano de 1871, a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense comemorava as festividades promovidas no dia 7 de setembro daquele ano, lembrando que, em apenas três semanas, foram libertadas “seis inocentes crianças, quase todas brancas”, com os fundos da sociedade, “além de quatro adultas – por liberalidade dos seus senhores”. Um detalhe importante é que as crianças libertadas eram “quase todas brancas”, demonstrando que a miscigenação entre brancos e negros também se verificava em Passo Fundo.
Depois de um ímpeto inicial, o movimento abolicionista passo-fundense sofreu um decréscimo. Talvez se explique pela profunda crise que afetou a economia local nos anos que se seguiram ao fim da guerra contra o Paraguai.
Assim, no dia 3 de setembro de 1884, o vereador Antônio Ferreira Prestes Guimarães, lembrando a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, propôs a criação de um livro ouro, para registrar as atas das reuniões objetivando a abolição da escravatura de das pessoas que, espontaneamente, libertassem seus escravos.
O movimento alcançou grande repercussão, tanto que, no dia 28 de setembro de 1884, reunida solenemente, a Câmara de Vereadores proclamou a libertação de 300 escravos, seguindo-se um culto solene e um Te-Déum na Matriz, hoje Catedral, em comemoração ao ato, além de festejos populares.
No dia seguinte, os vereadores passaram telegrama ao presidente da Província, que terminava com as seguintes palavras: “Vai desaparecer a mancha negra”.
Como podemos ver o movimento abolicionista passo-fundense inseria-se dentro do mesmo processo em nível nacional. Tanto isto é verdade, que a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense foi fundada no dia 13 de agosto de 1871, pouco mais de um mês antes da aprovação da Lei do Ventre Livre. Tinha o objetivo de libertar as crianças do sexo feminino.
O movimento diminuiu logo depois, reiniciando-se, no ano de 1884, menos de quatro anos antes da proclamação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.
Em 1886, a Câmara de Vereadores comunicava à Assembléia Provincial que havia instituído um imposto de 200$000 réis por escravo introduzido no município, com exceção aos que coubessem por herança a órfãos e interditos, aqui residentes. Informava, ainda, que a escravidão estava praticamente extinta em Passo Fundo.
Com dinheiro de impostos e a abertura das burras prefeiturais estava praticamente eliminada a escravidão negra. Generosamente nossos senhores de escravos abriam mão do trabalho do “gado humano”, indenizados com o dinheiro público. Aqui, pelo menos, contrariando a historiografia oficial, a libertação dos escravos não provocou nenhuma “crise na lavoura”.
A grande dificuldade para reconstituir esse período histórico é que a maioria dos documentos daquela época foi destruída pelas autoridades constituídas. Preservaram apenas os papéis que lhes interessavam, como aqueles que perenizaram os nomes dos abolicionistas locais, que iam a reboque do movimento abolicionista de Porto Alegre e da Capital do Império.
Para concluir, o estudo da presença do negro e da mão-de-obra escrava na Passo Fundo dos primeiros tempos salienta a importante contribuição dos negros para o crescimento da população local e regional. A elevada quantidade (quase ¼ da população) comprova que o trabalho escravo, no Planalto Rio-Grandense foi muito mais importante do que apregoam os historiadores áulicos.
Referências
- ↑ O texto acima está publicado, resumido por questão de espaço, na Revista Somando, Número 149, Ano XV, Agosto de 2009