Os Olhos do General e o Coração do Caudilho

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Os Olhos do General e o Coração do Caudilho

Em 28/05/2008, por Paulo Domingos da Silva Monteiro


Os Olhos do General e o Coração do Caudilho[1]


Prefeito Wilson Roberto Bastos dos Santos, de Cruz Alta, vice-prefeito Adirbal da Silva Corralo, de Passo Fundo, em quem saúdo as demais autoridades, presentes ou representadas;


Estimados confrades e queridas confrades;


Senhoras e Senhores;


Meu caro Rossano Viero Cavalari;


É uma das responsabilidades estatutárias do presidente da Academia Passo-Fundense de Letras designar oradores para as solenidades do sodalício. Chamei-me a mim mesmo a responsabilidade da minha autodesignação. De início, vês o excesso pleonástico.

Cresci ouvindo nos serões de família histórias de Firmino de Paula e Silva, o Firmininho, Pai, para diferenciá-lo do Firmininho, Filho. Em minhas veias corre sangue dessa gente.

Tua obra histórica é das mais importantes já produzidas na Região Serrana. Agregas aos dados históricos o estilo jornalístico. Impossível, nos teus livros, separar o historiador do radialista. Eis aí o que dá vida às tuas páginas.

Escolheste o mais difícil campo da História, a história imediata, no seu aspecto local, onde a proximidade com ações e atores sociais, gera um envolvimento sentimental, que tu muito bem o transmites até mesmo no título poético, Os Olhos do General, do teu livro.

Encontraste uma saída literária, a linguagem poética, enquanto instrumento para falar sobre uma personalidade importante da história regional. Como “De poeta e de louco todo mundo tem um pouco”, no conceito marmóreo da sabedoria popular, a poesia oferece condições ótimas para auxiliar na biografia de individualidades que apresentam “estados psicopatológicos”, na expressão de Alberto Pasqualini, ou “mentalidades de gangsteres”, na clássica definição de Lord Acton.

Uma de minhas bisavós maternas, senhora de bois e terras em Cruz Alta, parenta próxima do General Pitoco, era visceralmente má. Idosa, foi morar junto à casa de meu bisavô. Sacerdotisa que exercia um ritual maligno, como uma personagem viva das histórias de bruxas, cozinhava em panelas penduradas numa trempe. Após sujar seus cozidos com cinza, ao meio-dia ou ao entardecer, quando o filho chegava do campo, ia encontrá-lo denunciando os netos como autores dessas diabruras. Os olhos da megera luziam ao ver meu bisavô aplicar uma tunda de rabo-de-tatu nas crianças e brilhavam ainda mais quando os netos, cabisbaixos, pedindo sua bênção, iam alcançar-lhe um prato de alimentos, em cumprimento às ordens do pai espancador.

Meu caro Rossano, tiveste a coragem de apertar as mãos do carniceiro do Boi Preto e perguntar-lhe: “Por que Firmino de Paula foi um dos homens mais temidos de seu tempo?”

Quero ter, nesta noite, a mesma coragem para entrar no coração dos caudilhos.

A caudilhagem, a sociedade material e espiritual dos caudilhos, era plasmada ainda na infância. Os próprios pais gravavam a tara caudilhesca, na acepção clínica da palavra, a rabo-de-tatu, nos lombos de meninos e meninas.

“O caudilhismo, na América do Sul, é a forma organizada da criminalidade política.

“As suas agressões não são contra a propriedade, senão acidentalmente, e, em geral, sob forma de extorsões. As investidas do caudilhismo, como expressão de delinqüência, são contra a vida, contra a liberdade, contra o exercício dos direitos políticos e sociais.

“Ele é o maior e mais feroz inimigo da democracia e para combatê-la, congrega e mobiliza todas as forças da criminalidade nativa.

“O caudilhismo, no Rio Grande, é de formação guerreira. As guerras o geraram, as revoluções o expandiram, a política o aproveitou.”


Não são palavras minhas. Proferiu-as no Theatro Guarany, de Pelotas, em 27 de agosto de 1934, um jovem advogado de 32 anos, Alberto Pasqualini.

E logo adiante, o combativo militante do Partido Libertador, fez uma das descrições mais precisas da exteriorização caudilhesca, nestas palavras lapidares:

“Há duas espécies de caudilhismo: o caudilhismo de cima e o caudilhismo de baixo; o caudilhismo que manda e o caudilhsimo que obedece. “O habitus caudilhesco exterioriza-se e pode ser observado até em certas particularidades da indumentária, das atitudes e da postura do corpo. Quando, por exemplo, em pleno coração de uma cidade civilizada, onde as pessoas procuram distinguir-se pela elegância do traje e pela suavidade do trato, encontramos indivíduos enfiados em capas de provisórios, olhar turvo, costeletas puxadas até o queixo, aba do chapéu quebrada aos olhos, um cano de 44 emergindo meio palmo da orla do casaco, temos a certeza, quase absoluta, de que estamos na presença de espécimes do caudilhismo baixo. Ninguém se sente seguro perto desses tipos, a não ser dentro de um carro blindado ou tendo em cada braço uma metralhadora”.


Alberto Pasqualini, um dos pensadores mais lúcidos que o Rio Grande produziu, jamais chegou ao governo do Estado porque não o permitiu certo caudilhismo alto, de tipos também facilmente reconhecíveis, ainda hoje. E isto está historicamente documentado.

Firmino de Paula e Silva é um dos mais típicos espécimes do caudilhismo alto, assim como Adão Latorre o é do caudilhismo baixo. O primeiro, rico, branco, filho da nobreza estancieira, frio e sanguinário, sempre elegantemente vestido, chegou a general honorário do Exército Brasileiro; o outro, negro, pobre, nem se sabe se africano ou crioulo, com a velha bombacha de brim, morreu varado a balas entrincheirado atrás do próprio cavalo morto, segurando uma carga da Brigada Militar, comandada pelo coronel Claudino Nunes Pereira, na Revolução de 23. O general Firmino de Paula acabou seus dias louco ordenando ao próprio neto que prendesse e degolasse o prato de comida que o menino, generosamente, lhe alcançava.

Firmino de Paula e Silva ficou tristemente célebre pelo Massacre do Boi Preto. Não se pode entender essa hecatombe sem estudar o Massacre do Rio Negro. Estou escrevendo a história desta monstruosidade. Foi entre o meio-dia de 28 de dezembro de 1893 e o amanhecer seguinte.

Forças republicanas cercadas na Estação Ferroviária de Rio Negro, hoje Hulha Negra, renderam-se. Totalizaram mais novecentos prisioneiros.

Tratados como se fossem animais bravios, os vencedores encerraram-nos numa mangueira de pedra. Muitos deles eram mercenários correntinos. Laçados um a um, eram arrastados pela porta da encerra. Adão Latorre, um negro carneador das estâncias dos Tavares, prateada na mão, encarava o prisioneiro:

- Diga “não!”, ordenava o carrasco para ver se era um odiado caraco ou brasileiro.

Despiam-no. Castravam-no como se fazia com os touros chimarões. Era para que os hormônios masculinos não deixassem mau cheiro na carne que seria devorada pelos animais carniceiros. Desgarronavam-no, como também se fazia com o gado xucro.

O martirizado continuava arrastado. Às margens de uma lagoa – a Lagoa da Música imortalizada por Pedro Wayne – era degolado, ainda como se gado fosse. Em muitos a degola foi de orelha a orelha; a maioria, porém foi a degola de lado: um pontaço com precisão cirúrgica, ao lado da jugular, seguido de um leve e rápido movimento da ponta da carneadeira para o outro lado da artéria. A aorta era aparada. O sangue jorrava em bica. A vida se extinguia em poucos minutos. Geralmente, a vítima corria oito braças – quase uns dezoito metros – e caía de borco, braços abertos, como se crucificada contra o chão.

Assustam-se da descrição? Pois, em 1903, Florêncio Sánchez, jornalista e teatrólogo uruguaio, falando das atrocidades caudilhescas no Rio Grande do Sul, definia Rio Negro, como um dos episódios de menor valor. Coisas piores aconteciam!

Quantos morreram em Rio Negro, quem foi o mandante, quem executou a chacina, ao certo jamais saberemos. Indícios e testemunhos apontam o mando para o próprio general João Nunes da Silva Tavares, o Joca Tavares, comandante máximo do Exército Libertador, a chefia da execução pelo coronel José Bonifácio da Silva Tavares, o Zeca Tavares, irmão do ordenador, cabendo a degola a um piquete comandado pelo então major, depois coronel, Adão Latorre. Este, pessoalmente, executou muitos prisioneiros, como o terrível coronel republicano Manoel Pedroso de Oliveira, o Maneco Pedroso. Um pulpeiro (bodegueiro) judeu que negociava a um quilômetro e meio dos acontecimentos, afirmou que foram entre trezentos e quatrocentos os degolados.

No dia 9 de abril de 1894, no Capão do Boi Preto, hoje no município de Chapada, a 5ª Brigada, comandada por Firmino de Paula, cercou uma força maragata. A operação foi adredemente planejada. O futuro general honorário do Exército Brasileiro mandou preparar centenas de tentos. Cercou o capão e, ao clarear do dia, investiu contra os sitiados. Conforme telegrama transcrito à página 83 de Os Olhos do General, 370 morreram. Nenhum atacante, – mas nenhum mesmo – sequer foi ferido, o que testemunha o massacre.

O historiador palmeirense Mozart Pereira Soares, cujo pai era um dos degoladores das forças de Firmino de Paula, afirma que 370 prisioneiros foram degolados.

Homem probo e bem informado, filho de degolador presente no local da chacina, Mozart Pereira Soares não seria leviano de afirmá-lo com todas as letras se não fosse verdade.

No Boi Preto, os homens de Firmino de Paula apenas puseram em prática uma tradição das revoluções gaúchas de ambos os lados do Uruguai: degolar prisioneiros e até mesmo os mortos. Assim, quem morreu ou o foi pela degola ou foi degolado depois de morto.

O general maragato passo-fundense Antonio Ferreira Prestes Guimarães era useiro e vezeiro nessa prática. Ficou tristemente famoso no Combate do Jararaca, travado em 27 de março de 1893, em Alegrete, onde, inclusive prendeu o coronel Joaquim Thomaz dos Santos Filho e Silva, que resistira bravamente entrincheirado numa mangueira de pedra.

Gargantas de prisioneiros e mortos conheceram o fio das chavascas dos comandados de Prestes Guimarães. E Firmino de Paula só escapou das lâminas das traíras porque abriu os dedos com seus comandados, perseguidos e fustigados por mais de vinte quilômetros. Os que tombaram pelo caminho, feridos ou mortos, receberam como ornamento a gravata colorada, obséquio dos colorados de Prestes Guimarães.

Jararaca é a primeira grande derrota de Firmino de Paula diante dos homens do caudilho passo-fundense; a segunda – e de toda a Divisão do Norte –, ocorreu no dia 6 de junho de 1894, no Combate dos Três Passos, aqui mesmo, em Passo Fundo. Uma carga da cavalaria maragata, em forma de meia lua, sobre a vanguarda pica-pau, formada principalmente pelos homens de Firmino de Paula, levou estes a um recuo desordenado, atropelando a infantaria republicana. Uma centena e meia centena de legalistas ficaram no campo de batalha, nus, devido ao saque, e com as jugulares cortadas pelas facas dos lanceiros de Prestes Guimarães. Como no Combate do Arroio Jaracaca, nem mesmo os mortos foram poupados.

Meu caro Rossano, eu não tenho a menor pretensão de substituir-te na história dos acontecimentos militares em que Firmino de Paula se envolveu.

Aqui mesmo, neste local, em princípios de 1923, os próceres passo-fundenses do Partido Republicano Rio-Grandense, através do Clube Pinheiro Machado, vieram lamber-lhe as botas e beijar-lhe as mãos tintas de sangue.

Conta o genealogista César Lopes, aqui presente, que ouviu de sua mãe, Irena Lúcia Knack, uma das fundadoras do Grupo Pró-Memória de Passo Fundo, que, semanas antes das honrarias aqui recebidas, ao ver sua cavalaria recuar ante os libertadores entrincheirados na coxilha que separa o Rio Passo Fundo do Arroio Miranda, os olhos do general se estanharam. Enlouquecera.

O fato ocorreu nas quase no encontro das ruas Paissandu e Benjamin Constant. Ao ver seus comandados pararem diante dos libertadores dos coronéis João Issler e Fernando Goelzer, o General Pitoco iniciou uma gritaria: “Degolem! Degolem! Degolem tudo!” Depois, retornou para o seu posto de comando na Gare da Viação Férrea, protegido por um trem blindado.

Rossano, seguindo o teu modelo, guiado pelas mãos das Musas, vejo Firmino de Paula estático. A sua frente o fantasma do general Antonio Ferreira Prestes Guimarães. Vieram-lhe à memória as fugas desesperadas, através dos campos do Alegrete, em 27 de março de 1893, ou atropelando a infantaria de Santos Filho, em 6 de junho de 1894, nos Três Passos. Pela terceira vez lanceiros revolucionários lhe obstavam a passagem.

De repente, ele mesmo que fugia. Velho, caíra ferido. Sobre ele, carneadeira na mão, lenço vermelho ao pescoço, o degolador. Não era um negro Adão qualquer, mas o próprio general Antonio Ferreira Prestes Guimarães. Não sarou mais. Passou a ter crises cada vez mais freqüentes. Enlouquecera mesmo.

Guiado pela Poesia entro no coração do caudilho e sinto que ao ordenar que o netinho prendesse e degolasse um inofensivo prato de comida ele queria é que fosse preso e degolado o único caudilho federalista que conseguiu batê-lo.

Para encerrar, meu caro Rossano, usando a feliz expressão de nossa querida amiga em comum, professora Lourdes Solange Schimidt, foste generoso com o general. Eu, porém, que carrego nas veias sangue dessa raça de víboras, os caudilhos rio-grandenses, não posso demonstrar qualquer generosidade para com a caudilhagem daqueles tempos e de nossos tempos.

A história da caudilhagem é uma sucessão imensurável de roubos, latrocínios, estupros e massacres. E é insustentável o argumento de que os caudilhos devem ser julgados segundo o ambiente em que viveram. Aceitá-lo seria negar o que mesmo leis ancestrais, como o Código de Hamurabi e o Decálogo Bíblico, sempre reconheceram as práticas caudilhescas como crimes dos mais graves que alguém poderia cometer; aceitá-lo seria admitir a vontade própria de cada um como única e universal norma de Direito.

Parabéns, Rossano, pelo que tens escrito. E, através de Os Olhos do General, entremos no coração da caudilhagem, e rasguemo-lo para que possamos viver em paz.

Passo Fundo, 28 de maio de 2008

Referências

  1. Discurso pronunciado pelo acadêmico Paulo Monteiro, presidente da Academia Passo-Fundense de Letras, em saudação ao historiador cruz-altense Rossano Viero Cavalari, no dia 28 de maio de 2008