Orfelina Vieira Melo: Fostes uma mulher
Orfelina Vieira Melo: Fostes uma mulher
Em 06/10/2005, por Welci Nascimento
Panegírico de Orfelina Vieira Melo: Fostes uma mulher[1] [2]
WELCI NASCIMENTO[3]
A maternidade é muito mais do de espírito. Uma condição de ser e um estado de espírito que são produtos de condicionamento social.
Tradicionalmente, o papel da mulher se caracterizou, em quase todas as sociedades, pela importância nela dada a qualidades como doçura, sentimentalidade, paciência, fidelidade, espírito de sacrifício.
Não é na maternidade física que a mulher se realiza plenamente. Não é a imagem da fêmea rodeada de crias. A maternidade não se identifica com o ato biológico de gerar e dar à luz.
A madre Tereza, de Calcutá, nos oferece o mais sublime exemplo de maternidade, sem ter nunca levado um filho em seu ventre.
Condicionamentos diversos parecem impor limites à maternidade física no mundo de hoje. Exige-se que se reforce mais a espiritualidade maternal, condição de ser da mulher.
Neste dia, neste momento, a Academia Passo-Fundense de Letras louva a vida de Orfelina Vieira Melo, parte ativa deste sodalício, que por muitos anos tivemos o privilégio de contar com seu convívio, enaltecendo esta casa de cultura.
A Orfelina se instruiu, se profissionalizou, tomou parte ativa e direta nos processos políticos, culturais e religiosos, ao mesmo tempo em que assumiu a maternidade.
Orfelina foi capaz de superar, pela vontade, o cansaço do seu corpo e da sua mente. Foi uma mulher na expressão física e na maternidade.
Teve muitas virtudes.
A primeira, a nosso ver, foi a de ser mãe. As filhas foram suas maiores riquezas. Com elas, na companhia delas, soube viver, apesar de estar sempre ocupada com o povo da sua comunidade.
No entanto, a mãe sempre encontrava tempo para educá-las, muitas vezes brincando, no dizer da sua filha Lucimar.
Orfelina foi uma eterna estudante. "Sempre há o que se aprender", dizia.
Depois de completar seus estudos, que lhe deram o título de professora, trabalhar e galgar a aposentadoria, resolveu cursar Teologia no Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo.
Fiquei surpreso, um dia, ao ver a companheira Orfelina sentada no banco escolar do Instituto. Eu, na ocasião, era professor daquele educandário. Surpreso, perguntei - O que estás fazendo aqui? Respondeu-me Orfelina, graciosamente: “Estou cursando Teologia”!
Galgou o curso até o fim, ao lado de jovens.
O magistério foi a sua vocação. Soube exercer com maestria e dignidade. Por onde passou, deixou marcas indeléveis.
Uma outra qualidade da Orfelina era o amor pelo Rio Grande do Sul. Desde a sua juventude fez parte ativa do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Nos congressos realizados nos mais distantes pontos do Rio Grande, lá estava a Orfelina, representando Passo Fundo e o seu CTG Getúlio Vaigas.
Quando tive a oportunidade de dirigir os destinos da Secretaria Municipal de Educação de Passo Fundo, nos primeiros anos da década de 80, tive o prazer de convidar a professora Orfelina para coordenar um programa de implantação do ensino do folclore gaúcho nas escolas da rede municipal. Orfelina coordenou o programa e o implantou com perfeição. O sucesso do projeto teve repercussão estadual e nacional, sendo notícia no jornal O Estado de São Paulo.
Orfelina foi uma mulher religiosa, de fé. Desde cedo se fez presente nos movimentos de leigos da Igreja Católica. Ela se envolvia com a comunidade. A integração com a cidade e seu povo sempre foi a sua marca, até o final da sua vida aqui na terra.
Que o digam as pessoas da Casa Lar, do Grupo de Prevenção às Drogas, do Grupo de Portadores de Insuficiência Renal, do Pró-Memória, da Fazenda Esperança, do Conselho de Idosos, da Pastoral da Saúde do Hospital São Vicente de Paulo, do CREATI, da Academia Passo-Fundense de Letras e tantos outros segmentos da sociedade.
Ela era uma passo-fundense orgulhosa. Sabia da história da sua terra. Quando se aproximava a Semana do Município, Orfelina se envolvia com produções literárias de Passo Fundo.
A última vez que tive contato com a companheira Orfelina foi por ocasião do lançamento do livro "Ruas de Passo Fundo do Século XIX", no gabinete do prefeito municipal Aírton Dipp. Lá estava ela para prestigiar o lançamento de mais um livro. Aliás, outra qualidade que lhe era peculiar, ela testemunhava os acontecimentos da cidade.
O ingresso da Orfelina Vieira Melo nesta Academia enriqueceu nosso acervo literário. Ela era uma presença constante. Sempre. Quando menos se esperava, pois sabíamos que se encontrava constantemente enferma, em tratamento, eis que surge Orfelina, subindo as escadarias da Academia, sozinha ou acompanhada por uma de suas filhas, para se fazer presente na reunião ordinária mensal. O que alguns não fazem, regularmente.
Seu livro "Espiritualidade na Terceira e melhor idade", editado em 1992, sua primeira obra, já alcançou cinco edições em nível nacional, hoje impresso pela editora Ave-Maria, de São Paulo.
A expectativa de vida aumenta e o percentual de idosos começa a crescer no final do século 20. Mas nem sempre os idosos recebem a consideração e o respeito que merecem.
A trilogia sobre os idosos: "Espiritualidade na Terceira e melhor idade", "O Idoso Cidadão" e "Aposentadoria: Prêmio ou Castigo" enaltece as pessoas idosas. Em uma de suas obras Orfelina clama: - "Idosos, meus irmãos, meus companheiros, meus mestres, tudo por vocês..."
Dom Urbano Algayer prefaciou a obra de Orfelina. Disse: "Recomendamos a leitura deste livro, não somente aos idosos, mas também a quem deseja preparar-se para uma velhice feliz".
Disse Orfelina: "Avançar na idade traz para muitas pessoas o temor da velhice e a angústia da morte que se aproxima". Ela conseguiu fazer essa caminhada com tranqüilidade, naturalidade e firmeza. E concluiu: "É preciso saber viver, sofrer, amar e morrer com a certeza da ressurreição em Jesus Cristo".
O livro que agradou o mundo tradicionalista regional foi o "Resgate da Música Gaúcha em Passo Fundo", escrito em 1998.
A obra resgata o que houve de mais significativo na expressão da musicalidade regional. Conta a trajetória dos músicos de Passo Fundo que tocavam pelo belo prazer de tocar, especialmente os gaiteiros. Das duplas, trios e conjuntos musicais, desde Teixeirinha, homens e mulheres de Passo Fundo que fizeram sucesso divulgando a música regionalista gaúcha.
Os últimos trabalhos literários da Orfelina estão contidos na Revista desta Academia, Água da Fonte. Orfelina Vieira Melo ocupou a cadeira n° 3, cujo patrono é o romancista e contista gaúcho Alcides Maya, nascido no final do século XIX, em São Gabriel, e falecido no Rio de Janeiro em 1944.
A cadeira n° 3 está vaga com a morte da companheira Orfelina Vieira Melo.
Ela conseguiu superar o cansaço do seu corpo e da sua mente.
Conseguiu a calma e o bom senso num mundo que delira.
Ela creu nela mesma e em Deus, com a força das grandes convicções.
Ela foi capaz de esperar sem perder a esperança.
Com sua simplicidade respeitou as pessoas e aproveitou todos os minutos da sua vida para edificar uma obra.
Fostes uma mulher.
Alegremo-nos!