O homem que criava gigantes
O homem que criava gigantes
Em 04/08/2000, por Gleber Pieniz
O homem que criava gigantes[1]
GLEBER PIENIZ
Há quatro anos morria Paulo de Siqueira, o escultor que extraía do metal a vida dos mitos
Gaúcho de nascimento, catarinense por opção, Paulo de Siqueira é mais um daqueles artistas cuja vida é eclipsada pela grandiosidade da própria obra. O fim do mês de julho marca tanto os 51 anos que jamais completou quanto os quatro anos de sua morte em decorrência da aids, um fato que pouco abalou a cena cultural do Estado graças à natureza polemista e pouco afeita à badalação do escultor, pintor e muralista nascido em Soledade, criado em Passo Fundo e radicado em Chapecó. Pelos menos 13 municípios de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul e Argentina têm algum dos seus gigantes de sucata, obras catalogadas desde 1994 pela arte-educadora Maria Helena Scaglia através de uma pesquisa que ainda está longe de terminar: a joinvilense já listou 32 monumentos (peças com mais de dois metros e meio), 38 esculturas, uma dezena de painéis e algumas poucas pinturas."Siqueira não tinha o hábito de registrar suas criações, às vezes sequer as assinava e se desfazia delas com facilidade, trocava por muito pouco", explica. "Tem muita gente com obras suas que foram dadas como forma de pagamento".
Cada gigante de sucata criado por Siqueira é, na verdade, a potencialização do efeito fantástico das lendas, a metalização dos mitos, a observação da atividade humana através de uma lupa lírica e mágica: aos olhos do escultor, deuses, heróis e santos se confundem com o homem em meio ao fogo que forja a onipotência. Apesar de erigir seus monumentos a partir de refugos de metal, Siqueira procurava dar aos seus gigantes a forma mais humana possível, inflando músculos a partir de engrenagens e estruturando ossos a partir de eixos, deslocando peças que antes tinham relevância por sua função para um universo artístico onde se realizam através da forma.
Em Porto Alegre, é "Mercúrio" quem saúda os viajantes que desembarcam na rodoviária e conduzem o olhar em direção à cidade; em Serafina Corrêa, uma barca de trinta metros eterniza em metal a saga da colonização italiana; "O Fundidor" lembra aqueles que circulam por Joinville de que ao seu lado trabalha incessantemente a Fundição Tupy. Em Chapecó, cidade pontilhada por trabalhos de Siqueira, erguem-se do pedestal "O Desbravador", o "Índio Condá", os "Alienígenas" e o "Estudante". Passo Fundo, onde morou por muitos anos, tem por sua vez "O Ferroviário", o "Cavalariano" e o cantor Teixeirinha, obras que se misturam à paisagem urbana e que, mesmo sem serem percebidas graças ao tempo que as transforma em parte do cenário, não deixam de se confundir com os homens que circulam ao redor.
Na pintura, Siqueira foi deixando para trás a inocência das linhas arredondadas, perfeitas e harmoniosas à medida em que ia se aproximando da abstração e se deixando envolver pelas influências da escola expressionista e do modernismo brasileiro. Esta trajetória estética pode ser acompanhada a partir de trabalhos como "Chica da Silva" e "Homenagem ao Chapecoense" - pintado em 1974, em que as figuras humanas são representadas em dimensões e detalhes próximos da realidade - até a beleza de "Dom Quixote" e "Néctar", a última uma acrílica sobre tela de 1994 que retrata a paixão de Cristo por meio de formas rudes, tristonhas e estilizadas. Entre um e outro extremo desta variação de estilos - o real e o passional - é possível encontrar trabalhos abstratos como duas telas sem título pintadas em meados da década de 80 de onde saltam cores e volumes em profusão, além de um "Auto-retrato" em que, no meio de um turbilhão de tons fortes, o artista se retrata como mais uma de suas criações feitas de fragmentos de metal.
À semelhança de seus trabalhos em meio aos homens, Siqueira foi um gigante em meio aos artistas de seu tempo: vistoso e heróico, mas desconsiderado; imponente e habilidoso, mas pouco valorizado. Prova de seu desprestígio junto à comunidade artística e mesmo junto às instâncias oficiais fomentadoras da arte e da cultura é que viveu em constante dificuldade financeira e sequer teve seus trabalhos catalogados por órgãos competentes. Há quatro anos de sua morte, no entanto, seu talento e sua beleza continuam fibrando com o timbre do metal e a potência do fogo.
Referências
- ↑ Publicado no jornal "A Notícia" - Joinvile-SC - em 04 de agosto de 2000