O escritor Antônio Stenzel Filho revisitado

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O escritor Antônio Stenzel Filho revisitado

Em 28/06/2014, por Rodrigo Trespach


O escritor Antônio Stenzel Filho revisitado

Rodrigo Trespach[1]


Antônio Stenzel Filho foi o primeiro cidadão osoriense a publicar um livro – obra que este ano completa nove décadas. Em verdade, para usarmos a denominação gentílica preferida do saudoso historiador Guido Muri, Stenzel Filho era “arroiense”, já que Osório só recebeu o nome atual em 1934, pouco tempo depois da morte do escritor em 4 de novembro de 1933. Apesar disso, por mais que tenha sido celebrado ao longo do último século, sua vida e personalidade permanecem incógnitas.

Ainda que os familiares tenham se ocupado nos últimos anos em tentar encontrar maiores informações sobre a vida de seus pais e sua formação cultural, a biografia atual de Stenzel Filho deve-se, em parte, ao que ele mesmo deixou como legado e ao que dele se escreveu no Álbum Ilustrado do Partido Republicano, do qual fazia parte. O que não deixa de ser frustrante, visto que à época, neste tipo de publicação, era comum a exaltação do homem público e partidário, o que só permite que conheçamos um lado da história, aquele que se quer passar, o que o próprio biografado deseja que saibamos. Quem era então Antônio Stenzel Filho, autor de “A Vila da Serra (Conceição do Arroio): Sua descrição física, histórica. Usos e costumes até 1872”, a primeira obra conhecida publicada na cidade, em 1924?

O assento de batismo, lavrado pelo padre Joaquim Ferreira Ramos em 4 de outubro der 1862, aponta o dia 8 de junho do mesmo ano como data de seu nascimento. No mesmo documento, no entanto, além de Stenzel Filho, nasce junto a primeira informação controversa na história do futuro escritor: o padre escreveu claramente durante o texto o nome da criança como sendo “Antônia”, e que esta era “filha” legítima. Um escrivão confuso usou parênteses na frase seguinte às informações sobre os avós e padrinhos: “E para constar mandei fazer este assento e assino, digo Jesus”. Frase escrita antes mesmo de finalizar o documento. E sem corrigir o nome e o sexo da criança, seguiu “A inocente nasceu...”. só então finalizou “E para constar mandei fazer este assento que assino”. De quebra, errou ainda o nome dos padrinhos, no lugar de Francisco escreveu “Juvencio” e no de Quitéria escreveu “Leuteria” – primeiro era o conhecido comerciante Chico Minguta e a segunda, a professora mais conceituada da vila.

Hoje é impossível saber o que se passou naquele dia, mas esta é a data que Stenzel Filho informou ser a sua data de nascimento e não há outro documento que registre nascimentos naquele ano, o sacerdote se referia mesmo ao futuro escritor. O que fez com que o padre Joaquim cometesse erros como estes no registro de batismo? Stenzel Filho teria alguma anomalia física? Mesmo que o pai da criança falasse alemão, mãe e padrinhos eram brasileiros de origem. Não há como saber.

A segunda informação contida no assento de batismo, “avós maternos incógnitos”, remete a outro documento familiar: o de casamento dos pais, de quem Stenzel Filho era o primogênito. O assento de casamento, lavrado pelo padre Joaquim José, em 20 de maio de 1860, informa que o alemão João Antônio Stenzel recebeu em matrimônio Maria Carlota dos Santos, “filha de pais incógnitos, exposta em casa de Felisberto Antônio dos Santos”. Talvez seja precipitado afirmar que Maria Carlota dos Santos fosse escrava, como se pensou inicialmente (ver Revista Doispontos, Ano IV, n. 13 dez/2013), mas não é nenhum absurdo considerar provável que fosse filha de uma escrava negra. A exposição de crianças, ou seja, o recém-nascido que era deixado na casa de alguém ou instituição religiosa, geralmente na calada da noite, não era fato raro. E no século 19 indicava essencialmente uma coisa: ilegitimidade.

Felisberto Antônio dos Santos provavelmente não era natural da cidade, não há outros registros dele ou de familiares nos arquivos paroquiais da igreja local – mesmo Carlota só aparece nos registros de nascimento dos filhos. Conforme o próprio Stenzel Filho escreveu anos mais tarde, seus “avós de criação”, Felisberto, que era conhecido pela alcunha de “Polvadeira”, e Felicidade Joaquina de Jesus, a “Dindinha”, “velha forte, robusta e alegre”, moravam na Rua Marechal Floriano. Ali Felisberto tinha um “negócio” e uma casa de moradia. Em frente, ficava a casa dos pais do escritor – infelizmente destruída em 2013. Além da casa, no centro da vila, a família teria uma propriedade no Caconde (Palmital). Justamente o Caconde, lugar que Stenzel Filho afirma ser a origem de sua mãe legítima.

Entre as informações contidas no inventário de Felisberto Antônio dos Santos – datado de 1863, pouco depois do nascimento do primeiro neto -, descoberto pelo historiador Marco Antônio Velho Pereira, no Arquivo Público em Porto Alegre, está a de que, sem filhos naturais, a mãe de Stenzel foi a única herdeira dos bens da família dos Santos. Teria então Felisberto Antônio dos Santos exposto na própria casa uma filha ilegítima? E tal filha, seria mesmo filha de uma escrava? A precariedade das fontes não permite afirmar categoricamente; o que fica claro é que a mãe de Stenzel Filho era, no mínimo, fruto de uma relação ilegítima, muito provavelmente do avô com alguma escrava da família.

O historiador Guido Muri reiterou em 1992 a afirmação do próprio Stenzel Filho de que a família de Carlota era conhecida como dos “Bino do Caconde”, uma família sem registro no banco de dados genealógicos da cidade, organizado por Velho Pereira. Talvez “Bino” pudesse ser referência a uma abreviação de Felisberto (“Felisbino” era uma variação comum antes da padronização dos nomes). O segundo filho de Antônio Stenzel com Carlota, nascido em 1864, é batizado como “Felisberto” não tendo o padre indicado os avós maternos – nem mesmo os de criação. Relatos orais da família ligariam os Binos à família Pires.

Ainda que provavelmente se guiando pelo Álbum Ilustrado do PR castilhista, Muri menciona a origem alemã de Stenzel Filho, mas não acha importante mencionar que os avós maternos eram “incógnitos”, como aponta o registro de batismo do escritor e dos irmãos. Nem os “avós de criação” Muri mencionou. Seriam então os “Binos”, escravos de Felisberto/Felisbino Antônio dos Santos e o apelido foi uma maneira encontrada para encobrir um caso incômodo?

Para encerrar, sobre os avós incógnitos de Stenzel Filho, porque o padre Ponciano, sobrinho do escritor, nascido em 1902, era conhecido como “o padre negrinho” se sua aparência não demonstrava isso? Seria uma referência à sua avó? Sobre isso, ainda observando o registro de casamento do imigrante alemão em 1860, alguém anotou em letra posterior, à margem, ao lado da informação sobre os pais de Carlota, “avós do P. Ponciano”. E o autor de “A Vila da Serra”, ao descrever em detalhes as danças dos quicumbis e moçambiques, encerra o capítulo com a seguinte frase: “Fi-lo com todas as minudências para que a gente nova conheça esta usança, que tão apreciada era dos nossos antepassados”. A que antepassado Stenzel Filho se referia, aos dos cidadãos arroienses de modo geral, ou aos próprios ancestrais negros?

Fato é que o próprio escritor não deixou nada publicado sobre seus ancestrais tão pouco sobre sua formação cultural. O que não deixa de ser curioso vindo de um cronista da história da cidade. Em “A Vila da Serra” pouca coisa se extrai da vida na casa dos pais. O pai é mencionado algumas vezes, mas a mãe ocultada, salvo a referência aos “Bino do Caconde”. As lembranças do escritor se voltam para a vida na cidade, na casa dos avós de criação e com os padrinhos.

Nem mesmo informações sobre a origem alemã do pai ele deixou registrado, ainda que, segundo familiares, um possível manuscrito intitulado “Meu Pai” tenha sido circulado entre os netos. De qualquer forma, sabe-se o nome dos avós, que provavelmente permaneceram na Alemanha, devido ao assento de batismo: Gottlieb Stenzel e Anna Maria Hanke (ou Hansel). Como o pai veio para o Brasil e suas andanças pelo Rio Grande do Sul antes de chegar a Osório também escaparam ao seu registro. E logo ele que registrou tantos “tipos populares” e outras personalidades, deixou logo o pai, que foi o construtor do Teatro Paulino Chaves, de fora.

Conforme uma tradição da família, transmitida por Avelino Stenzel, o imigrante teria chegado ao Brasil em 1851 junto com Karl von Koseritz, um dos maiores expoentes da germanidade no sul do Brasil, no mesmo projeto que trouxe os soldados brummes para a guerra contra a Argentina e o Uruguai. Ainda segundo pesquisa da família, o professor Paulo Gilberto de Oliveira teria encontrado um “Anton Stetske”, inicialmente estabelecido em Rio Pardinho, no lote 3 A. Seria o mesmo Stenzel que acabou transferindo-se posteriormente para o litoral? De fato, a comunidade evangélico-luterana em Três Forquilhas recebeu uma leva de ex-brummers por volta de 1855, entre eles Christian Tietbohl e Jacob Steinmetz. Provavelmente o pai de Stenzel Filho estivesse entre eles. Aliás, o imigrante Stenzel era protestante, como informa o escritor em sua obra. Sua relação com a igreja católica se deu através do casamento com Carlota. Mais um fato curioso, pois Stenzel Filho escreveu que o pai tinha divergências com o catolicismo do amigo carpinteiro Mestre Bento.

Uma das contribuições que os brummers deram às comunidades onde se estabeleceram foi a contribuição cultural e educacional. A maioria deles tinha boa instrução ou era professor na Alemanha e depois da baixa no serviço militar dedicou-se à educação no Brasil. Um grande número deles deixou memórias escritas. No entanto, nenhum registro escrito de Antônio Stenzel foi encontrado até o momento, ele era pedreiro de ofício. Mas seus descendentes tiveram atividade cultural intensa. Além de Antônio Stenzel Filho que muito cedo foi estudar e lecionar fora, passando por Jaguarão, Pelotas e Passo Fundo, o filho Ponciano também era homem de cultura. Ele é considerado autor de pelo menos uma obra encenada no teatro da cidade, “O seiano” Leopoldo Stenzel também era prolífero escritor e poeta, como atestam seus cadernos de anotações, guardados no Arquivo Público de Osório; ali há poemas e escritos inéditos datados de 1918. Há ainda o padre Ponciano Stenzel, fundador do Instituto Rio-Grandense de Letras, em 1932, e de atuação tanto na política quanto na literatura nacional.

O próprio Stenzel Filho, antes mesmo de “A Vila da Serra” (1924), escreveu muito. Suas peças eram encenadas em Jaguarão já na década de 1880, onde ele era membro de uma sociedade dramática, a “Progresso Militar”. A formação intelectual se deu fora da cidade natal, em contato com os grandes centros de atividades literárias e teatrais do estado, provavelmente com apoio do padrinho Minguta e incentivo da madrinha professora. Assim, “Amor e justiça”, uma peça dramática de muito sucesso na época, foi encenada em Osório pela primeira vez em 24 de janeiro de 1911 e antes de sua maior obra, vieram ainda peças de teatro como “Cenas da Revolução” e “O Filho da lavadeira”, além de artigos para o jornal “O Legendário”.

É de se lamentar que o escritor tenha falecido antes de publicar o segundo volume de sua obra. Talvez fosse neste manuscrito, que desapareceu misteriosamente e hoje se desconhece o paradeiro, que Stenzel Filho fosse esclarecer a origem de sua família materna, sua prisão em 1880, a participação na Revolução de 1893 e a tomada da cidade por Baiano Candinho em 1895. Além, é claro, das disputas e perseguições políticas ocorridas durante as décadas de 1900 e 1920, o que pode ser verificado na correspondência entre a cidade e o governo do Estado, conforme trabalho do historiador Sérgio da Costa Franco no IHGRS. Tal manuscrito enriqueceria sobremaneira a História de Osório.

Depois de retornar à cidade em 1886, além da ocupação de cargos públicos e políticos, entre 1888 e 1922, Stenzel Filho aparece também como um homem de caráter humanitário. Foi o idealizador da Sociedade “Amor à Arte”, organizada em 1887, da qual os cerca de mil exemplares compunham a primeira biblioteca não-particular do município; um dos fundadores e provavelmente um dos idealizadores da Loja Maçônica “Amor à Virtude”, em 10 de janeiro de 1896, e esteve a frente da fundação da Sociedade Beneficente São Vicente de Paulo, que deu origem ao Hospital de Osório, criada em 19 de julho de 1925. E não deixa de ser interessante notar a presença da palavra “Amor” em suas criações, não apenas nas peças de teatro, assim como na maçonaria e na própria sociedade recreativa.

Antônio Stenzel Filho casou já velho, em 12 de setembro de 1910, com Haydée Jacques de Oliveira; ele tinha 48 anos. Não deixou filhos, é verdade, mas uma vasta contribuição à cultura e à história regional. O legado de amor à arte, à literatura, à cultura e à cidade de Osório que o cronista deixou merece ser mais bem conhecido e estudado. Seu passado como escritor e historiador precisa ser analisado, criticado, contextualizado, remexido do pó do esquecimento. Seu passado como homem simples, de carne e osso, precisa ser descoberto. Conhecer suas raízes familiares e também seu lado menos nobre ajudarão a conhecer melhor seu pensamento e ação e entender a sociedade de uma época.

Referências

  1. Historiador e escritos, autor de quatro livros e diversos artigos para revistas nacionais e internacionais. É membro da AELN.