O Saladeiro São Miguel
O Saladeiro São Miguel
Em 2010, por Sandra Mara Benvegnú
De Deus nasceu o trabalho; do trabalho, a união; da união, a felicidade.
Em nome dessas virtudes, eu cumprimento os honrados nomes dessa firma e compenetro-me no dever de todos vos saudar em nome da paz.
Que Deus ilumine nossos caminhos e que nos cubra com o manto da felicidade.
[...]
Com meu pensamento tão pequenino e humilde, peço a Deus que àqueles que o pão procuram lhes seja dado como a água da fonte a jorrar.
Sejam felizes, meus desejos, e para essa data novos horizontes se descortinarão para o Saladeiro São Miguel.
Salve o dia de hoje, repetido por inúmeras vezes no valor do trabalho.
(Discurso apresentado por Dóra Lopetegüy na solenidade de reinauguração do Saladeiro São Miguel)
Desde meados do século XVIII, já existiam charqueadas no Rio Grande do Sul. Mas foi na região de Pelotas, a partir de 1780, que essa atividade, assentada no trabalho escravo, prosperou. A Abolição da Escravatura veio a contribuir com o desaparecimento desse modelo, dando início a uma forma mais ligada à produção capitalista. A diferença centrava-se na “mão de obra assalariada, utilização de máquinas no processo produtivo, novas técnicas de fabricação do charque e localização no interior continental”.1
Foi sob essas características que, em 1914, a firma J. Magalhães & Cia. iniciou as atividades saladeiris em Passo Fundo. O local denominado de Umbu, caminho para Pulador, situava-se às margens da linha férrea, a 17 quilômetros da sede municipal.
Dominando, pela localização privilegiada, toda a região serrana, estendia sua ação para os municípios de Palmeira das Missões, Soledade, Lagoa Vermelha e Vacaria, bem como Campos Novos, em Santa Catarina, e Palmas e Clevelândia, no Paraná2. A estrada de ferro, via de exportação mais rápida, foi, sem dúvida, fator preponderante para a fundação de estabelecimentos saladeiris no interior do Estado, o que vem a justificar a localização do Saladeiro São Miguel junto ao quilômetro 338.
Apesar dos bons resultados que a situação econômica local apresentava – através de expressiva produção de madeira e erva-mate beneficiadas, de banha, da liderança estadual do cultivo de milho, trigo, feijão, etc. – a indústria saladeiril, de um modo geral, revezou-se entre períodos de crise, ora estacionária e decadente, ora de prosperidade3. Essa incerteza teve por razão vários fatores, como, por exemplo, a política de desvalorização da moeda, a baixa qualidade do charque gaúcho, a alta do preço do gado, a dependência de casas comissionárias, os preços elevados do sal importado – o produto nacional era de baixa qualidade –, dos transportes e o abarrotamento dos mercados do norte.
Por outro lado, a indústria frigorífica, em ascensão na Argentina e no Uruguai – grande concorrente do charque gaúcho –, abria maiores espaços de mercad para o charque sulino4. A despeito dos tempos instáveis, eram de euforia as informações sobre a produção do Saladeiro São Miguel em sua fase inicial: mais de 10 mil cabeças de gado abatidas anualmente e exportadas para as principais praças de
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, em média 850 mil quilos de “ótimo charque” por safra5. Os relatórios apresentados, anualmente, pelo executivo local mostram, porém, que a produção acompanhava as fases da crise, alternando-se em períodos de maior e menor produção, como poderemos observar no gráfico a seguir:
Anos mais tarde, houve ampliação da firma, com a adesão, na sociedade, do pecuarista João Carlos Waihrich e de Domingos Lopes, passando a denominar-se Magalhães, Lopes & Waihrich. A partir de então, o Saladeiro passou por um período de ampliação e modernização de suas instalações e do processo de industrialização do produto pecuário.
Em 1927, Passo Fundo situava-se em 15º lugar no estado em maior número de bovinos, com um rebanho calculado de 196.500 cabeças de gado6. Em média, cada boi vivo pesava 520 quilos, situando-se a produção por cabeça em torno de 112 quilos de charque, 36 de couros e 32 de gorduras. O sindicato dos charqueadores estipulava uma multa de 50$000 (cinquenta mil réis) por cabeça de gado abatido após 31 de maio – período de reprodução –, restrição que era severamente observada.
A crise constante, somada ao abarrotamento de charque nos mercados do norte do país, fazia com que o Saladeiro São Miguel armazenasse, em determinadas safras, por exemplo, mais de cinco mil reses em pilha de inverno7, aumentando, de forma consistente, os prejuízos daquela indústria charqueadora.
Mesmo diante da instabilidade corrente, elementos significativos contribuíram para a manutenção das charqueadas gaúchas sem maiores renovações, entre os quais: a existência de um mercado interno quase certo para os produtos, o capital empregado no negócio, as chances de atingir o mercado externo e a dependência política e econômica do Rio Grande do Sul frente ao restante do país8.
Em meio a esse contexto, porém, é interessante perceber que 1931, ao contrário de anos anteriores, foi pródigo de informações e notícias sobre o Saladeiro São Miguel pela imprensa local. Nesse período, por exemplo, foi adquirida por aquela indústria – com direito a solenidade de inauguração – uma balança para pesagem do gado em pé. O valor não mais seria pago por cabeça, mas por peso, o que diminuiria os custos. Atendendo a uma antiga reivindicação dos proprietários, mais especificamente de Júlio Magalhães, a parada do quilômetro 338, onde se situava a charqueada, foi elevada à categoria de 5ª Estação. Essa concessão do Estado viria a baratear o preço do frete, até então pago como se fosse carregado e descarregado pela Estação de Passo Fundo. A partir dessas informações, inferimos que a estação referida fosse de elevada categoria, portanto, com fretes de preços mais elevados.
Somente entre os dias 7 e 8 de julho foram despachados, pela via férrea, 11 vagões carregados de produtos, sendo 9 de couros para Rio Grande, três de ossos para Pelotas, um de sebo e um de ossos para Curitiba e três de madeiras para Livramento, importando os respectivos fretes em cerca de R$ 50:000$000 (cinquenta contos de réis). Esse “volumoso carregamento” demonstra o elevado grau de desenvolvimento desse estabelecimento em referência, justificando, assim, de “inteira justiça” a medida concedida pelo governo estadual9. Para exportar seus produtos de Passo Fundo a Rio Grande pela via férrea era pago o frete por tonelada, por exemplo, 127$700 (cento e vinte e sete mil e setecentos réis) para o charque, 86$900 (oitenta e seis mil e novecentos réis) para o sebo e 130$000 (cento e trinta mil réis) para os couros10.
Foi também em 1931, mais precisamente no mês de dezembro, que se publicou a notícia de que o Saladeiro São Miguel havia sido completamente destruído pelo fogo, perdendo-se praticamente todo o depósito de charque. Segundo o guarda livros, o sinistro teria iniciado por volta da meia-noite, ocasionado pelas fagulhas do trem de passageiros que por ali passara. Nenhum dos proprietários encontrava-se no local. A firma estava segurada no valor total de 1:200$000 (mil e duzentos contos de réis), importando o prejuízo no exato valor do seguro. O saladeiro São Miguel, em falência, não voltaria mais a funcionar.
A pequena povoação que ficou conhecida como “São Miguel” não foi somente uma parada de trem perdida na vastidão dos trilhos da viação férrea. Foi muito mais. Ali se viam “intermináveis filas de carretas, abarrotadas de madeiras, varais cobertos de charque, homens de trabalho, carregando pesados carrinhos com charque, ou fazendo altas pilhas de madeira”11, atividades que transformariam o local em importante entreposto comercial e industrial de referência regional.
Em nossa investigação desses acontecimentos, valemo-nos de alguns dos recursos possibilitados pela história, entre os quais – como no caso deste estudo, em particular – a história oral, pois “a história, como toda atividade de pensamento, opera por descontinuidades: selecionamos acontecimentos, conjunturas e modos de viver, para conhecer e explicar o que se passou”12. Nesse sentido, justificamos a utilização dessa linguagem pela oportunidade que se apresentou de entrevistarmos as irmãs Dóra e Genoveva Lopetegüy, com 94 e 92 anos respectivamente, moradoras de Passo Fundo, que fizeram parte, durante alguns anos, da vida do Saladeiro São Miguel.
A narrativa de nossas “recordadoras”13, a partir deste ponto, vai mostrar o processo de fabrico do charque, a estrutura, as relações, o papel que desempenhou aquela indústria no contexto social. Vai, também, colorir o passado com nuances de “emoções, reações, observações”, dando “vida a conjunturas e estruturas que de outro modo nos parecem tão distantes”, permitindo-nos reconhecer que entre esses fatores existem “pessoas que se movimentam, que reagem e que vivem!”14.
Na parada de São Miguel, ao abrigo de uma pequena “casinha” de madeira, o, trem ao chegar ou partir, cumpria o processo de carregar e descarregar mercadorias e passageiros. Numa dessas viagens, ali desembarcou, nos primeiros anos da década de 1920, Martin Lopetegüy, sua mulher Ignácia e seus filhos João Carlos, Camila, Dóra, Gregório, Genoveva e Ignácia – mesmo nome da mãe. Martin, natural de Paissandu, no Uruguai, descendente de família de carneadores, trabalhava nessa atividade junto aos saladeiros da Barra do Quaraí. Aqui chegou, porém, contratado pela olaria de Mário Thevenet, onde permaneceu até a falência da firma. Então, foi para São Miguel trabalhar na charqueada.
“O Saladeiro era uma cidade... uma vila. Tinha muita gente, tinha muito movimento, e era dos Magalhães, Lopes e Waihrich, e meu pai era carneador e meu irmão, também. Era uma criança, mas tinha que trabalhar para ajudar”. Ali chegavam “quantia, tropas enormes, aquela matança começava altas madrugadas, à meia-noite, e ia noite adentro, sem descansar, até as 11 horas da manhã”15.
A tropa, quando chegava, ia diretamente para uma “mangueira grande, passava pelo brete, e do brete vinham, botavam no guincho, puxavam o boi pela cabeça e botavam em cima do trole, e o homem, com um punhal, desnucava o animal entre as aspas, e o boi já caía ali. Na cancha, o carneador já estava esperando onde só ficava a carcaça. O couro e a carcaça”16. “O serviço de desmontar o boi inteiro, isso meu pai fazia em 10 minutos”, e, enquanto esse serviço era feito, os aguateiros atiravam água nas pernas dos carneadores para limpar o sangue que jorrava em grande quantidade, lembra Genoveva.
Quando o boi caía, o pai já tirava os quartos, e o manteiro os levava para a mesa, a paleta para outra, e, com uma faca, eram abertas essas partes. O despostador abria o quarto inteiro, que era a maior manta de charque, e tudo era carregado nas costas. O passo seguinte era o resfriador, onde a carne ficava em varais até parar de sair fumaça, até esfriar, para depois ir para o tanque de salmoura. A carne não podia ser largada quente no sal, porque estragava, queimava17. A seguir, ia para os montes de sal seco e somente depois para fora, no sol, “naquelas varas enormes, uma imensidão onde estendiam para fazer o charque pra exportar”, nos conta Dóra18.
Os empregados recebiam, por rês carneada, a base de dois mil réis, calculada pelo número de couros acumulados no final do dia. Quanto mais rápido, mais ganhava19. Depois do charque pronto, vinha a imalação [sic], processo de embalagem do produto. Cada manta era embalada, separadamente, em tecido de niagem [juta].
Era costurado e feita uma alça, chamada de pega-mão, para facilitar o transporte. A estrada de ferro passava na frente da charqueada. Os vagões entravam no pavilhão através dos trilhos, e, quando estavam carregados, vinha o trem e puxava.
“O pai não trabalhava no sábado. Uma turma trabalhava na carne verde e outra, no sal.” Os que trabalhavam no sal tinham que fazer sapatos de couro, das reses abatidas dali mesmo. Era o tipo de uma roda cheia de furinhos por onde passava um tento [cordão feito de couro], puxado e amarrado em cima do pé. Na salga da carne, o pessoal praticamente se enterrava no sal puro e queimava os pés. Outro tipo de calçado não aguentava e não tinham mesmo, eram muito pobres. “Mas era bonito.
Era uma coisa tão bonita de se ver... Era organizado o serviço, tem coisas que eu me lembro tintim por tintim... era a bexiga”.
Essa parte ficava dentro da carcaça, após ser retirada a carne, “então, a gurizada corria lá, pegavam as bexigas, lavavam com salmoura, viravam, enchiam que nem balão e penduravam na cerca para secar. Ficava branquinho de balão”. Depois de secas, serviam de embalagem para a gordura de caracu, as graxas finas que eram exportadas também. Na falta dessas embalagens, eram usadas barricas de madeira fabricadas no próprio saladeiro, num galpão chamado de tanoeiro.
“Nesse processo de aproveitamento, até mesmo a sessenta folhas tinha utilização20.
Era cortada em partes, carregada pelo trole até o chiqueirão, servindo de alimento para os porcos. O capim tirado de dentro das mesmas, assim como o guano – resíduo de ossos e miúdos –, era utilizado como adubo. O pai também trabalhava fora, ia carnear em Santa Maria, Bagé, por lá tudo. Ele ia quando não tinha serviço mais aqui, então nós íamos na Estação Ferroviária, ver se não vinha carta do pai, notícias, porque naquele tempo não tinha telefone, pra gente não...”21. “Era bonito ver a coordenação do trabalho, a continuação, tudo bem aproveitado.
Em minutos aquela rês terminava, um ia pra cá, outro pra lá... E não podia ser devagar, tinha que ser ligeiro. Os guris que trabalhavam, essa gurizada morta de fome, que não tinham nem onde ficar, iam para lá... E lá tinha também a reiúna, que era uma casa de comida, onde era tudo de graça, café da tarde, café da manhã, almoço e jantar. Ninguém pagava nada. Eles forneciam tudo de graça, os proprietários. Eu tava, esses dias, falando que aquilo é que era vida. De toda a parte do mundo vinha gente, os miseráveis não tinham serviço, iam pra lá uns pra fazer as bexigas, outros pra puxar água, enfim... e comer. Quando chegava as três horas, as mulheres mandavam as crianças buscar uma chaleirinha de café, pão... um saquinho com pão”22.
“A luz elétrica era somente para o serviço da charqueada, e a água era puxada do açude, através de valetas, e aparada num tanque, de onde era carregada em latas de querosene quadradas. Nas casas de moradia, até dos proprietários, a iluminação era com lampião. Nós não morávamos na senzala junto com o restante dos trabalhadores, meu pai não aceitava. Fomos para uma casinha perto da charqueada, mas separada do restante do pessoal. Era uma casa de madeira simples, somente com os espaços para as aberturas, que depois foi sendo melhorada”.
“Primeiramente, a charqueada era só do Júlio Magalhães; depois, quando foi feita a sociedade com o João Carlos Wahrich, fizeram uma festa. Foi quando a Dóra leu o discurso de inauguração, escrito pela Camila [irmã mais velha]”23. Júlio Magalhães era criador de gado, pecuarista da região de Júlio de Castilhos. Quando iniciaram as charqueadas, como aqui não existia, e tendo em vista a proximidade dos trilhos da Viação Férrea, instalou ali o Saladeiro. Com a família, “nos dávamos muito bem. As meninas [...] eram nossas amigas, a Glória Magalhães, a Branca Magalhães, a Ana Helena Magalhães e a Maria Célia, casada com o Victor Issler, era a primeira filha da dona Ilda e do seu Júlio Magalhães”24.
Alguns nomes identificados:
1- Martin Lopetegüy - Carneador
2- Gregório Lopetegüy – filho de Martin Lopetegüy - Carneador
3- João Carlos Lopetegüy – filho de Martin Lopetegüy - Carneador
4- Natalício Ferreira – Capataz
5- Arthur Waihrich – filho de João Carlos Waihrich
6- João Carlos Waihrich – Sócio-proprietário
A vida na charqueada não se restringia à matança. Havia, também, momentos de convivência social. “Grandes banquetes eram realizados, com a presença de políticos, vinha gente da cidade. A casa da dona Ilda Magalhães era de dois pisos, muito bonita, de madeira. Tinha uma sala com um piano e uma foto da Maria Célia Magalhães, que era muito bonita. Ali faziam bailes de carnaval, e nós éramos sempre convidadas. Eu cantava no piano, com dona Ilda, em espanhol, aquela música... Tengo um ranchito, mi bien querido (risos)”25. “O seu Júlio viajava para comprar tropas, ficando dois, três meses fora, e, decerto, dona Ilda tinha saudades do marido. Então, ela compôs uma valsa em sua homenagem. Quando ele chegou, foi feita uma festa, e ela tocou no piano, e a Dóra cantou Saudades do Júlio, oferecida para ele”26.
“A mulher do seu João Carlos Waihrich tinha uma casa também de dois andares, e, aos domingos, nós íamos brincar na parte de cima da casa. Eram quatro meninas e nós, e lá fazíamos festa. Tinham doces secos guardados, e as meninas nos mandavam comer. As gurias brincavam de teatro, imagine eu de teatro, eu não fazia. A Dóra, principalmente, fazia de tudo”, lembra Genoveva. Outra forma de diversão era a festa de São Miguel: “éramos assíduos, não perdíamos nunca. A mãe assava umas galinhas pra passar o dia inteiro, então, nós íamos a pé até a igreja, e ali tinha o baile. Os salões eram separados, os negros dum lado e os brancos do outro, a música, a orquestra ficava no meio. Orquestra, não... a banda. [...]. Não tinha mistura, não dançavam juntos. Era uma festa maravilhosa. Tinha procissão, tinha de tudo. Era um espetáculo! A gente se divertia pelo ano todo. Quer dizer, o ano inteiro, a gente só pensava ‘vamos juntar dinheiro para ir à festa de São Miguel, bem vestida, bem calçada, bem ajeitada, pra se divertir, pra arranjar namorado’. Nunca arranjamos namorado lá... Eu nunca arranjei namorado lá”27.
Quando a charqueada pegou fogo, o capataz era o Natalício Ferreira, e “eu não me lembro, porque era de noite [...] Ficou assim... preta! [...]. Mas sei quem eram os sócios: Júlio Cesar Magalhães, o outro [era o] João Carlos Waihrich, e [do] outro não me lembro bem, porque não era daqui, por aí [...], e ele não resistiu e se deu um tiro no ouvido. E a charqueada não funcionou nunca mais. Imagine, queimaram até onde secavam o charque [...], aqueles varais enormes que se iam, que botavam as mantas estendidas ali para secar”28.
Depois do incêndio, a família Lopetegüy permaneceu em São Miguel por muitos anos ainda. Segundo as narradoras, seu pai Martin intensificou o cultivo de hortaliças, atividade que já desenvolvia no período de safra seca na charqueada. Sua pequena produção servia para abastecer Passo Fundo, tarefa, até então, inédita na cidade.
Dóra casou-se com Jamil Barquete, em 1939, e Genoveva, com Alberto Graeff Sobrinho, anos mais tarde. Vale lembrar que ambos os casais conheceram-se em São Miguel, uma vez que Jamil era rádio-telegrafista da viação férrea e Alberto atendia a madeireira de sua família, naquela localidade.
Para Genoveva, “é muito bonita a história, bem feita, bem como ela é, desde a entrada até o fim, é uma história muito bonita... sinceramente eu recordo isso aqui com saudades... [lágrimas]. Tem muita coisa que a gente não lembra, não é?”29.
Lembrar o passado, muitas vezes, não é só “reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com ideias de hoje as experiências do passado”. Por mais presente que nos pareça a lembrança de fatos antigos, não é a mesma que experimentamos na infância, porque não somos mais os mesmos de então e, também, porque nossa percepção se alterou, assim como nossas ideias, nossos valores, juízos e a própria realidade30.
Ainda assim, ao nos utilizarmos da história oral, em partes desta investigação, não nos preocupou a veracidade da narrativa em relação a consequências como erros e lapsos – de menor dimensão se comparadas a omissões da história dita oficial –, pois somente intentamos construir um tempo com pessoas que participaram, que “testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de aproximação do objeto de estudo”. Esta investigação, porém, não tem a pretensão de ser um texto técnico ou científico, mas, exclusivamente, de cunho informativo, com a preocupação única de “dar voz a sujeitos invisíveis e, por meio da singularidade de seus depoimentos”, construir, registrar, trazer à luz do conhecimento fatos que são parte da história de Passo Fundo31.
(...) Sejam felizes, meus desejos, e para essa data novos horizontes se descortinarão para o Saladeiro São Miguel.
Referências
ALBERTI, Verena. O fascínio do vivido, ou o que atrai na história oral. Rio de Janeiro: CPDOC, 2003.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
GONÇALVES, Rita de Cássia; LISBOA, Teresa Kleba. Sobre o método da história oral em sua modalidade trajetórias de vida. Revista Kátal. Florianópolis. v. 10, n. especial.
HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul: a terra e o homem. São Paulo: Globo, 1952.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. República velha gaúcha: charqueadas, frigoríficos, criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL, 1980.
SOARES, Fernanda Codevilla. Santa Tereza: um estudo sobre as charqueadas da fronteira Brasil-Uruguai. Dissertação de mestrado, Santa Maria, 2006. Fontes primárias: Jornal O Nacional. Passo Fundo: O Nacional, 1930.
RELATÓRIO. Apresentado ao Conselho Municipal na Reunião Ordinária de 1916 pelo Intendente Coronel Pedro Lopes de Oliveira.
RELATÓRIO. Apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Pedro Lopes de Oliveira em 1º de novembro de 1919. Entrevistas: Dóra e Genoveva Lopetegüy, 28 de março de 2009. Dóra Lopetegüy Barquete, 28 de março de 2009 e 6 de fevereiro de 2010. Genoveva L. Graeff, 13 e 16 fevereiro de 2010.