O Romance de um Romance

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O Romance de um Romance

Em 2013, por Paulo Domingos da Silva Monteiro


Paulo Monteiro[1]


A Méritos Editora, do jovem editor Charles Pimentel, realiza um trabalho importante para a divulgação da produção literária de Passo Fundo e região. Lança obras de autores iniciantes e consagrados, primando pela qualidade gráfica dos volumes.

Uma das mais novas publicações é Oché y Sefé Tiarayú, de Odilon Garcez Ayres, natural de São Sepé, aqui residente há muito tempo, onde constituiu família e se integrou à vida comunitária, na condição de funcionário público municipal e tradicionalista militante. Seu primeiro livro é um romance, na esteira comemorativa dos 250 anos da morte do índio Sepé Tiaraju, falecido no dia 7 de fevereiro de 1756, quando preparava uma emboscada aos exércitos português e espanhol. Estes faziam cumprir os termos do Tratado de Madri (31.1.1750), que passava para Portugal as missões jesuíticas da margem esquerda do Uruguai, em troca da Colônia do Santíssimo Sacramento. Não morreu três dias depois, em Caiboaté, quando o grosso das forças guaranis foi destruído pelas tropas peninsulares.

Como bem o demonstra o historiador Moacyr Flores (O Poema Uraguay de Basílio da Gama, incluído em seu livro Reduções Jesuíticas dos Guaranis, EDIPUCRS, Porto Alegre, 1977, págs. 131-146), o Sepé Tiaraju que se tornou conhecido é uma criação literária. Aparece para o mundo com O Uraguay, de José Basílio da Gama, publicado em 1769, mesmo ano em que Voltaire dava a lume a novela Cândido, sobre um reino fabuloso construído pelos inacianos no Paraguai. O autor do Dicionário de História do Brasil   demonstra que Sepé Tiaraju é mais uma dessas personagens, que saíram das páginas literárias para os livros de história. E lembra os casos de Anita e José Garibaldi, tal como apresentados na história tradicional, inventados pela pena de Alexandre Dumas no  "romance Memórias de Garibaldi".

O romancista inicia seu livro apresentando a leva de índios preados na redução de Santa Teresa, que era conduzida para São Paulo e sua providencial libertação por uma partida de outros índios que iam das margens do Iguaçu coletar sal às alturas da atual Florianópolis. O líder dos libertados era Guaraé, que aparece no romance como bisavô dos Tiarayú.

O indianismo brasileiro, criação teórica dos franceses, consolidou um tipo de índio que nunca existiu na vida real. O amor, entre os nativos da América, é muito diferente do que aparece nos romances de José de Alencar e quejandos.

O cacique passo-fundense se apaixona por Ocarapotî, irmã de Corityguasú, seu libertador. Como um autêntico herói branco do Romantismo, pesa-lhe a inferioridade do seu estado, não ousando declarar-lhe seu amor. Retorna ao Tape e encontra sua terra dominada pelos bandeirantes. Acaba transmigrando para a margem direita do Uruguai, hoje em território argentino.

O romance continua historiando as reduções e o envolvimento dos índios na defesa da coroa espanhola. A vida nas reduções é apresentada como uma verdadeira terra sem males, a Ivy Maray, correspondente guarani do Jardim do Éden, o paraíso, de Canaã, a terra onde mana leite e mel, o Eldorado, de portugueses e espanhóis, ou a Cocagna, dos italianos. Os guaranis são anjos e os jesuítas santos enviados por Kitú (Jesus). É a utopia do bom selvagem, materializada pelos discípulos de Chateuabriand.

Certa feita chega na Redução de São João Batista, vinda "dos fundos de Los Curi'î, dum lugar chamado San José do Itayú (ouro)", uma viúva acompanhada dos filhos. Sefé apaixonou-se por Torí, uma das jovens recém-chegadas. Como um bom herói branco declara-lhe o amor; ela, boa heroína branca, afirma que tem compromisso com outro, mas mesmo assim inicia um romance. As constantes aventuras guerreiras de Sefé afastam o casal. Ele se envolve com outras mulheres, o que causa revolta em Torí, que se casa com outro e depois, retribui na mesma moeda.

Odilon Garcez Ayres paga tributo ao romantismo literário. O amor platônico por Ocaraporî, a paixão pela índia Torí, o don-juanismo, e Torí entregando-se a outros índios, por despeito, não têm nada a ver com a realidade indígena. Os índios não conheciam o pecado e o ciúme, ao menos como nós os conhecemos. Oché e seu irmão Sefé são meras criações literárias. Não são índios. Como todos filhos da "mentira gentil", para usar a expressão com que Antônio Cândido define o indianismo, não passam de brancos fantasiados de índios. E tem mais: eram as mulheres que escolhiam o homem. Daí o mito da licenciosidade das índias. E, dentro da sociedade poliândrica em que viviam, as mulheres eram mulheres de todos os homens, não havendo espaço para o tipo de amor que nos foi imposto pela cultura judaico-cristã.

Como em todo o romance romântico, há muita troca de cartas entre apaixonados (págs. 71-72, 80-84, 111-112, 124-126).

Com a morte de Oché (7 de fevereiro de 1756), e do combate de Caiboaté, dois dias depois, os guaranis recuam guerrilhando. Na retirada há tempo para o herói sobrevivente encontrar-se com Yamandú, filho de seu amigo Kichú Costa. Exímio guitarreiro, que aprendera a tocar com o corrientino Lúcio Taraguí. Ao final se dispersam.

Sefé sobrevive e reconcilia-se com Torí. Vão morar em "San José do Itayú (ouro), no cimo as serra, na antiga Santa Tereza do Igay, na terra das altivas árvores e dos altaneiros pinheirais". Mais tarde recebem como vizinhos um casal de caigangues e até a visita de um tropeiro, "Cipriano Dias Garcez lá do Pau Fincado..."

O romance, que começa com a narração do autor, continua com Oché Tiarayú e, depois de sua morte, com Sefé Tiarayú, encerrando com o falecimento "do último guarani, filho do povo de San Miguel", a 31 de março de 1783.

A presença desses três narradores ao longo do romance é sintomática. Todos eles são alter-egos do próprio romancista. A presença do guitarreiro Yamandú traz a história para os dias de hoje. É o violonista Yamandu Costa, filho de Algacir Costa. Yamandu confessa ser discípulo de Lúcio Yanel. Da mesma forma ocorre com a intromissão de um tropeiro com o sobrenome Garcez do autor do livro. O próprio nome da vizinha caigangue, Jurema (será nome caigangue?), é quase um anagrama do nome da mulher do romancista.

Como já vimos, o herói Sepé Tiaraju é um mito literário criado por Basílio da Gama em 1769, desenvolvido ao longo de dois séculos e tanto por poetas, ficcionistas e historiadores apressados. Esse mito, da década de 1960 até meados de 1980, foi usado por músicos e outros artistas marxistas, como um "herói", um símbolo, para enfrentar a Ditadura Militar. Era o protótipo daqueles ("guaranis") que se opunham ao autoritarismo ("espanhóis"), aliados ou a serviço do imperialismo ("portugueses").

Para o tradicionalismo gaúcho Sepé é o protótipo dos tradicionalistas ("índios"), na sua luta contra os traidores dos usos e costumes gauchescos, aqueles que não se filiam ao tradicionalismo ("espanhóis"), a serviço dos usos e costumes universais ( "portugueses").

O autor-narrador Odilon Garcez Ayres é um tradicionalista e os heróis Oché e Sefé Tiarayú são seus alter-egos. A guerra guaranítica é o símbolo da guerra movida pelo gauchismo contemporâneo contra padrões de comportamento e cultura universalizantes. E o fato de que Sepé não é um herói brasileiro, mas um guarani espanholado, cristianizado, que não falava a nossa língua, é a materialização de uma cultura arcaica, ultrapassada, o gauchismo. Sepé, do ponto de vista histórico é um mito, uma criação da imaginação.

Odilon Garcez Ayres escreveu uma obra de ficção acima da média dos romances passo-fundenses. Superior a Irapuã, de Jorge Edeth Cafruni, de onde retira os nomes de algumas personagens. O bem escrito Oché y Sefé Tiarayú é um romance de um romance. Em trazendo para o nosso tempo  a "mentira gentil" de Sepé Tiaraju, acrescenta elementos novos ao mito. Ficcionismo é assim: "Quem conta um conto - aumenta um ponto".

Referências

  1. Paulo Monteiro pertence à Academia Passo-Fundense de Letras, à Academia Literária Gaúcha e a diversas instituições culturais do Brasil e do exterior. Endereço para correspondência: Paulo Monteiro - Caixa Postal 462 - CEP 99001-970 - Passo Fundo - RS.