Imigração italiana no RS: história e mito

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Imigração italiana no RS: história e mito

Em 30/04/2006, por Dilse Piccin Corteze


Imigração italiana no RS: história e mito

DILSE PICCIN CORTEZE[1]


No ano de 2005 comemorou-se os 130 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Entre 1875 e 1914, mais de oitenta mil famílias de imigrantes estabeleceram-se no Rio Grande do Sul, a grande maioria durante o período imperial. Os colonos chegavam sobretudo da Lombardia, do Vêneto e do Tirol, atraídos pelo sonho da terra. Durante esse tempo, o governo imperial fez muito em prol da imigração.

A colonização da encosta da serra gaúcha, com colonos originários do nordeste italiano, teve conseqüências profundas para a história sulina. Nos relatos de imigrantes, assim como das autoridades brasileiras e diplomáticas italianas, é recorrente a referência aos sofrimentos conhecidos durante a travessia atlântica; às dificuldades passadas quando do estabelecimento nas glebas coloniais; ao isolamento vivido nos seios das densas matas serranas, etc.

Essas narrativas apresentaram o processo migratório como epopéia humana que teria tido conclusão feliz devido, essencialmente, à vocação do homem itálico ao trabalho. Essa leitura mítica simplifica, caricaturiza e empobrece a rica, complexa e dinâmica história da colonização italiana no Rio Grande do Sul.

O Mito

Nas fontes primárias - relatórios consulares, cartas e memórias - são abundantes as afirmações sobre a excelência e a superioridade do imigrante; sobre o esforço heróico do colono; sobre a luta sobre-humana do camponês itálico que transformou a natureza americana selvagem em natureza civilizada e domesticada.

A memória da imigração está igualmente cheia de fatos trágicos, fantasiosos e genéricos sobre dificuldades enormes vencidas graças à superioridade e vocação do colono para o trabalho. Não raro, nesses relatos, repetidamente, o caboclo sulino e colonos de outras origens são desqualificados e inferioriza- dos nas comparações feitas com o imigrante ítalo.

As narrativas da memória da imigração sobre tragédias acontecidas durante a travessia - mortes, doenças, naufrágio, etc. - são repetitivas e se referem habitualmente a fatos imprecisos, repetindo-os incessantemente. Em geral, ao se referirem à viagem atlântica, os descendentes de imigrantes relatam fatos impressionantes ocorridos durante aquele momento extraordinário: doenças e mortes, corpos jogados ao mar, doentes sacrificados vivos, etc.

A historiografia étnica enfatizou habitualmente as promessas enganosas a que foram submetidos os emigrantes; as dificuldades da travessia atlântica; os perigos oferecidos pela mata virgem, animais ferozes, bugres selvagens. Descreveu o terrível isolamento conhecido pelos imigrantes ao se estabelecerem no sul e seu abandono pelas autoridades italianas e brasileiras.

A religião seria o grande eixo organizador da experiência imigratória. Ela teria impedido que o colono se transformasse em um caboclo de raízes itálicas.

Também é significativa a explicação do sucesso colonial como devido à excelência étnica do colono italiano, em geral, e do colono vê neto, em especial. Devido a sua vocação nata ao trabalho e à disciplina, ele haveria vencido ali onde fracassaram o caboclo e imigrantes de outras nacionalidades.

A História

Para o camponês italiano, a partida da terra natal foi solução para contradições em que se encontrava, sobretudo se podia conseguir a propriedade da terra, deixando de ser parceiro ou assalariado rural. No Novo Mundo, conquistaria melhores condições para poder sustentar a si e a sua família, difícil na Itália devido à situação econômica e social. A despedida da aldeia natal dava-se no contexto de grande tensão e expectativa.

As condições higiênicas precárias e o abarrotamento dos navios, a falta de experiência dos passageiros nesse meio de transporte, a tensão com o desconhecido e o semiconhecido, etc, contribuiriam sobremaneira para transformar a travessia em momento de grande tensão e dificuldades. A mortalidade na travessia manteve-se relativamente baixa, referindo-se sobretudo a crianças de pouca idade e velhos fragilizados.

A fauna da serra pouco perigo oferecia e oferece ao homem e era, sobretudo, fonte de recurso alimentar para o recém-chegado. A caça e o desmatamento realizado, à medida que os colonos tomavam conta de seus lotes, levavam os animais de maior porte a recuarem assustados para o interior das florestas.

No Sul, foram igualmente pouquíssimos os choques dos nativos com os colonos italianos. Escorraçados de seu habitai natural, atacados e agredidos, caçados e dizimados, não tiveram nem mesmo seu drama histórico reconheci- do sob a forma de tema historiográfico.

A transferência de milhares de famílias de imigrantes italianos para o Sul foi processo programado pelo governo imperial e, a seguir, republicano, e executado dentro de relativa organização, para que fossem satisfeitas as necessidades de ocupação, programa da Encosta Superior da Serra. Foi ditada uma ampla legislação, alocados importantes recursos, nomeados numerosos administradores.

Não procede, igualmente, a proposta de um colono movido essencialmente pelo pathos religioso, sob a influência indiscutida de sacerdotes, verdadeiros depositários da palavra divina, personagens sempre presentes e acima de toda e qualquer contradição.

Os imigrantes alocavam sentido social e político à experiência religiosa. A capela servia como local de congregação de vizinhos, de festas, de lazer. Alguns colonos professavam uma profunda fé; outros praticavam religião sobretudo exterior; alguns não condividiam as crenças religiosas.

O colono era um homem de carne e ossos, com as qualidades e defeitos próprios a todos os homens. A proposta da fé exacerbada ou de qualidades étnicas excepcionais como essenciais responsáveis do seu sucesso na nova terra não corresponde à realidade histórica. Nos fatos, ela desloca o foco da análise dos dois elementos verdadeiramente integradores da experiência colonial: a terra e o mercado.

As propostas apologéticas sobre a qualidade do trabalhador itálico eram retomadas e reelaboradas pelas autoridades italianas no Brasil e pela própria comunidade itálica. Os cônsules, em seus relatórios, conclamavam espírito de economia e assiduidade, a constância incomparável, a inteligência, a grande mobilidade, a moralidade, etc, do colono italiano.

Esses dois elementos centrais, e não a religião ou a qualidade étnica, impediram que a comunidade colonial se acaboclasse. Não foram poucos os colonos alemães, italianos, poloneses, etc, que, em terras pouco férteis ou, sobretudo, longe dos mercados consumidores, terminaram estagnados economicamente, tornando-se verdadeiros caboclos, pouco dependendo, nesse fenômeno, o grau de sua devoção religiosa ou sua qualidade cromossômica.

Jamais existiu a tão conclamada superioridade étnica do imigrante sobre o caboclo. O que existiu foi uma superioridade tecnológica, determinada por uma tradição camponesa mercantil já quase milenar e, sobretudo, a possibilidade do acesso à propriedade da terra, garantida ao colono.

O mito historiográfico efetua a simplificação dos acontecimentos históricos e sociais, comumente totalizados, naturalizados ou antropomorfizados. As visões apologéticas, sobre a superioridade ética e vocação ao trabalho dos italianos, escondem as razões profundas e complexas do sucesso da imigração, ou de seus fracassos pontuais.

Referências

  1. Dilse Corteze é professora da UPF e Mestra em História Regional, pela UPF, desde 2002. Pós-graduada em Metodologia do Ensino e Metodologia da Pesquisa, pela UPF, em 1986. Graduada em História, pela UPF, em 1983. É autora de: UHisses va in America: história, historiografia e mitos da imigração italiana no RS [1875-1914]. [Passo Fundo: EdiUPF, 2002.] E membro da APL