Há 90 anos revelando uma pequena vila entre 1857 e 1872

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Há 90 anos revelando uma pequena vila entre 1857 e 1872

Em 28/06/2014, por Anderson Alves Costa


“A Vila da Serra”

Há 90 anos revelando uma pequena vila entre 1857 e 1872


Por Anderson Alves Costa. Poeta e escritor, autor de cinco livros e diversos artigos para revistas de circulação local. É membro da AELN. Professor e pesquisador

Muito mais do que elencar o valor documental de “A Vila da Serra”, de Antônio Stenzel Filho, publicada pela primeira vez em 1924, portanto, celebrando 90 anos em 2014, pretende-se com o presente artigo reaproximar a obra da sociedade osoriense. É a primeira obra a ser publicada em Osório, à época Conceição do Arroio. Por sua importância histórica, mereceu uma reedição em 1980. Composta de diversos textos – ou crônicas, com os define o autor -, retrata a vida sociocultural dos habitantes da pequena vila, registrando nossos usos e costumes até 1872. É um patrimônio materializado em palavras. Já deveríamos, pois, tê-la imortalizado em um memorial, porque apenas disponibilizá-las às/em invisíveis estantes não contempla o seu propósito em nossos dias, que é o de servir de ponte entre o passado e o presente, e assim definir a nossa identidade a partir da perspectiva sócio histórica. Ainda que Stenzel Filho tivesse se aventurado à ficção antes mesmo desta, ao escrever e encenar peças teatrais, apenas os textos Introdução e Despedindo-se apresentam valor literário, já que os demais podem ser analisados como “crônicas de costume”.

A partir da década de 20 do século passado, a literatura brasileira ganhou novos contornos. Contesta-se o academicismo, experimentam-se inovações estéticas nas áreas de literatura, artes plásticas e música. Com esse movimento cultural, que foi idealizado e liderado por jovens intelectuais, buscava-se propagar as novas tendências artísticas europeias em oposição à literatura considerada por eles acadêmica, conservadora e ultrapassada. O marco inicial foi a Semana de Arte Moderna, em 1922. Entra em cena o Modernismo, período literário que se configura não só artístico como também político e social, ou seja, a brasilidade dos temas é levada ao extremo no intuito de fazer com que a população tomasse consciência da realidade brasileira. No Estado, os gaúchos ainda saboreavam o sucesso da obra pré-modernista “Contos gauchescos”, publicada em 1912, que impulsionou Simões Lopes Neto e o Rio Grande do Sul para o Brasil. Em Conceição do Arroio, é Antônio Stenzel Filho o nosso intelectual, autor de muitos artigos e peças de teatro, no entanto mais conhecido por publicar a obra “A Vila da Serra”, na qual eterniza em belas crônicas o início do povoamento de nossa cidade.

Ao nos revelar uma vila de poucos moradores e cenário de muitas histórias, Stenzel Filho, no auge de seus sessenta e dois anos, deixou-nos uma obra-prima. Devido a sua importância a nossa cidade e região, “A Vila da Serra” já deveria ter sido considerada patrimônio histórico cultural do nosso município. Nela, pode-se observar em uma rápida análise que valor o documental é inestimável, uma vez que a intenção do autor é retratar a pequena vila ao descrevê-la física e historicamente de maneira sucinta, e tendo como foco principal os usos e costumes do lugar até 1872, período que corresponde à meninice dele. Em tese, acentua-se o valor documental ainda mais quando o próprio Stenzel Filho já afirma na introdução – texto que apresenta significativas pinceladas de ficção, fazendo uso do diálogo como recurso estilístico -, que é de dele e da Vila o compromisso de preservar a memória do lugar.

A obra divide-se em duas partes. Primeiramente, a pequena vila é descrita física e historicamente: os limites territoriais, os detalhes da emancipação, quem eram as lideranças políticas, a história de cada rua e dos moradores que nela residiam, a antiga igreja, o cemitério, os arrebaldes e os diversos nomes da então Vila da Serra. E foram muitos os nomes até 1934. Segundo Stenzel Filho (1980), “a tradição, falada e escrita, dá a nossa vila diversos nomes, pelos quais tem sido conhecida, mesmo antes que o primeiro habitante tivesse levantado nela sua vivenda”. Logo, na parte dos “usos e costumes”, documenta as festas religiosas, os funerais, as folias do Divino e os Ternos de Reis (aqui, registra que também existiam dois grupos de ternos liderados por negros). Quanto à cultura e suas manifestações, o autor nos brindou com informações preciosas acerca do teatro, das danças, das lendas e das cantorias (modinhas, recitais). No tocante às facetas da sociedade, apresentou-nos a moda, os bailes familiares, as diversões de crianças – brincadeiras, traquinagens infantis – e de adultos – carreiras e jogos de azar. As viagens, a política e a escravatura, ainda que sem tocá-la mais profundamente, também foram assuntos recorrentes.

Sabe-se que a obra ora estudada, como já mencionado anteriormente, apresenta-nos uma distante vila revelando um escritor voltado à pesquisa histórica. Ainda que as crônicas se aproximem consideravelmente da história, faz-se necessário esclarecer que a Introdução e o capítulo final Despedindo-se apresentam, sim, traços ficcionais. A estreita ligação dele com a arte dramática só reforça a tese de serem intencionais as pinceladas de ficção.

No início da introdução, encarrega-se ele de mostrar aos de sua época a relação afetuosa que mantém com a vila onde nasceu. Quando escreve

Falarei de ti, das tuas casinhas de porta-e-janela, dos teus tipos populares, dos teus homens notáveis, da tua simplicidade rústica de outrora, dos teus costumes de antanho, e da singeleza do teu viver, tu falarás de mim, da minha meninice, do tempo em que eu procurava ninhos de passarinhos, das tardes estivais em que eu, com outros da minha idade, ia tomar banhos na lagoa e comer araçás, e das mil traquinadas, enfim, que povoaram minha infância.

Muito mais do que simplesmente imprimir valor histórico à obra, está Stenzel Filho, de forma magistral, personificando a vila ao dar-lhe “voz” e “personalidade” à medida que ele se torna dela um ouvinte. A partir do instante em que se transforma em personagem, agiganta-se ao contar que já não é “aquela velha mambira de outros tempos (...)”, mas que já passeia de automóvel, já cruza uma perna sobre a outra, já vai ao cinema, já dança o one-step, já conhece a luz elétrica e o telégrafo. O diálogo é rico em detalhes, e o autor, sabiamente, convida a Vila para ser coautora da obra; ou seja, se ambos fazem parte de uma mesma época, é porque são testemunhas oculares do patrimônio material e imaterial de um período encravado nos anais da história e, por serem contemporâneos um do outro, à luz dos anos envelheceram os dois com suas memórias compartilhadas, indivisíveis, pois o progresso de um significa história e patrimônio do outro.

O diálogo em que Stenzel Filho trava com a Vila quando abre e encerra a obra é memorável pela maneira como as personagens se dirigem uma à outra. É comprovado que o valor documental é indiscutível, no entanto há conteúdo ficcional, as palavras são carregadas de significado. Conforme Nicola (1998), não apenas o aspecto formal é significativo na composição de uma obra literária, como também o seu conteúdo. De Aristóteles aos nossos dias, as versões sobre o que torna um texto literário ou não são inúmeras, geralmente discutíveis, e por vezes se apresentam mais para desqualificar do que elencar as qualidades de uma obra. E aspecto formal e conteúdo são encontrados nos referidos textos em “A Vila da Serra”, não em larga escala, transbordante. Mas em doses homeopáticas.

Como o fez na introdução, Stenzel Filho também recorre ao diálogo no capítulo final. Com que intenção ele recorreu a este recurso diferenciando os capítulos inicial e final da obra dos demais é uma incógnita, uma vez que não há registros escritos contendo depoimentos do autor sobre o que o levou a escrever apenas dois textos em forma de diálogo. Apossar-se desse recurso por ter sido uma alternativa encontrada por ele para aguçar o interesse do público leitor de sua época ao dar um toque artístico à obra, ou ainda para dar uma pincelada artística e seus escritos ao personificar a vila. Independente ao que se afirma ou supõe, o certo é que ambos – autor e vila – pertencem a um período histórico ao qual é impossível contar a história de um sem que registre o testemunho ocular do outro; ou seja, trazer à tona os usos e costumes era uma forma de a vila ressurgir a sua gente contemporânea, enquanto para ele o simples ato de escrever era reviver os primeiros tempos de sua “vida passada”.

Por mais que sua fama de pesquisador e autor de textos históricos tenha atravessado décadas, sua intensa dedicação às atividades literária e cultural requer estudos com maior profundidade e específicos no que se refere a sua produção literária, que inclui três peças teatrais: “Mário”, “Cenas da Revolução” e “O Filho da lavadeira”, escritas entre o final do século XIX e início do século XX. A peça “O Filho da Lavadeira”, se lida nas entrelinhas, pode nos levar a construir algumas hipóteses. O título nos remete à história de Machado de Assis, mestiço, que é filho de lavadeira e pai mulato, e contava com proteção de uma madrinha. E Stenzel Filho também apresenta traços de mestiço (pesquisas preliminares revelam que a mãe dele pode ser filha de escravos), e teve apoio e incentivo dos padrinhos. Segundo consta, ele não só as escreveu como também as encenou. É preciso pesquisar sobre sua produção ficcional, mas a ausência dessas peças para análise é o que tornará este estudo um desafio a seus pesquisadores. Não há no Arquivo Público Municipal (que leva seu nome) e na Biblioteca Pública um exemplar das referidas peças. É possível que façam parte de algum acervo particular, mas até o momento não há indícios de onde possam estar.

Os 90 anos da obra deve, sim, serem celebrados. O que não se pode é transformar a data em oportuna festividade e, posteriormente, conduzi-la ao esquecimento. Considerada obra-prima por parte dos literatos, principalmente historiadores e aficionados por relíquias do passado, que buscam nos registros de outrora subsídios para compreender o presente, “A Vila da Serra” nos transporta para uma pequena localidade entrecortada por poucas ruas no início da segunda metade do século 19. E nós – pesquisadores, historiadores e escritores osorienses – fazemos parte de uma geração abençoada, pois à disposição temos uma obra que inspira estudo mais aprofundado. Em Osório – e região -, salvo algumas raras iniciativas, em geral não se preserva o patrimônio cultural material e imaterial. Os espaços existentes na cidade nem de longe são apropriados para receber e expor o legado histórico que ainda dispomos tampouco abrir suas portas a visitantes e turistas. Não é de agora que venho sugerindo a construção de um memorial aos padrões internacionais. Exagero? São quase 160 anos de história. Se tivéssemos esta mentalidade desde sempre, com certeza, as peças teatrais, as quais hoje existem apenas como títulos em registros documentais, estariam preservadas e à disposição de todos.