Farroupilha: paradoxos e contradições

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Farroupilha: paradoxos e contradições

Em 30/10/2001, por Mário Maestri


Farroupilha: paradoxos e contradições[1]

Mário Maestri


As celebrações da Semana Farroupilha causam acesas polêmicas no Sul. Passado o calor das emoções superficiais, talvez possamos discutir com a cabeça um pouco mais fria, as granes contradições desses festejos.

A própria celebração da Semana Farroupilha é já um paradoxo. Entre nós, apenas recolhem a Semana da Pátria á garagem das datas pátrias anuais, aquecem-se os motores para a largada dos festejos da Semana Farroupilha, com linha de chegada em 20 de setembro. Assim, sem grandes complexos festeja-se primeiro a gênese do Estado nacional, centralista e autoritário, e treze dias depois, o exórdio do separatismo republicano regional.

Em verdade, nenhum Estado brasileiro festeja tão feericamente data cívica regional como o Rio Grande, Do Manpituba ao Chuí, do rio Uruguai ao Atlântico, organizam-se celebrações cobertas fartamente pela mídia. De certo modo, a Semana Farroupilha está para o gaúcho como o carnaval para o carioca!

A Semana Farroupilha é sobretudo festa pública. Oficializada em setembro e 1964, no comecinho da Ditadura Militar, desde então todos os governos estaduais abraçaram fortemente os festejos, grande tradição nas escolas públicas. Nesse sentido, a atual administração petista apenas manteve herança de quase 40 anos, ao vestir bombachas e calçar botas para festejar o evento!

A celebração privada farroupilha é portentosa. Acampamentos, almoços, bailes, conferências, shows são realizados na capital e no interior, capitaneados pelo Movimento Tradicionalista Gaúchos e seus milhares e CTGs. Em torno do altar cívico farroupilha, realiza-se congregação supra racial e supra social que, no Brasil, repete-se apenas, olhe lá, quando a Seleção Nacional entra em campo!

A Semana Farroupilha é unanimidade regional. Junta cidadãos e toas regiões sulinas, origens e classes. Na roa e chimarrão farrapo, reúnem-se ítalos, teudos, Jusos e afrodescendentes. E redor da chama crioula, agregaram-se bem empregados, mal empregados, desempregados. Esquerdistas, centristas, direitistas. Os com muito, os com pouco, os sem nada.

E, aí está, uma outra grande contradição. Por um desses paradoxos da história, a guerra farroupilha contra o regime imperial foi movimento etilista dos grandes criadores que sequer contou com a unanimidade dos proprietários sulinos. E, de social, não teve nada.

Com palco sobretudo no meridião sulino, o “Decénio Heróico” constituiu mais um entre os tantos movimentos armados liberais, federalistas e separatistas lutados pelas elites proprietárias regionais do Brasil, inicialmente contra o regime colonial lusitano e, após 1822, contra o Estado imperial.

Os movimentos liberais e autonomistas regionais iniciaram-se na Colônia, com destaque para a Inconfidência Mineira, em 1789; Revolta os Alfaiates, na Bahia, em 1798, e Revolução Pernambucana, em 1817. Todos eles separatistas e republicanos. A crise da economia escravista e o golpe anticonstitucional de dom Pedro de 1823 determinaram longo período de Instabilidade político-social, no qual facções das elites regionais lutaram pela independência ou maior autonomia de suas províncias.

Após a Independência, a primeiro revolta liberal, republicana e separalista foi a Confederação do Equador, em Pernambuco, em 1824, reprimida em banho de sangue. Sequer o defenestramento do príncipe português, em 1831, pelos grandes escravistas, sufocou as tendências centrifugas do jovem império.

O prosseguimento da crise econômica e o acanhamento das concessões o poder central ensejaram impressionante sucessão de movimentos insurgentes regionais, tais como a Cabanada, em Pernambuco/Alagoas; a Balaiada, no Maranhão/Piauí; a Cabanagem, no Pará/Amazonas; a Revolta Farroupilha, no Rio Grande do Sul/Santa Catarina.

A Cabanada, a Balaiada e a Cabanagem foram impulsionadas por facções das elites regionais, que se retiraram da luta quanto ela assumiu sentido social com o ingresso na liça das classes subalternas – libertos; livres pobre; índios aculturados; cativos crioulos e africanos.

A longevidade da revolta farroupilha deveu-se ao fato os proprietários manterem os subalternos á margem efetiva do movimento durando os dez anos de guerra. Homens pobres, gaúchos, libertos e cativos lutaram por objetivos que não eram seus, ao lado dos farrapos ou imperialistas.

Os libertais sulinos expressaram sobretudo os grandes criadores o meridião. No inicio, reivindicaram a autonomia federativa e, a seguir, a separação e a república. Os ricos comerciantes sul-rio-grandenses optaram pelo Império, levando a que os farrapos perdessem o controle das grandes cidades e do litoral. A região colonial alemã e a semana foram sobretudo imperialistas.

As tropas farroupilhas formaram-se principalmente por peões e libertos. Trabalhadores escravizados eram alforriados para substituírem anos chamados ás armas. Cativos dos imperialistas eram arrolados. Com a resistência do homem livre em servir a República, escravos foram comprados para preencher as filas republicanas.

Multidões de cativos aproveitaram a guerra para aquilombar-se e cruzar as fronteiras. Na guerra farroupilha, a bandeira ao negro foi o mato! No final do conflito, a população sulina escravizada estava dizimada.

Os gaúchos, em geral descendentes de guaranis e pampeanos esbulhados das terras ancestrais, acompanharam os fazendeiros nos combates ao igual que nos campos. Quando seus caudilhos trocavam de bandeira, faziam-no também sem pelo. O ideário farroupilha significava-lhes comida, saque e soldo, quando pago.

Jamais houve democracia racial nas tropas farrapas. Negros e brancos marchavam, comiam, dormiam e morriam separados. Os oficiais dos soldados negros eram brancos. A Constituição farrapa dizia: “A República do Rio Grande é a associação politica de todos os cidadãos rio-grandenses”. Isto é, dos “homens livres nascidos no território a República””.

Os principais chefes farrapos eram escravistas. O general Bento Gonçalves da Silva, ao partir preso para a Corte, levou consigo negro doméstico para servi-lo. Ao morrer, legou as terras, bois e quase meia centena e homens negros.

Os farroupilhas jamais prometeram terras aos gaúchos e liberdade aos cativos. Sequer propuseram o fim do tráfico! A revolta era das elites, para as elites. Como o Império, a República repousava sobre o latifúndio e a escravidão. Tudo continuaria como dantes, na senzala de Abrantes.

É tradicionalmente desconhecido o importante papel do cativo na sede, plantações e campos da fazenda pastoril. A presença sistêmica do peão negro nos grandes criatórios explica a defesa farroupilha da escravidão. Também a ordem social pastoril sulina assentava-se na escravidão.

Ao celebrar ideais que jamais foram seus, as classes trabalhadoras e populares sulinas reafirmam a dura submissão que seus ancestrais viveram no passado. A revolta farroupilha e sua memória pertencem ás elites e ontem e de hoje. Nada houve ou há para ser celebrado pelo mundo do trabalho. Igualdade, Liberdade e Humanidade foram três palavras vazias gravadas em outra bandeira escravista.

Referências

  1. Publicado no jornal Opinião edição de 30/10/2001.