Entre mascates e comerciantes: o comércio de sírios e libaneses em Passo Fundo (1900-1930)

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Entre mascates e comerciantes: o comércio de sírios e libaneses em Passo Fundo (1900-1930)

Em 2019, por Alex Antônio Vanin e Alana da Silva Follador


Alex Antônio Vanin[1]

Alana da Silva Follador[2]


Resumo: O presente capítulo tem por objetivo analisar a constituição de redes de relações comerciais de imigrantes sírios e libaneses na cidade de Passo Fundo durante a primeira metade do século XX. Busca-se compreender aspectos gerais da imigração de populações do Oriente Próximo para o Brasil na passagem do século XIX para o XX, bem como entender acerca do desenvolvimento desses processos migratórios dentro do país, a formação de núcleos étnicos e regiões de comércio características da inserção econômica destes imigrantes. Afinal, entre mascates e comerciantes, o comércio passo-fundense adquiriu novas facetas na intermediação mercantil, nas formas de se fazer comércio e de se desenvolver os negócios, sobretudo no núcleo urbano do município.


Palavras-chave: Comércio. Sírios e libaneses. Imigração.


Introdução


O presente capítulo visa analisar as relações e as redes de comércio estabelecidas por imigrantes sírios e libaneses em Passo Fundo, enfocando, como recorte temporal, as três primeiras décadas do século XX, justamente por ser o período que abarcou a chegada e a instalação residencial e comercial no município. Intenta-se compreender aspectos estruturais da imigração de populações do Oriente Próximo para o Brasil na passagem do século XIX para o XX, bem como entender acerca do desenvolvimento desses processos migratórios dentro do país, a formação de núcleos étnicos e regiões de comércio características da inserção econômica destes imigrantes, destacando sua fixação e participação na economia do município de Passo Fundo, no norte do estado do Rio Grande do Sul.

O texto estrutura-se da seguinte forma: primeiramente analisar-se-ão alguns tópicos sobre a imigração de sírios e libaneses para o Brasil, assim como algumas de suas características principais. Para tanto, para além de uma ampla revisão bibliográfica acerca desse movimento migratório específico em seus contextos locais, regionais e nacionais, também utilizar-se-á de um variado número e tipologia de fontes primárias, como processos cíveis armazenados junto ao Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), guias comerciais do município de Passo Fundo e anúncios de serviços e casas comerciais em jornais passo-fundenses como A Voz da Serra e O Nacional, disponíveis no Arquivo Histórico Regional (AHR). Recorrer-se-á, também, à oralidade coletada através de entrevistas[3] realizadas com imigrante e descendentes de imigrantes sírios e libaneses em outros momentos da pesquisa[4], que auxiliarão na composição dessa narrativa.

Assim, em razão de sua marcada e reconhecida presença em Passo Fundo, entrevistou-se algumas pessoas que se dispuseram a narrar fragmentos da memória familiar, a partir de questionamentos em torno do período da imigração de seus antepassados para o Brasil, a chegada a Passo Fundo, a formação do núcleo familiar, a constituição das relações de trabalho, a fixação econômico-social, entre outros aspectos que compuseram esse cenário migratório específico. Desse modo, no espaço proposto, constrói-se uma narrativa que busca contemplar os múltiplos aspectos que compuseram a dinâmica das relações comerciais desenvolvidas por esses imigrantes e descendentes em Passo Fundo. Nesse capítulo não será possível contemplar a todos os entrevistados, tampouco esgota-se o potencial de pesquisa, que intenta ser um recorte de um estudo mais aprofundado que vem sendo realizado.


Do Oriente às Américas: a “Grande Síria” e alguns fatores da imigração sírio-libanesa para o Brasil e para o Rio Grande do Sul


A imigração de sírios e libaneses para o continente americano constituiu-se como um dos movimentos de deslocamento populacional marcantes de fins do século XIX e início do século XX. De antemão, antes de se tecer considerações acerca do processo imigratório em si, deve-se definir espacialmente, ainda que em linhas gerais, o território de origem dessa população ao tempo de sua partida. O território da Síria e do Líbano, na atualidade países independentes, à época das grandes movimentações migratórias obedecia a uma lógica diversa de composição espacial e de organização administrativa.

Nos primórdios desses deslocamentos, isto é, por volta da década de 1880, a região ocupada pelos referidos territórios ainda compunha o Império Turco-Otomano (1299-1922), no Oriente Próximo, entorno da chamada “Grande Síria”, território anexado ao Império ainda no século XVI, fruto da expansão e ocupação territorial que se estendeu desde a Ásia Menor, ao norte da África, até o sudoeste da Europa. Constituída pelas províncias de Jerusalém, Beirute, Síria, Allepo e Dayr az-Zor, a Grande Síria detinha certa coesão no sentido de existir uma proximidade cultural, bem como geográfica entre essas porções do território turco-otomano.

A região da Grande Síria, sobretudo na segunda metade do século XIX, foi palco de disputas e embates internos e externos que definiram as condições que favoreceriam o processo migratório no último quartel daquele século. As causas desse processo são múltiplas, variadas e de difícil definição, próprias do contexto de distensão experimentado pelo já decadente Império Turco-Otomano. O que se pode afirmar é que a falta de terra, dificuldades econômicas, posição política e social inferior atribuída aos cristãos sob os domínios do sultanato, quando não vítimas de opressão e perseguição religiosa, foram marcantes no contexto anterior à emigração de muitos sírios e libaneses.

Na Grande Síria, os maronitas eram perseguidos em função da opção religiosa: adeptos de São Maron, vinculados à Igreja Católica Siríaca, que tem comunhão com a Igreja Católica Romana, e reconhecem a autoridade papal. Os maronitas eram árabes-cristãos e, portanto, compunham uma minoria étnico-religiosa que não correspondia à autoridade do sultanato, regime sob o qual o Império congregava, na figura do sultão, o líder político e religioso, o califa do Islã. Na segunda metade do século XIX, os maronitas passaram a ocupar também o sul do Líbano e acabaram envolvendo-se em conflitos com os drusos, uma maioria árabe-maometana que dominava a região (Campos, 1987), produzindo-se uma realidade de tensão social e religiosa, de deslocamentos e de massacres de cristãos – com a conivência das autoridades turcas – tanto na Síria quanto no Líbano, principalmente na década de 1880.

As causas da emigração, contudo, também se conjugavam a um cenário de transformações econômicas experimentado por aquela região. Na Grande Síria, predominava uma economia de subsistência, visto que o transporte pela região era precário devido às características geográficas. Todavia, a partir da expansão do processo de industrialização e das melhorias no meio de transporte terrestre e marítimo decorrentes da modernização industrial, os bens manufaturados se tornaram constantes nos mercados locais da região, principalmente após a abertura do Canal de Suez em 1869 e, posteriormente, pela instalação da linha ferroviária de Hedjaz, que planejava ligar Damasco (atual capital da Síria) a Medina (na atual Arábia Saudita). No entanto, ao longo desse período, devido à ausência de impostos sob as mercadorias importadas e industrializadas pelas potências europeias, várias indústrias têxteis sírias acabaram em decréscimo (Truzzi, 1993).

Consequentemente e pouco a pouco, em razão do crescimento dos centros urbanos, atividades como a de tecelões, tintureiros, artesãos em cerâmica e cestas de palha, além da produção agrícola de subsistência começa a perder força. Assim, a principal fonte de renda de centenas de aldeias perde espaço para o mercado aberto pelas potências europeias, ao passo que transforma muitas cidades em grandes centros comerciais, que vão sendo ampliados sobretudo após a inserção francesa e inglesa na região. Até o final do século XIX as populações das aldeias atingem um limite demográfico, ao mesmo tempo que a possibilidade de aquisição de terras disponíveis para cultivo começa a escassear. Portanto, a falta de água, a indisponibilidade fundiária e a fertilidade precária do solo foram elementos que contribuíram para a tendência migratória.

Além disso, a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a participação do Império Turco-Otomano no conflito definiram em muito os rumos da emigração de muitos sírios e libaneses no pós-guerra, assomando-se também às causas da emigração para outros locais do mundo. No período anterior à guerra, entre 1900 e 1914, houve uma grande diáspora da Síria e do Líbano – acredita-se que em torno de um quarto da população do Líbano tenha emigrado em direção a vários continentes, para territórios da África, América, Europa, Ásia Ocidental e Ilhas do Pacífico (Knwolton, 1961). Antes mesmo do início da guerra, o serviço militar obrigatório imposto aos cristãos e o rude tratamento que lhes era atribuído nas linhas otomanas também fomentou o desejo nos sujeitos de emigrar com o intuito de fugir do serviço militar (Francisco, 2013).

Após a derrota otomana no conflito mundial, há a redefinição das influências estrangeiras que pairavam sobre o território. Houve a partição de regiões do Império sob administração direta das potências vencedoras, notadamente à França e ao Império Britânico, nos regimes “mandatos”, isto é, zonas de influência, particularmente interessadas nos poços de petróleo do Oriente Próximo. O Mandato Francês da Síria (1920-1946) e o Mandato Britânico da Palestina (1920-1948) foram instituídos logo após o fim do conflito, sendo ratificados pelos Tratados de Sèvres, em 1920, e o Tratado de Lausanne, em 1923, este último reconhecia também a criação da República da Turquia. Assim, os territórios da Grande Síria passam a uma nova configuração de poderes, novas estruturas administrativas e atribuíram novos aspectos ao processo migratório.

A influência política e a ocupação francesa após a Primeira Guerra Mundial na Síria e no Líbano também estão no centro das causas de muita emigração, pois a população que havia sido oprimida pelo Império Turco-Otomano acreditava na sua independência e autonomia política, bem como no crescimento econômico, esperança frustrada ao passo que a repressão passou a advir também da administração estrangeira. Daí a tentativa de emancipação buscada ainda naquela década, entre 1925 e 1927, na Grande Revolta Síria, onde várias facções políticas e religiosas, como os drusos e maronitas, empreenderam estratégias em torno daquele fim e acabaram reprimidos violentamente pelos exércitos franceses. A infraestrutura econômica daquela zona também foi fortemente atingida pelo conflito, asseverando as condições materiais precárias do período anterior.

Esses fatores de ordem econômica, demográfica, política e religiosa tornaram-se os principais elementos que motivaram a imigração síria e libanesa para o continente americano. Sublinha-se que a pressão econômica, demográfica e política sobre a população foram elementos essenciais para cultivar a ideia da emigração, contudo, essa opção, em muito, partia do núcleo familiar. Para custear uma viagem era necessário dispor de recursos que ao menos subsidiassem a viagem transatlântica. Isso tudo, somado à propaganda de companhias de navegação que fomentavam o desejo de emigrar e informavam sobre oportunidades no exterior, reificava a emigração enquanto possibilidade de mudança de condições (Truzzi, 1999; Knowlton, 1961).

Os Estados Unidos passam a serem vistos como uma terra de esperança e de oportunidades, de “inegável riqueza” (Knwolton, 1961, p. 22). Todavia, muitos foram os casos de desvios de rota, ou seja, mudanças de destino ao longo do percurso do Oriente ao continente americano, já que nem sempre o destino acordado antes do embarque era o mesmo a ser encontrado no desembarque. Esse processo de desvio de rota deu-se muito em razão de que houve restrições à entrada de imigrantes nos Estados Unidos. Isso tornou a opção de emigrar para a Argentina e para o Brasil uma realidade. No Brasil, não havia grandes barreiras, ao contrário, havia uma política que demandava imigrantes para suprir lacunas no âmbito econômico e territorial. Conforme Truzzi (1992), muitos sírios e libaneses desembarcaram em Santos ou no Rio de Janeiro acreditando estarem nos Estados Unidos.


Em terras brasileiras: de São Paulo ao Rio Grande do Sul


A imigração para o Brasil não obedeceu a nenhuma política pública ou a algum acordo estatal; foi uma imigração não oficial, em um movimento que se pode conceber enquanto “espontâneo”, isto é, sem o auxílio ou acolhimento público de projetos de colonização, a exemplo dos implantados no Brasil no século XIX com levas de imigrantes alemães e italianos (Francisco, 2013), esses direcionados, em sua maioria, ao trabalho agrícola em minifúndios ou nas lavouras de café do centro do país. Sabe-se que os sírios e libaneses que emigraram para o Brasil no final do século XIX possuíam origem agrícola e de pastoreio, muito embora em terras brasileiras adentraram muito pouco na reprodução dessa atividade econômica (Francisco, 2013).

Os meios pouco acessíveis de acesso à propriedade da terra, a estrutura latifundiária, a produção monocultora, a carência de recursos, entre outras características latentes do desenvolvimento econômico brasileiro no início do século XX, inviabilizaram a reprodução das atividades ligadas à agricultura no país de destino por parte dos imigrantes sírios e libaneses. Porém, não ter acesso à terra e nem reproduzir atividades agrícolas não significou o deslocamento da força produtiva desses imigrantes para as fábricas ou para o engrossamento do operariado urbano (Truzzi, 1992). Na realidade, os sírios e libaneses não se enquadraram em nenhum dos supracitados horizontes laborais, tampouco inseriram-se em projetos de colonização com imigrantes, como ver-se-á posteriormente.

É importante ressaltar que os dados são imprecisos quanto ao número de imigrantes sírios e libaneses que adentraram ao Brasil em função da inexistência de separação entre Síria, Líbano e Império Turco-Otomano até a década de 1920, quando os territórios foram administrativamente separados. Até esse período, os passaportes e as proveniências registradas englobavam a multiplicidade da classificação de “turcos”, tornando impossível precisar em números totais esses deslocamentos específicos da região da Síria e do Líbano (Knowlton, 1961). Não se pode esquecer também que mesmo durante o período em que o Líbano compôs parte do território sírio, muitos libaneses emigrados ao Brasil podem ter sido classificados como sírios e estes, em outros momentos, como turcos. Desse modo, percebe-se a complexidade da definição, bem como da identificação identitária, que é diversa no emprego dos termos, por exemplo, de “sírio-libanês” ou “sírio e libanês”, tal como de “turcos” e “turcos-árabes”, que devem ser empregados apropriadamente em diferentes períodos desse processo.

A grande maioria dos sírios e libaneses que chegava ao Brasil era de cristãos-árabes, sobretudo homens jovens e solteiros, emigrados de pequenas aldeias de característica rural, pastoril e de base familiar. O deslocamento para o continente americano podia seguir vias marítimas diversas, não raro passando por diversos países em conexões portuárias – como os portos de Alexandria, Marselha, Gênova – realizadas também para o preenchimento dos navios com outros imigrantes e custeio da viagem pelas companhias de navegação.

Destaca-se que houve algumas periodizações de maior intensidade da imigração sírio-libanesa para o Brasil. A primeira onda de imigração situou-se entre os anos de 1895 a 1914, com em torno de 57.000 imigrantes; a segunda, a partir da década de 1920 até 1930, contabilizou 43.210 imigrantes; e a terceira, no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Desses dados depreende-se a manutenção de certo fluxo de imigrantes em direção ao Brasil – descontando-se uma redução significativa dessa imigração em função da Primeira Guerra, quando aportaram no Brasil cerca de 2.693 imigrantes, justo em função das barreiras levantadas pelo conflito. No Censo de 1920, havia 50.337 sírios e libaneses residentes no Brasil, a maioria deles, aproximadamente 19 mil, encontravam-se em São Paulo, já 9 mil estabeleciam-se no estado do Rio de Janeiro e cerca de 8 mil em Minas Gerais (Knowlton, 1961).

Como afirmado anteriormente, houve pouca inserção, de maneira geral, de sírios e libaneses nos contextos de trabalho agrícola e fabril. A inserção principal desses imigrantes se processou através da atividade comercial em múltiplos horizontes. Ainda que nem todos tenham adentrado ao desenvolvimento dessa atividade, a dimensão comercial tornou-se uma marca histórica da presença síria e libanesa nos contextos urbano e rural em que se fez presente.

A figura do mascate surge nesse contexto também como marca da imigração de sírios e libaneses no Brasil. A denominação “mascate” é uma das designações populares da profissão de caixeiro-viajante, o comerciante ambulante, aquele que ia ao encontro de seus compradores, deslocando-se por longos caminhos, carregando toda a sorte de mercadorias para a venda, como vestimentas, calçados, chapéus, armarinhos, ferramentas, bijuterias, tecidos, rendas, bordados, entre outros (Tedesco; Vanin, 2017).

A maior expressão desse grupo étnico em correlação à tipologia comercial referida foi alcançada justamente em centros urbanos comerciais, como a cidade de São Paulo (Truzzi, 1992) e a cidade do Rio de Janeiro, visto que se tratavam dos maiores núcleos de dinamismo econômico e circulação de mercadorias. Em movimento posterior e gradual, os deslocamentos desses imigrantes atingem centros interioranos e mais distantes do centro do país, adentrando também ao comércio ambulante em zonas rurais, que se tornavam espaços de grande expressão para esses vendedores. Logo, mercados locais, interligações regionais, ocupações territoriais, dinamismos de trocas comerciais, estratégias de construções de mercados informais foram sendo dinamizadas em múltiplos espaços do país por esses grupos nacionais e étnicos (Nunes, 1986).

A maior parte dos imigrantes sírios e libaneses eram pequenos agricultores, entretanto a diferença do modo de produção de sua terra natal ao adotado no Brasil, com as grandes lavouras, tornou-se uma barreira, além da falta de recursos para estabelecerem propriedades rurais. Como o grande objetivo era amealhar recursos para a família no país de origem e, se possível, retornar à terra natal ou mesmo prover a migração do núcleo familiar para o país de destino, boa parte dos imigrantes, com os poucos recursos de que dispunham, dedicaram-se à atividade de mascate. Muitos tinham certa familiaridade com a questão do comércio, pois o território sírio era uma rota obrigatória de comércio entre o Ocidente e Oriente, além de encontrarem uma sociedade em vias de se urbanizar (Truzzi, 2005).

A indústria e comércio têxtil de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, a chamada “era dourada” da fabricação de tecidos, possuía a marca dos sírios e libaneses (Truzzi, 1992). Ressalta-se, ademais, que a vida econômica-mercantil de mascates foi favorecida pela malha ferroviária do Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente para chegar em cidades do interior dos estados. Porém, foi no lombo de mulas que muitos deles ganharam notoriedade e identificação no interior das fazendas de café e cana de açúcar. Segundo Truzzi, esse processo aproximava mais os colonos e trabalhadores em geral das usinas e fazendas, pois diminuía a dependência desses em relação aos fazendeiros. Sublinha-se que os mascates “eram bem recebidos pelos colonos; esses preferiam negociar com eles; além dos preços, as formas de pagamento eram mais favoráveis” (Truzzi, 1999, p. 320).

No território sul-rio-grandense, a presença síria e libanesa, nas últimas décadas do século XIX, pode ser identificada, inicialmente, em municípios como Bagé, Uruguaiana, Pelotas e Rio Grande, isto é, na porção meridional do Rio Grande do Sul. Tal fato deve-se, como demonstra Francisco (2017), à proximidade mercantil e à existência de trocas comerciais com platinos do Uruguai e da Argentina, ambos países também receptores de imigrantes provenientes do Oriente Próximo e do Oriente Médio. A entrada dos primeiros imigrantes teria se processado por meio da via marítima, através do Porto de Rio Grande, e por via terrestre a partir da Argentina e do Uruguai. Destaca-se que em fins do século XIX até as primeiras décadas do século XX houve uma considerável circularidade de mascates árabes na região fronteiriça no sul do estado.

Sendo assim, nas últimas décadas do século XIX, nas regiões de fronteira e na região de grandes centros urbanos já se identificava a presença, sobretudo no comércio, de sírios e libaneses. Cerca de 20% dos imigrantes sírios e libaneses se instalaram no interior do Rio Grande do Sul, longe das grandes capitais, apesar de manterem uma grande mobilidade territorial (Francisco, 2017) gerada pelo mascateamento então praticado. As regiões interioranas se mantiveram com baixo índice de imigrantes, mas a partir da década de 1940 consegue-se observar um aumento significativo de sírios e libaneses nos municípios de Passo Fundo e Santa Maria (Francisco, 2017; Tedesco; Vanin, 2017).

Na região Norte do Rio Grande do Sul, no início do século XX, próximo aos projetos de colonização desenvolvidos pelo estado e por iniciativa privada, abriram-se também novos mercados, tanto nas zonas urbanas quanto nos contextos rurais das colônias, locais oportunos para o desenvolvimento das atividades comerciais desenvolvidas pelos imigrantes árabes. A construção de novos traçados, ligações inter-regionais, e a instalação da ferrovia São Paulo-Rio Grande, cruzando a região norte e reforçando a atividade comercial de determinados centros urbanos como Passo Fundo, Carazinho, Erechim e outros adjacentes foram elementos que estabeleceram novos paradigmas de desenvolvimento econômico regional, tornando-se atrativo para o estabelecimento de empreendimentos de indústrias moageiras e madeireiras, bem como casas de comércio, hotéis e estabelecimentos urbanos de outras ordens (Tedesco, 2015).

Outrossim, a região de Passo Fundo tornava-se atrativa ao desenvolvimento de atividades comerciais, período em que levas de imigrantes – como italianos, judeus e poloneses – viriam a se estabelecer na localidade em função da ligação proporcionada pela instalação da ferrovia (Tedesco; Vanin; Gritti, 2017; Tedesco; Gritti, 2017). Para os sírios e libaneses, a manutenção das atividades de comércio ambulante também se tornava uma oportunidade atrativa, isto é, havia a possibilidade de desenvolvimento rápido de seu patrimônio e de abertura de armazéns, tudo a partir do ofício de mascate (Francisco, 2017). Em Passo Fundo, como ver-se-á a seguir, os mascates sírios e libaneses ocupariam uma parte central na cidade, assim como uma porção do comércio desenvolvido na primeira metade do século XX.


Entre mascates e comerciantes: dinâmicas comerciais de sírios e libaneses em Passo Fundo


A instalação de sírios e libaneses no município se processou em concomitância a outras levas de imigrantes de outras nacionalidades. A presença de sírios e libaneses em Passo Fundo e sua participação no comércio local/regional é notável pelo menos desde a primeira década do século XX. Para além, não se deve esquecer que Passo Fundo, no final do século XIX e mesmo nas primeiras décadas do século XX, era um município agrícola e extrativista, com pouca produção de excedentes; o latifúndio e a estrutura pecuarista ainda preponderavam. Diante disso, as novas colônias e colonizações estavam se processando, a indústria da madeira estava em evidência e o processo de produção agrícola se diversificando (Tedesco; Vanin, 2017).

No dia 17 de março de 1906, Felippe Meleme Ab’abud atendia a intimação recebida por ele, dias antes, por ordem do então juiz Francisco Antonino Xavier e Oliveira, para que comparecesse em audiência no juízo do 1º Distrito de Passo Fundo[5]. A intimação possivelmente dividiu espaço com os tantos objetos que Ab’abud conservava em sua bruaca[6], no distante caminho que tivera de percorrer até a sede do município, visto que, ao tempo do recebimento da intimação, mascateava em Carazinho, então 4º Distrito de Passo Fundo. Ab’abud era sírio, mascate de profissão e, naquele ano, já residia no município. O mascate era levado à justiça por ser devedor de uma quantia concedida em empréstimo por seus fornecedores de tecidos e “miudezas”, a empresa porto-alegrense Nassur & Abachi. O sócio da empresa, Antonio Nassur, também sírio, estava na cidade para fazer valer os termos do contrato firmado dois meses antes, no qual, amparado pelo testemunho de Eduardo Barreiro Gomes, hoteleiro espanhol, e Neme Dumit Seadi, comerciante sírio de Porto Alegre[7], Ab’abud havia se comprometido em retornar a quantia aos credores[8].

Ao fim, Ab’abud conseguiu uma ampliação de prazo para quitar seus débitos. Contudo, se a dívida foi paga, não se sabe. Todavia, independentemente da quitação ou não, a situação e os envolvidos na questão são passíveis de algumas inferências e conjecturas que permitem compreender o cenário maior das relações experimentadas pelos sujeitos. Aliando uma identidade comum, a relação do distribuidor Nassur e do mascate Ab’abud é diversa em termos de condições financeiras, embora a identificação étnica siríaca talvez lhes estabelecesse uma relação de confiança e aproximação. Nassur possuía um comércio estabelecido na capital, uma importadora e revendedora de tecidos e armarinhos[9]. Já Ab’abud era um intermediário, o mascate vendedor que fazia a mediação e a interiorização da venda dos produtos de seu distribuidor, este que, em princípio, também se deslocava da praça de Porto Alegre para o interior do estado, a fim de resolver problemas e selar acordos comerciais diversos com mascates a seu serviço, estabelecendo linhas de crédito e lhes concedendo empréstimos. O caso de Ab’Abud é também uma das primeiras evidências da presença de sírios e libaneses em Passo Fundo.

Na década seguinte, em 1915, o comerciante Antonio Nassur retornaria a Passo Fundo, mais uma vez com o objetivo de entrar na justiça com o propósito de cobrar dívidas, dessa vez suas motivações eram acerca das dívidas contraídas pelo comerciante sírio Moysés Dipp. A dívida de Dipp era cumulativa de cinco anos de empréstimos e créditos concedidos pela empresa de Nassur na forma de dinheiro e mercadorias enviadas para revender na mesma espécie em sua casa comercial, onde havia começado seus negócios em 1910, primeiramente como mascate e posteriormente em estabelecimento fixo. Moysés Dipp era proprietário de um comércio de “fasendas e miudesas para vender a retalho ou a varejo”[10], a “Loja da Syria”.

Diferentemente de Ab’abud, Dipp havia sido procurador e representante comercial de Nassur em Passo Fundo, parceria que se rompera um ano antes do início do processo de cobrança de dívida. Nassur apresentou ao juiz a caderneta de débitos e créditos de Dipp relativa ao quinquênio 1910-1915, a qual interessa muito mais em função das relações comerciais estabelecidas do que propriamente pela dívida acumulada[11]. Nas transações operadas por Dipp, as movimentações de somas de dinheiro apresentam elementos para a compreensão da dinâmica econômica que compunha as relações do comerciante.

Na lista de pagamentos, outros sírios, como José Pedro, Simão Antonio Motze, Antonio Chediac, Bechara Amin, Ayub Curi Maluf, Tanús Dausa, aparecem na ordem do dia dos negócios, não sendo possível identificar se são comerciantes como Dipp ou mascates contratados por ele para esse trabalho. Muito embora a fixação comercial fosse almejada e significasse simbolicamente uma ascensão econômica, o mascateamento não necessariamente era deixado de lado ou superado enquanto prática comercial. Ambos coexistiam, justamente pelo fato de existir uma clientela previamente formada pelo comerciante, fidelizada pelos contatos do mascate, que era interessante de ser mantida em conjugação à clientela urbana que acessava a loja no centro da cidade. Dessa forma, esses comerciantes, “ex-mascates”, empregavam outros, em geral patrícios que conheciam ou já realizavam o ofício, ou mesmo membros da família.

Moysés Dipp, segundo relato de entrevistada[12] e registros cartoriais, fora o motivo da emigração de pelo menos dois de seus irmãos, Aisse e Isa Dipp, logo após a montagem de seu negócio e fixação comercial em Passo Fundo. Daí o registro na caderneta de Moysés Dipp referenciar, em 1913, a destinação de dinheiro, mercadorias e roupas para um de seus irmãos, possivelmente inserindo-o na atividade de mascate no município. Na maioria das vezes, os mascates trabalhavam para outros patrícios já estabelecidos, o que facilitava a obtenção de mercadorias para a comercialização sem antes precisar pagar por elas. A necessidade do dinheiro era satisfeita pelas vendas no comércio (Francisco, 2013). Para mais, destaca-se que a vida de mascate não requeria tanto capital inicial, pois compravam a crédito e o escoamento era, em geral, rápido e lucrativo (Knowlton, 1961).

Além disso, alguns entrevistados afirmam ter havido uma grande cooperação entre os imigrantes, algo que demonstra ter sido fundamental para dinamizar o comércio, aproximando o vendedor de sua freguesia. Ressalta-se que o mascate, em suas incursões de casa em casa, vendia à vista, em dinheiro ou em prestações. O parcelamento das dívidas de seus consumidores constituiu-se enquanto uma estratégia mercantil, pois garantia a possibilidade de retornar novamente e vender ainda mais, aumentando, com isso, a rede de clientela e o volume transacionado, para além apenas da cobrança dos débitos anteriores. As vendas entre o atacado e o comerciante, em geral, processavam-se com pagamentos em prestações, fato esse que criava uma rede de confiança, como também a movimentação de dinheiro entre comerciantes e consumidores (Francisco, 2013; Morales, 2001).

Isa Dipp foi um dos imigrantes casados que empreendeu viagem para o Brasil, emigrando por volta de 1904 e concentrando-se em São Paulo, talvez acompanhado de seus irmãos[13]. Moysés Dipp, o primeiro a chegar em Passo Fundo, amparou os irmãos com informações acerca do lugar e proporcionou o deslocamento de ambos para o município. Ainda antes da eclosão do conflito mundial, Isa retornara ao Líbano para buscar sua esposa, Salima Elias, com quem havia se casado pouco antes de emigrar[14].

Avenida Brasil, Foto: 1910 Desconhecido[15]

Trabalhando com os irmãos, Isa seguiu mascateando até 1924 quando, após reunir capital suficiente não apenas para o sustento da família, como também para investir em seus negócios, estabeleceu uma pequena loja de secos e molhados, a “Casa Dipp”, uma espécie de mercadinho atendido pela família, na Avenida Brasil, perto da Praça da República[16], local bem próximo de onde o imigrante Miguel Buaes e seus filhos viriam a instalar casas comerciais no início da década de 1930: Jorge Buaes estabeleceria a casa comercial “A Libaneza”, no cruzamento da Rua Fagundes dos Reis e Avenida Brasil, ao lado da Praça da República, e seu irmão, Estanislau, um bar no lado oposto da via. Nessa região do centro da cidade, muitos outros sírios e libaneses se instalaram em comércios de tipo variado, configurando, em boa parte da Avenida Brasil, quadras comerciais marcadas por esse comércio “étnico”, referenciadas por muitos interlocutores como as “quadras dos turcos”, em alusão àqueles imigrantes.

A conexão entre os irmãos também é patente das redes formais e informais de comunicação, familiares e entre co-nacionais, constantemente acessadas para viabilizar o processo migratório e dar sustentação aos imigrantes recém-chegados, para os quais o emprego de pessoas da família, amigos e conhecidos eram fruto de combinações e acordos de longa distância, fosse com outras regiões do estado, como São Paulo, ou mesmo com a Síria e o Líbano. Em Passo Fundo, é exemplo disso as famílias de Pedro José Estacio e Antonio José Estacio, comerciantes libaneses que compravam mercadorias “pessoalmente em São Paulo”[17], ao mesmo tempo que mantinham comércio regular no município e agenciavam o deslocamento e acolhida de familiares e conhecidos na cidade. Sublinha-se que esse foi o caso e um dos entrevistados para essa pesquisa, Joseph Boulos Estacia[18], que emigrou aos 25 anos, em 1951, e que já chegou com o trabalho assegurado na loja de seu tio-avô, Pedro Estacio.

Outro imigrante sírio que acabou por se estabelecer em Passo Fundo ainda na década de 1910 foi Abdul “João” Kalil, e na nova localidade passou a atuar como mascate. Negociando artigos diversos, mas principalmente cavalos e bebidas, Kalil desenvolveu o ofício de comerciante até seu falecimento, em 1935. Para mais, destaca-se que, diferentemente da grande maioria de seus patrícios, estabeleceu-se no Boqueirão, antiga área central da cidade, de onde o centro comercial se deslocara em direção à ferrovia, ao longo da Avenida Brasil. Do casamento de João Kalil com Morena Canfield, em 1919, nasceram quatro filhos, dos quais Eblen Kalil manteve-se alinhado à lógica comercial, não enquanto mascate, mas enquanto proprietário de alfaiataria, no centro da cidade, próximo ao Templo Metodista, constituindo relações comerciais com patrícios de seu pai e outros imigrantes sírios e libaneses estabelecidos ou que viriam a se estabelecer em Passo Fundo[19].

No município de Passo Fundo, no então distrito de Não-me-Toque, um correspondente do jornal O Nacional, em 1926, denunciava o comércio de mascates como um flagelo vivido pelo município como um todo[20], em razão do não-pagamento de impostos sobre as mercadorias vendidas, em sua maioria, pelos sírios e libaneses que circulavam pela região. No ano seguinte, em 1927, talvez pelas crescentes reclamações advindas de comerciantes estabelecidos, isto é, os principais concorrentes do comércio ambulante, a administração municipal passou a incorporar um imposto[21] sobre aquela atividade econômica, de acordo com os produtos que fossem comercializados. Tanto as reclamações quanto a incorporação de impostos à atividade dos mascates revelam que havia uma articulada rede de comércio ambulante atuante em Passo Fundo, externando também o dinamismo que envolvia a profissão.

Na narrativa de muitos dos entrevistados, a atividade de mascatear é relembrada enquanto um período de árduo trabalho, de sacrifícios em prol do acúmulo de capitais para a sustentação familiar e para prover a educação aos filhos, e também como uma profissão de permeada de riscos. O deslocamento do ambulante, sobretudo por entre as áreas rurais e interioranas, constituía-se, muitas vezes, como uma empreitada de risco em função da possibilidade de roubos e hostilidades em locais onde as autoridades e outras garantias não eram tão asseguradas quanto em contextos urbanos. Em dezembro de 1930, o mascate sírio Ayub Mafuz foi assassinado[22] em Passo Fundo, na estrada que ligava Três Passos a Camargo, próximos ao Tope, no 5º Distrito do município. O motivo do assassinato teria sido justamente o de furtar as mercadorias e o dinheiro carregado pelo mascate, atraído para o município, possivelmente, em função do parentesco com a família Dipp.

Além disso, muitos dos entrevistados alegaram também a existência de uma ampla rede de comércio e deslocamento, resultante de um processo de migração regional desses grupos sociais, sendo essa uma das razões de o município ter absorvido muitos migrantes que se deslocaram de outras regiões. Pelas entrevistas, há constantemente referência a Lagoa Vermelha, Palmeira das Missões, Erechim e, principalmente, Soledade como espaços de grande circulação regional de sírios e libaneses.

Linda Dipp Estacia[23] narra que seu pai, Antonio Elias Dipp, natural do Líbano, da cidade de Zouk Mikael, emigrou ainda jovem, logo após atingir a maioridade. No Brasil, acabou por estabelecer-se em Soledade, onde havia alguns primos já emigrados e onde viria a contrair matrimônio com Maria Antonio Dipp, imigrante libanesa que se instalou em Passo Fundo, em 1926. Antonio Elias havia adotado o ofício de mascate nos primeiros tempos, como tantos de seus patrícios e, em 1919, migrou para Passo Fundo, onde pode adquirir terreno na esquina entre a Avenida Gal. Netto e a Rua Gal. Osório, abrindo uma loja para venda de artigos diversos.

Outro migrante na região foi o sírio Jorge Felippe Dadia que, em função da pressão exercida por seus familiares, emigrou da Síria para o Brasil em fuga do serviço militar obrigatório, para o qual a família já havia perdido dois de seus irmãos. No território brasileiro, após a Primeira Guerra Mundial, o imigrante libanês otimizou seus conhecimentos prévios: familiarizado com o manejo e beneficiamento do couro em sua terra natal, instalou-se em São Paulo e abriu uma confecção de sapatos. Após a falência dos negócios em função da perda do patrimônio em jogos de apostas, o ofício de mascate fora o que restou para Jorge Dadia, que passou a exercê-lo no Rio Grande do Sul, estabelecendo-se em Santa Cruz do Sul e, por volta de 1921, em Passo Fundo. Já instalado no centro da cidade, na Rua Cel. Chicuta, Dadia retomou seu ofício de sapateiro, fabricando e consertando calçados, sustentando por muito tempo o cargo de “sapateiro oficial” do Instituto Educacional (IE)[24]. Através do relato de um de seus descendentes, enfatiza-se que Jorge Dadia foi atuante no recebimento e estabelecimento de redes de ligações com outros imigrantes que chegavam na região, muitos tendo se estabelecido nesta em função de sua intermediação. Visto que Dadia auxiliou nas demandas mais prementes do recém-chegado imigrante, provendo moradia, trabalho e empréstimos em dinheiro, operacionalizando, portanto, deslocamentos de imigrantes e estabelecimento de atividades comerciais.

Por sua vez, Pedro Antonio Barquete era sírio e emigrou para o Brasil por volta do ano de 1886, quando contava com 16 anos de idade. A iminência do alistamento militar, assim como as dificuldades existentes na região foram decisivas para o abandono da terra natal e a esperança de se alcançar melhores condições de vida. Dirigiu-se para São Paulo, onde viveu durante um curto período, encontrando alguns co-nacionais e tendo aprendido a “arte de mascatear, de vender de porta em porta, enfim, a profissão de mascate”[25]. Posteriormente, Pedro migrou à Argentina, juntamente com uma irmã, onde se estabeleceu também por pouco tempo, retornando em seguida ao Brasil e se instalando no Rio Grande do Sul, na década de 1920, no interior de Soledade, na localidade do Resvalador, onde deu início à diversificação de suas atividades, montando um moinho para a moagem de milho e posterior comercialização do produto. Entretanto, segundo a fala da interlocutora, “quem atendia esse moinho era minha avó e minhas tias”[26], enquanto Pedro, em paralelo, mantinha-se como mascate, revendendo mercadorias adquiridas em São Paulo, conferindo à família ambas as atividades.

Sendo assim, a atuação em ambos os ramos do comércio permitiu à família de Pedro condições para adquirir propriedades na cidade de Passo Fundo, nas proximidades da ponte do Rio Passo Fundo. Adquirindo imóveis em ambos os lados da Avenida Cap. Jovino, nas esquinas com a Rua Tiradentes, na zona central do comércio dos sírios e libaneses, estabeleceu várias relações com seus compatriotas, como Isa e Moysés Dipp, Jorge Dadia e Simão Imera, este último do ramo de venda de armarinhos e tecidos. No referido local, a família estabeleceu um comércio de secos e molhados, “um ‘bodegão’, que tinha de tudo e vendia tudo”[27], onde manteria atividade até o início da década de 1950.

Salienta-se que as atividades econômicas desenvolvidas por sírios e libaneses ocuparam espaços para além da venda de produtos em casas comerciais ou nas ruas e estradas de Passo Fundo. Alguns desses imigrantes, investidos talvez de maior capital acumulado decorrente de uma trajetória migratória mais longa, instalaram-se na cidade e operaram negócios diversos aos relacionados às atividades de mascate, como José Zacharias dos Santos, Zacharias Antonio dos Santos e Nabuco Zirbes, comerciantes constantemente referenciados nos jornais A Voz da Serra e O Nacional, em razão do retorno ou da saída a viagens comerciais pela região. Nos relatos de alguns dos entrevistados para esse estudo, embora não soubessem precisar com muita exatidão, os sujeitos supracitados foram referidos e lembrados como imigrantes mais abastados, com condições financeiras diferenciadas em comparação à grande parte de seus patrícios e contemporâneos nos primeiros tempos da instalação da maioria dos sírios e libaneses em Passo Fundo.

José Zacharias dos Santos, imigrante sírio, atuou em Passo Fundo como representante comercial e sócio de uma empresa colonizadora, pelo menos durante as décadas de 1910 e 1920. Enquanto comerciante “de praça”, isto é, em loja estabelecida na região central de Passo Fundo, foi proprietário da “Barraca de Couros de J. Zacharias & Cia”, firma de exportação de produtos que atendia as regiões de Passo Fundo, Soledade e Cruz Alta, comprando desde artigos de pequena quantidade “couros, cabellos, cera, lã, e demais fructos de barraca”, bem como artigos em grande escala, como milho, feijão, banha, erva-mate, fumo em corda e “demais artigos coloniaes”[28]. Nesse ínterim, também selou parceria – encerrada em 1913[29] – com os comerciantes Armando Araujo Annes e Gabriel Bastos em uma empresa de fabricação de tábuas e caixas, modalidade comercial que se assentava no período na região, em função da grande disponibilidade da madeira na região norte do estado (Tedesco; Sander, 2005).

Nesse período, o comércio de terras se constituía também em um negócio de alta rentabilidade na região norte do Rio Grande do Sul, tendo havido muitos investimentos em colonização privada durante as primeiras décadas do século XX. Dos escritórios de empresas de colonização sediados em Passo Fundo, o da empresa Petri, Meyer, Annes & Cia. Ltda. contava com o consórcio de vários investidores[30], entre eles a firma José Zacharias dos Santos & Cia., representada comercialmente em filiais em Passo Fundo e Santa Maria, no Rio Grande do Sul, bem como em Ponta Grossa, Rio Negro e Antonina, municípios do estado do Paraná, e ainda nas capitais estrangeiras de Buenos Aires e Montevideo. A empresa colonizadora operava a venda de lotes de terra na chamada Colônia Dr. Affonso, localizada em solo argentino. As relações comerciais de José Zacharias revelam a inserção do imigrante em empreendimentos variados e em associações com outros comerciantes de Passo Fundo e região, em redes de negócios que supõem um significativo investimento de capital acumulado.

Já Zacharias Antonio dos Santos é outro imigrante que, em sua prática comercial, destoou do mascateamento enquanto modo de conquistar um espaço no comércio passo-fundense. Natural do Líbano, emigrado para o Brasil em fins do século XIX, Zacharias Antonio atuou por cerca de duas décadas, no município de Soledade, no ramo da extração de pedras de diversos tipos. Transferido para Passo Fundo ainda na década de 1910, montou um escritório no centro da cidade para tratar de negociações referentes à venda de “pedras de moinho”, isto é, pedras utilizadas nas rodas de moagem de grãos para beneficiamento de produtos coloniais, aquelas ainda extraídas em Soledade. O desenvolvimento desse tipo comercial específico e de pouca concorrência rendeu ao imigrante libanês a empreitada do calçamento das principais ruas da cidade, em contrato firmado com a administração da Intendência Municipal nas gestões de Nicolau Araujo Vergueiro (1920-1924) e Armando Araujo Annes (1924-1928)[31], como também lhe garantiu a negociação dos terrenos de sua propriedade que foram destinados pela Intendência à construção do Matadouro Municipal de Passo Fundo, inaugurado em 1926.

Avenida Sete de Setembro Foto: 1940 Desconhecido[32]

A atuação comercial de Zacharias Antonio, contudo, não se limitou à extração e ao comércio de pedras, já que ele também era um dos sócios de José Zacharias & Cia[33]. Por volta de 1927, em sociedade com outro árabe, Nabuco Zirbes, montou uma ervateira com capacidade média diária de produção de 50 arrobas de erva-mate, que era mantida por empregados do industrialista. No moinho de erva-mate, eram produzidos e comercializados variados tipos de erva-mate, como a erva-mate Glória e o chá-mate Serrano. A firma da sociedade possuía filiação com o Centro dos Industriais e Exportadores Rio-Grandenses do Mate Ltda., o que indica uma abrangência dos produtos comercializados para além da sociedade regional, dinamismo certamente aproveitado pela localização da empresa, junto aos trilhos da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), na Avenida Sete de Setembro, facilitando o escoamento da produção para outras regiões do país.

A inserção de José Zacharias e de Zacharias Antonio na sociedade passo-fundense e dentre seus patrícios, entretanto, é mais ampla que apenas a comercial, tendo em vista terem sido eles filiados ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) – José Zacharias foi presidente do Club Pinheiro Machado[34] – e, logo, ligados à política local/regional e estadual nas décadas de 1920 e 1930. Para além da dimensão dos negócios em Passo Fundo, ambos também foram alguns dos responsáveis pela criação da Sociedade Syrio-Libaneza de Passo Fundo[35], em 1929, associação de caráter étnico que funcionava na residência de José Zacharias, na esquina entre as ruas Fagundes dos Reis e Julio de Castilhos, atrás do Colégio Elementar, da qual Zacharias Antonio também foi presidente, no início da década de 1930[36]. Contudo, não deter-se-á, nesse momento, nessas e outras questões, ou seja, pontos que envolvem os entrelaçamentos familiares e étnicos de sírios e libaneses, bem como sua sociabilidade no contexto urbano passo-fundense, tendo em vista o recorte eminentemente “comercial” e a necessidade de exploração de outros enfoques e perspectivas que não cabem nesse ínterim.


Considerações finais


Percebe-se de diversas formas como o comércio sírio e libanês em Passo Fundo instituiu-se de maneira dinâmica e multifacetada. As relações econômicas tecidas por esses imigrantes árabes compuseram muito da sinergia comercial que integrou os centros comerciais de Passo Fundo e região. O ofício desenvolvido pelos mascates, no comércio ambulante, foi expressão característica e constante na vida de muitos deles, uma condição laboral que permeou suas atividades comerciais iniciais e posteriores, sendo desenvolvida em algum momento de suas trajetórias de deslocamento e fixação comercial. A própria atividade de mascate era compreendida enquanto necessária, um estágio passageiro de sacrifícios e empenhos que conduziriam ao melhoramento das condições de vida do comerciante e de seus familiares.

Em Passo Fundo, a atividade dos mascates foi intensa, marcando o comércio local-regional durante a primeira metade do século XX. O comércio estabelecido em casas comerciais por famílias de imigrantes, como os Dipp, Buaes, Kalil, Dadia, Barquete, Estacia, dos Santos, configuraram um “espaço”, dentro das atividades econômicas desenvolvidas na cidade e no município, muito reconhecido e atrelado ao componente étnico presente, revelador de múltiplos aspectos da inserção social, política e econômica desses imigrantes em Passo Fundo.

Referências

  1. Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Membro efetivo do Instituto Histórico de Passo Fundo.
  2. Graduanda do Curso de Licenciatura em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF).
  3. Entrevistas realizadas com imigrante e descendentes de imigrantes sírios e libaneses, realizadas pelos pesquisadores Alex Antônio Vanin e João Carlos Tedesco, em 2016.
  4. Em outro momento já se havia produzido um texto introdutório à questão em Passo Fundo, em um estágio anterior da pesquisa, que segue em andamento. Ver mais em: TEDESCO, João Carlos; VANIN, Alex Antônio. Sírios e libaneses em Passo Fundo – final do século XIX e primeiras décadas do século XX. In: TEDESCO, João Carlos; BATISTELLA, Alessandro; NEUMANN, Rosane Marcia (Org.). A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio. Erechim: AllPrint Varella, 2017, p. 257-310.
  5. APERS. Juízo Distrital de Passo Fundo. Resignação de Felippe Meleme Ab’abud, 1906, fl. 08.
  6. Saco ou da mala rústica de couro cru, usada para transportar objetos diversos, alimentos e mercadorias sobre animais, em geral muares, presa na traseira das selas do viajante. As bruacas fizeram parte do cotidiano dos mascates e de outros comerciantes no Brasil.
  7. A FEDERAÇÃO. Porto Alegre, n. 297, 24 dez. 1909, p. 1. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  8. APERS. Juízo Distrital de Passo Fundo. Resignação de Felippe Meleme Ab’abud. 1906, fl. 05.
  9. A FEDERAÇÃO. Porto Alegre, n. 69, 22 mar. 1906, p. 3. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  10. APERS. Juízo Distrital do Cível e Crime. Ação ordinária movida por Antonio Nassur e Cia. contra Moysés Dipp. 1916, fl. 07.
  11. Idem, fls. 07-11.
  12. SALTON, Lúcia Dipp. Entrevista concedida a João Carlos Tedesco. 2016.
  13. Idem.
  14. Ibidem.
  15. Trecho da Avenida Brasil entre as ruas Fagundes do Reis e Cap. Eleutério, possivelmente entre as décadas de 1910 e 1920; na indicação, a localização da Casa Dipp, ainda existente nos dias de hoje. Nesse trecho e ao longo da Avenida Cap. Jovino, bem como no entorno da Praça da República, muitos sírios e libaneses estabeleceriam suas casas comerciais naquelas décadas e nas posteriores. Acervo Digital do IHPF.
  16. Atual Praça Ernesto Tocchetto.
  17. A VOZ DA SERRA. Passo Fundo, n. 171, 07 jun. 1919, p. 03. Acervo digital do Arquivo Histórico Regional.
  18. ESTACIA, Joseph Boulos. Entrevista concedida a João Carlos Tedesco e Alex Antônio Vanin. 2016.
  19. KALIL, Ramadan. Entrevista concedida a João Carlos Tedesco. 2016.
  20. O NACIONAL. Passo Fundo, n. 107, 26 jun. 1926, p. 1-2. Arquivo Histórico Regional.
  21. 73 – Mascate com residencia fixa no municipio, que venda de conta propria ou alheia: a) de fazendas e armarinho – 150$000; b) de fazendas – 120$000; c) de armarinho ou miudezas – 60$000; d) de cristaes, oculos, etc. – 80$000; e) de obras de barro, gesso, louça, ferro e folha – 40$000. Fonte: O NACIONAL. Orçamento da receita para o anno de 1927. Passo Fundo, nº 166, 22 jan. 1927, p. 04. AHR.
  22. A investigação do crime foi narrada em tom jornalístico por Argeu Rigo Santarém, em seu livro de crônicas República dos Coqueiros, no qual o comissário da região resolve o caso do assassinato do mascate devido à suas habilidades “sherlockianas”. Ver mais em: SANTARÉM, Argeu Rigo. República dos Coqueiros: histórias e estórias do Passo Fundo. Não-me-Toque: Gráfica Editora Santo Antônio, 1984.
  23. ESTACIA, Linda Dipp. Entrevista concedida a João Carlos Tedesco e Alex Antônio Vanin. 2016.
  24. MAYER, Carlos Alberto. Entrevista concedida a João Carlos Tedesco, Alex Antônio Vanin e Bruna Telassim Baggio. 2016.
  25. BENVEGNÚ, Sandra Mara. Entrevista concedida a Alex Antônio Vanin. 2016.
  26. Idem.
  27. Ibidem.
  28. A VOZ DA SERRA. Passo Fundo, n. 15, 08 abr. 1916, p. 6. Acervo digital do AHR.
  29. A FEDERAÇÃO. Porto Alegre, n. 87, 17 out. 1913, p. 6. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  30. STAFETTA RIO-GRANDENSE. Garibaldi/RS, n. 29, 28 out. 1920, p. 3. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  31. VIDA CARIOCA. Rio de Janeiro, n. 90, jan. 1932, p. 41. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  32. Ervateira pertencente à Zacharias Antonio dos Santos e Nabuco Zirbes, na Avenida Sete de Setembro, junto aos trilhos. Fonte: Album Comemorativo do Cincoentenário da Proclamação da República – 1889-1939. Porto Alegre, p. 301. Biblioteca da PUC-RS.
  33. A VOZ DA SERRA. Passo Fundo, n. 11, 11 mar. 1916, p. 03. Acervo digital do AHR.
  34. SANTOS, José Zacharias dos. Carta enviada a Protasio Antonio Alves. Passo Fundo, 10 fev. 1919. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Fundo Borges de Medeiros.
  35. Nesse horizonte das redes, agregações, vínculos e pertencimentos de grupos, em 1929, constituiu-se a Sociedade Beneficente Syrio-Libaneza de Passo Fundo. A entidade objetivava agregar o referido grupo de imigrantes e descendentes. Não muito diferente de outras associações étnicas, integrava os grupos, permitia momentos de lazer, de troca de informações e expressões culturais, bem como demarcava o território étnico na cidade de Passo Fundo (Tedesco, Vanin; 2017, p. 274-277).
  36. O NACIONAL. Passo Fundo, n. 943, 11 jun. 1931, p. 01. AHR.