Entre canaviais e alambiques: Vestígios da escravidão em A Vila da Serra

From ProjetoPF
Jump to navigation Jump to search

Entre canaviais e alambiques: Vestígios da escravidão em A Vila da Serra

Em 28/06/2014, por Jerri Almeida


Entre canaviais e alambiques: Vestígios da escravidão em A Vila da Serra

Por Jerri Almeida. Professor e historiador. Especialista em diálogos entre história e literatura do Rio Grande do Sul

Diante do infame martírio a que, continuamente, era submetido pelo senhor, um escravo desesperado decide por fim ao seu sofrimento. Foge! O mato é grande. Ele o enfrenta em busca de liberdade. Exausto, com os pés e a alma dilacerados, senta-se e, em pensamento, revive os painéis tortuosos do cativeiro. Continuar fugindo é, além do risco de ser recapturado, outro martírio. Voltar é enfrentar 600 açoites. O que fazer? Seu olhar instintivamente se volta para os galhos de uma figueira próxima, imponente. Levanta-se, transformando seus andrajos numa corda. Amarra uma ponta em um galho, a outra, em seu pescoço. Sua negra história chegará ao final!

Essa narrativa, com outras palavras e com mais riqueza de detalhes, é referida por Antônio Stenzel Filho, em seu livro A Vila da Serra (Conceição do Arroio), no capítulo sobre as lendas nutridas pela tradição na então freguesia. A morte desse escravo, seja verdade ou não, virou lenda em que ele, “(...) trepado pelas árvores, aparece naquelas paragens, cantando melancólicas canções...”.

A escravidão, no entanto, não foi uma lenda. Stenzel sabia bem disso. Propondo-se a apresentar a história de Conceição do Arroio de 1858 a 1872, refere-se em diversos momentos de sua obra, na questão escravista, porém, sem tocá-la mais profundamente. Apresentando os primeiros vereadores eleitos para a Câmara Municipal, descreve o Capitão José Luis da Silva Marques, como um homem que “possuía grande quantidade de escravos, que empregava na agricultura, especialmente no fabrico de aguardente”.

Referindo-se ao “tempo de moer cana”, Stenzel informa que: “Uns cinco ou seis anos antes da extinção da escravatura, o nosso município fabricava e exportava 3000 pipas de aguardente por ano, afora o açúcar que fazia para o consumo e a grande quantidade de rapaduras que também vendia para a região serrana.” Também Fernandes Bastos, outro conhecido escritor local, em suas notas e apontamentos sobre a cultura da cana de açúcar, afirmou que desde a costa da Lagoa Formosa (atual Lagoa dos Barros), até a de Itapeva, numa extensão de mais de vinte léguas, alinhavam-se “as pequenas herdades dos casais e os velhos sítios onde os senhores do campo mantinham sua escravatura nos trabalhos da lavoura sob a direção de algum dos sinhôs moços ou de feitores e capatazes”.

O imaginário identitário açoriano da região, mesmo com essas informações trazidas por Stenzel em 1924, erigiu uma espécie de invisibilidade para o seu passado escravista. No entanto, fontes documentais abundam nos Arquivos para devolver a visibilidade e o papel dos afro-rio-grandenses na história do município de Osório. Examinamos, para escrever esse artigo, 119 Inventários, 10 Processos Crimes, 30 Cartas de Liberdade, 29 registro de batismo e 67 documentos de compra e venda de escravos, compreendendo o período de 1858 a 1872, relativos à freguesia de Conceição do Arroio. Foi possível, numa análise preliminar, perceber a importância do trabalhador escravizado para a economia local. Além disso, tais documentos oferecem interessantes informações sobre as ocupações dos escravos, procedência, e o poder local de certas famílias a partir do número de escravos que compunham seu patrimônio.

O capitão José Luís da Silva Marques, por exemplo, aparece em dois inventários, o primeiro de 1860 consta 26 escravos, sendo 13 masculinos e 13 femininos. O segundo de 1886, consta 03 escravos, 02 masculinos e 01 femininos. Em 19 de março de 1862, vendo para Amador Marques de Oliveira, o escravo Pedro, 24 anos. Crioulo no valor de 1000$. Em 17 de dezembro de 1865, um de seus escravos: Tomas, pardo/mulato, é acusado de arrombar o estabelecimento comercial de João Antônio Tavares, furando diversos bens. Fatos comuns para o contexto escravocrata do século XIX.

Firmiano José Luiz Osório, vereador e tio do General Osório, era, juntamente com sua irmã Isabel Maria Osório e seu genro José Marques da Rosa, um dos grandes proprietários da freguesia. Em seu inventário, de 1875, constam 29 escravos, 17 masculinos e 12 femininos. Dois inventários que examinamos, no entanto, nenhum se aproxima, em termos de importância patrimonial de escravos, ao de José Marques da Rosa. Em seu inventário constam 63 trabalhadores escravizados, sendo 38 masculinos e 25 femininos. Isso representava um extraordinário patrimônio para a época. Vale lembrarmos, para efeito comparativo, que Bento Gonçalves, além de comandante geral da Guarda Nacional da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, era grande estancieiro e um dos mais importantes líderes políticos da Guerra de 1835. Quando morreu em 1847, deixou em seu inventário, 53 escravos aos seus descendentes, dez a menos que José Marques da Rosa. Isabel Maria Osório, esposa de José Marques da Rosa e mãe, dentre outros de Rosa Osório Marques, em seu inventário de 1867, deixa 32 escravos, 20 masculinos e 12 femininos. Os dois inventários, o dela e o do marido, representam um patrimônio de 95 escravos. No inventário de Manoel Marques da Rosa (Pai), irmão de José Marques da Rosa, consta um patrimônio de 40 escravos, 24 masculinos e 16 femininos. Sem dúvida, uma família poderosíssima para os padrões da época.

Em 1859, Conceição do Arroio possuía uma população livre estimada em 6457. Enquanto a população cativa representava 2065 (23,91%) e a liberta 114 (1,32%). A taxa de masculinidade entre a população escrava era de 153,99, comparativamente superior a da população livre, que representava 103,62. Stenzel anota que: “eram muitos os engenhos de cana que, do meio do inverno até a entrada do verão, principiavam a se mexer.” A questão da alta taxa de masculinidade dos escravos justifica-se pelo trabalho nos canaviais, alambiques e atafonas, característicos da região.

Em função do significativo contingente de escravos da freguesia, os conflitos faziam parte do cotidiano, registrados por vezes nos processos crimes. Um escravo de Manoel Marques da Rosa, chamado Inácio, solteiro, entre 80 a 60 anos, de procedência do Congo, profissão roceiro, foi acusado de, no dia 16 de janeiro de 1866, assassinar a escrava, do mesmo senhor, Evarista, parta/mulata, menor. A vítima foi assassinada por sufocamento e lançada na lagoa. Qual teria sido o motivo para o crime? O réu afirmou que assim procedeu por sua “má cabeça” ou por uma “loucura que lhe sobreveio”. O escravo foi condenado a 14 anos de prisão. A pena, no entanto, foi comutada em 400 açoites e ao uso de um ferro no pescoço por 4 anos, com direito a exame médico a cada 200 açoites.

Não raras vezes, os senhores usavam seus escravos para praticar certos delitos contra seus desafetos. Num fato particularmente interessante, o senhor e seu escravo são réus num processo crime. Onofre Pereira da Silva e o escravo Manoel do Nascimento, solteiro, preto, roceiro, são acusados de, no dia 23 de julho de 1871, incendiar a casa de Dona Ana Joaquina Silveira. Segundo o réu, a vítima era autora de feitiçarias que causavam enfermidades a sua família. Onofre mandou o escravo Manoel cometer o crime em troca da promessa de liberdade. Descobertos e julgados, Onofre foi condenado a 2 meses de prisão com trabalho e multa de 5% do valor da casa destruída. Já Manoel foi condenado em 100 açoites e ao uso de um ferro no pescoço durante 6 meses.

A história da freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Arroio, inserida no contexto escravocrata sul-rio-grandense e brasileiro, guarda, em suas entranhas, as negras marcas dos delitos e dos açoites! Mas, e as cartas de alforrias? Não seriam os senhores piedosos ao concedê-las a muitos casos, não eram “concedidas”, mas sim “vendidas” pelo senhor. Em 28 de janeiro de 1862, Francisco da Silva Rosa “concedeu” a carta para sua escrava Catarina; de Nação, 50 anos, mediante o pagamento de 200$. Mas em grande parte das cartas, constava alguma condição para que os escravos as recebessem. Normalmente, lê-se: “A carta foi concedida com a condição do escravo servir até a morte da senhora”. Algumas cartas, consta a seguinte observação: “...se por ventura alguns nos desobedecerem ou prevaricarem de suas condutas antes deste prazo perderão os direitos acima indicados. ” O estudo realizado por vários historiadores sobre as cartas de liberdade por prestação de serviço, desmascara o engodo, em muitos casos, dessas intenções, pois os escravos eram obrigados a continuar prestando serviços por um determinado tempo aos seus senhores.

A obra de Stenzel, publicada trinta e seis anos após a abolição da escravidão no Brasil, não se compromete numa abordagem audaciosa sobre o escravismo; todavia, apresenta-lhe os vestígios.

Desvelar as relações escravistas nem sempre é simples, pois implica repensarmos o nosso passado, mexer no oculto, na memória idealizada, construída sob os signos das relações de poder. O trabalhador escravizado continua invisível na produção histórica local. Não é necessário grande esforço para se perceber que o escravismo é um tema indigesto para muitos pesquisadores. Entretanto, como bem lembrou o historiador britânico Eric Hobsbawm: “A função do historiador é lembrar coisas que muita gente faz questão de esquecer”.