E assim surgiu a UPF
E assim surgiu a UPF
Em 30/04/2004, por Gilberto Rocca da Cunha e Paulo Domingos da Silva Monteiro
E assim surgiu a UPF[1]
Entrevista Murilo Coutinho Annes - E assim surgiu a UPF
"Se a vida te põe responsabilidade, e apresentas desculpas, a responsabilidade te volta dobrada."
Murilo Coutinho Armes, nascido em Passo Fundo, em pleno inverno de 1925, é descendente de uma das mais tradicionais famílias da cidade, neto do coronel Gervásio Lucas Annes e filho de Herculano Araújo Annes, advogado e jornalista, fundador do jornal O Nacional.
Desportista (dizem que era um excelente jogador de futebol, em sua juventude), advogado militante, professor, interventor (durante o regime militar) e reitor da Universidade de Passo Fundo, da qual foi um dos fundadores, Murilo Coutinho Annes, na manhã do dia 8 de fevereiro de 2004, conversou com membros da Academia Passo-Fundense de Letras, sobre a historia da universidade e sobre sua atuação profissional.
Durante duas horas, os acadêmicos Paulo Monteiro, Santo Verzeleti, Veríssimo da Fonseca, Santina Rodrigues Dal Paz, Jurema Carpes do Valle, Helena Rotta de Camargo, Craci Teresinha Dinarte, Ana Carolina Martins da Silva e Gilberto Cunha questionaram o veterano educador.
Murilo Coutinho Annes falou com liberdade e foi solicitado a opinar sobre os mais diferentes assuntos. Com a franqueza que lhe é peculiar, contou detalhes dos primórdios da UPF e do processo de intervenção, durante a ditadura militar, em que acabou desempenhando um papel importante.
APL - O Senhor nasceu aqui mesmo, em Passo Fundo?
Murilo Annes - Nasci em Passo Fundo, no dia 12 de julho de 1925, filho do advogado Herculano Araújo Annes e de Cecy Coutinho Annes. Fiz o primário e o ginásio no Instituto Educacional (lE) e o colégio (que seria equivalente ao ensino médio de hoje - nota da APL), no Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Cursei Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concluindo em 1949.
APL - E o ensino em Passo Fundo, na sua época, era bom?
Murilo Annes - Era muito bom. Tanto era bom que não tive dificuldade para prosseguir meus estudos em Porto Alegre. No estado, naquela época, eram oferecidas apenas 120 vagas no direito, metade em Porto Alegre, metade em Pelotas. E, no ano em que prestei exames para ingressar na faculdade, só foram aprovados 36 alunos para ingresso no curso. Entre eles estavam Flávio Alcaraz Gomes e Athos Gusmão Carneiro, que foram meus colegas de aula. Depois de formado, vim para Passo Fundo, onde meu pai tinha escritório de advocacia, junto com o Dr. Frederico Daudt.
APL - Quando o Senhor começou a advogar era mais fácil ou mais difícil do que hoje?
Murilo Annes - Era bem mais fácil ser advogado, pois os advogados eram contados nos dedos das mãos. Em Passo Fundo éramos muito poucos, mais uns três ou quatro rábulas (pessoas que advogavam sem terem cursado Faculdade de Direito, o que era possível antes da regulamentação da profissão de advogado - nota da APL). Há pouco tempo fiz um levantamento e concluí que, num raio de 150 quilômetros ao redor de Passo Fundo, são formados mil advogados todos os anos.
APL - Seu pai foi o fundador do jornalO Nacional. ..
Murilo Annes - De fato, meu pai fundou O Nacional, dirigiu e redigiu o jornal até a instauração do Estado Novo. Como essa ditadura exigiu que os jornais somente publicassem as matérias enviadas pela agência oficial do governo, ele vendeu o jornal para outras pessoas. Eram elas: Aladi Berlese de Lima, Elpídio Barbosa, Antonino Xavier e Oliveira, Carlos de Danilo Quadros e Múcio de Castro. Múcio foi comprando a parte dos outros e acabou único dono do jornal.
APL -O senhor se dedicou a urn ramo específico do direito ou a diversos?
Murilo Annes - Atuávamos no civil e no comercial. Não atuávamos no crime. E administrávamos a Fazenda Sarandi, que pertencia a uruguaios. Eram três famílias. De duas delas, os Maillo e os Caviglias, me lembro bem. Foi ali que, mais tarde, aconteceu a primeira invasão de sem-terras. Essa fazenda foi comprada em 1909 pelos uruguaios, de uns paranaenses, não sendo permitida a entrada de estranhos. Era mata virgem, com 120 mil pinheiros de corte, sendo, depois, plantadas 360 mil mudas de araucária. Os rendimentos vinham do arrendamento para a criação de gado.
APL - Já que o senhor trabalhou na administração da Fazenda Sarandi, é verdade que, em certa época, naquela região, foi feita uma limpeza de posseiros e que os jagunços recebiam por orelha de posseiro morto?
Murilo Annes - Isso é tudo lenda. Naquela região não havia posseiros. Como já disse, as terras eram arrendadas para criadores de gado.
APL - É verdade que, durante a 1ª Guerra Mundial, muita gente enriqueceu, em Passo Fundo, fazendo contrabando de pneus?
Murilo Annes - O contrabando de pneus era um fato. E enriqueceu muita gente. Mas isso era crime, e nós só atuávamos no Direito Comercial.
APL - Como é que começou a Universidade de Passo Fundo?
Murilo Annes - A Universidade de Passo Fundo começou numa reunião de advogados, para a criação da Faculdade de Direito, sob a liderança do Dr. João Junqueira Rocha, em janeiro de 1950. Na segunda reunião, já compareceu praticamente a elite de Passo Fundo e, em vez da Faculdade de Direito, foi criada a Sociedade Pró-Universidade de Passo Fundo (SPU). Sob indicação do Dr. Celso da Cunha Fiori, foi eleito presidente da Sociedade o Dr. César Santos, que era deputado federal, e tinha trânsito "lá em cima" e, como auditor, uma espécie de gerente, o Dr. Reissoli Santos, que era juiz de direito. A secretaria ficou com o Dr. Mário Braga Júnior, e como tesoureiro o Dr. Osvaldo Langoni. A Faculdade de Direito começou logo depois, irregularmente, sendo reconhecida em 1956. Quando a SPU se formou, era prefeito meu tio, Armando Araújo Annes, que deu uma verba de Cr$ 330.000,00 para comprar a residência da família Barbieux, no centro, onde fica a livraria da UPF. O Dr. César Santos era deputado federal pelo PTB e o Dr. Reissoli concorreu, tendo ficado como suplente. Foram escolhidos 21 conselheiros, dentro do movimento. A SPU era formada por um núcleo muito amplo e representativo, sendo, aos poucos, aparelhada pelo Partido Trabalhista Brasileiro.
Depois de 1964, quando era prefeito Mário Menegaz, unido aos deputados Romeu Martinelli e Augusto Trein, e ao governador Ildo Meneghetti, solicitaram e conseguiram a intervenção do Ministério da Educação na SPU. O ministro da Educação, logo depois da Revolução de Março, a pedido de Ildo Meneghetti, interveio na universidade, e eu fiquei sabendo pelo rádio que tinha sido nomeado interventor. Mais tarde, soube que foi uma indicação do Meneghetti e do Martinelli. Eu era professor de Direito Civil e não tinha vinculação partidária, não tinha ligação com a prefeitura, estava de gaiato. Minha primeira idéia foi dizer não ao Meneghetti. Mas meu pai me deu um conselho, que nunca mais esqueci: "Se a vida te põe responsabilidade, e apresentas desculpas, a responsabilidade te volta dobrada."
Aceitei o conselho. Fui a Porto Alegre falar com o Meneghetti. Ele solicitou uma auditoria e a eleição de uma nova diretoria. Fiquei dez dias como interventor. Como o Conselho era controlado por militantes do PTB, acabei com o Conselho Consultivo e nomeei eleitores todos os professores em exercício. Fui eleito auditor, que seria o vice-reitor administrativo de hoje. Hoje tem vice-reitor aos montes. Aí começou realmente a briga. Só existia a Faculdade de Direito como curso reconhecido. Conseguimos o reconhecimento das faculdades de Agronomia, Economia, Belas Artes e Odontologia.
APL - E a união da SPU e do Consórcio Universitário Católico?
Murilo Annes - O Consórcio Universitário Católico foi criado em 1956, oferecendo cursos na área da Educação, enquanto a SPU era mais na parte técnica. Não havia rivalidade, nem duplicação de funções. Não tínhamos um projeto específico, apenas queríamos uma universidade para Passo Fundo. Universidades só existiam em Porto Alegre e Pelotas. Havia uma disputa entre Santa Maria e Passo Fundo, pela criação de uma universidade federal. Criamos a SPU para consolidar o projeto de uma universidade.
APL - Por que Santa Maria "levou" a universidade federal?
Murilo Annes - Porque alguém conseguiu incluir uma emenda no projeto que criava a Universidade Federal do Mato Grosso ... Na minha opinião, não sei se foi vantagem para Santa Maria ter ficado com a universidade federal. No tempo do ministro Tarso Dutra, fizemos campanha para federalizar a UPF, e o Conselho Federal de Educação disse que o Rio Grande do Sul já tinha Universidade Federal demais.
APL - Por que o senhor entende que Passo Fundo ganhou em não ter uma universidade federal?
Murilo Annes - Porque a administração privada é sempre superior à administração pública. Hoje as universidades federais estão grandemente deficientes, enquanto as universidades particulares conseguem manter-se.
APL - Voltemos ao caso SPU X Consórcio Universitário Católico ...
Murilo Annes - Na realidade, a aproximação entre a SPU e o Consórcio Católico começou a se consolidar quando o padre Alcides Guareschi foi colocado na direção. Aí, tem um nome extraordinário no ensino de Passo Fundo, pois conseguiu unir o Consórcio e a SPU, abrindo o Hospital São Vicente de Paulo para a Faculdade de Medicina. Esse nome é Dom Cláudio Colling. Depois podemos lembrar o nome de Mário Menegaz, que virou a SPU de pernas para cima, dirigindo a intervenção, junto com Romeu Martinelli e Augusto Trein.
Quando assumimos a intervenção, esperávamos uma reação muito grande. Ninguém mexeu com professores e funcionários ligados ao grupo anterior, nem mesmo com os antigos presidiários que construíram o prédio da Odonto (na Av. Brasil, centro), sem base suficiente.
APL - Que história é essa de "presidiários" trabalhando na construção da universidade?
Murilo Annes - Aconteceu o seguinte: o Dr, Reissoli, como juiz de direito, "liberou" presidiários para trabalharem na construção de um prédio para a universidade, os quais depois acabaram sendo empregados em serviços de manutenção da SPU.
APL - Mais alguma pessoa que o Senhor considere importante para a consolidação da UPF?
Murilo Annes - O Dr. Sabino Arias, médico residente no Rio de Janeiro. Ele acompanhava, diariamente, nossos processos junto ao Conselho Federal de Educação, especialmente o reconhecimento da Faculdade de Medicina, que foi muito fácil, pois já estava dentro de um hospital. O hospital municipal chegou a ser doado para a Universidade, mas foi retomado por questões políticas. A então direção do Hospital de Caridade (hoje Hospital da Cidade), não quis aceitar nossos alunos. O São Vicente acabou ganhando essa mão-de-obra extraordinária.
A Faculdade de Medicina é um resultado do empenho de Dom Cláudio Coling, ao permitir sua instalação dentro do Hospital São Vicente. Ele não pedia, mandava. E "forçou" a união entre os dois grupos.
APL - E os recursos para a instalação da Faculdade de Medicina?
Murilo Annes - Em 1965, Tarso Dutra promoveu uma reunião com reitores de 13 universidades, para uma viagem à Alemanha Oriental e à Hungria, solicitando que as faculdades de Belas Artes, Medicina e Engenharia Eletrônica fizessem relação de bens que precisassem. Passamos 35 dias naqueles países. E nossos pedidos foram atendidos. O equipamento veio da Alemanha Oriental e foi instalado no Hospital São Vicente. Era o que tinha de mais moderno naquele tempo, como é o caso dos equipamentos de radiologia e de hemodiálise. Isso fez com que o São Vicente explodisse ...
APL - Qual a verdadeira importância do Dr, César Santos para a universidade?
Murilo Annes - O Dr. César Santos era uma espécie de patrono da UPE Quem realmente trabalhava era o Dr. Reissoly, que montou um esquema de cidade universitária. A SPU ganhou 40 hectares do Dr. Antônio Bitencourt Azambuja, onde hoje é o campus, e comprou outros 120 hectares, com 120 mil brizoletas (espécie de títulos do Tesouro do Estado), quando Leonel Brizola era governador. Foi montada uma espécie de complexo agroindustrial, com marcenaria, olaria, pedreira e granja de soja e trigo, onde seria a cidade universitária. Quando assumi, vendi todos esses equipamentos, destinando a área para a educação.
Com o padre Alcides, visitei várias cidades dos Estados Unidos e trouxemos a idéia de um complexo com prédios simples. O Dr. Paulo Fragomeni iniciou a arborização. Começamos instalando o curso de Agronomia, no barracão da marcenaria, que acabou ruindo com a nevasca de agosto de 1965. Construímos o prédio atual, com dinheiro fornecido pelo Ministério da Educação. Começamos a vender cheques-matrícula, com as pessoas pagando antecipadamente as mensalidades de cursos que desejassem cursar mais tarde, e conseguimos recursos para construir os prédios do Direito, da Economia, das Belas-Artes e o Restaurante Universitário.
APL - O Senhor exercia alguma atividade literária?
Murilo Annes - Não. Minha preocupação sempre foi com o direito e com a parte técnica.
APL - E a pavimentação do acesso ao campus?
Murilo Annes - O calçamento ia até a ponte do rio Passo Fundo. Nos dias de chuva era preciso pôr correntes nos pneus dos carros.
Quando o presidente Médici veio inaugurar o asfalto da BR-285, numa sessão solene no Cine Teatro Pampa, com medo de que chovesse, o Batalhão Ferroviário, que estava em Lagoa Vermelha, asfaltou da ponte até o trevo do Bairro São José, em apenas 7 dias, com uma equipe comandada pelo sargento Garcia. Nunca me esqueci desse nome. Empedrei as ruas do campus e, depois, quando o Dr. Bruno Markus assumiu a reitoria, conseguiu com o presidente Geisel o asfaltamento e a construção de quadras esportivas.
APL - O curso de Belas Artes, como surgiu?
Murilo Annes - O curso de Belas Artes surgiu onde hoje está o Supermercado Zaffari, na esquina das avenidas 7 de Setembro e Brasil. Era mantido pela prefeitura e, mais tarde, passou para a Universidade de Passo Fundo. De início, foi para o prédio onde hoje está o Creati.
APL - E a proliferação de cursos e universidades? A própria Ordem dos Advogados do Brasil está preocupada com a qualidade dos profissionais que estão sendo formados ..
Murilo Annes - No meu tempo de moço existiam poucos cursos. Hoje tem profissão para tudo. Para quê? Para ganhar dinheiro. Só falta formarem apartador de briga de urubu em matadouro municipal... Essa proliferação de cursos é muito ruim. A pós-graduação é corriqueira. Tem mestres que não sabem entrar numa sala de aula, que não sabem dar uma aula. O Dr. Celso da Cunha Fiori costumava repetir para seus alunos:
"Vou ensinar vocês a advogarem".E isso é que é importante. Quem não conhece uma profissão, não vai saber ensiná-la.
APL- Voltando à questão da superioridade das universidades privadas sobre as públicas, lembremos o caso da UPF, que já nasceu ganhando um prédio da prefeitura, 120 hectares de terras compradas com dinheiro do estado, equipamento para a Faculdade de Medicina, calçamento, prédio, quadras de esportes, com dinheiro da União, e continua recebendo verbas públicas, para a instalação do Pólo Tecnológico de Alimentos e realização de eventos ... o Senhor não acha que, se o governo investisse nas universidades federais os recursos que destina para as universidades particulares, a história seria diferente?
Murilo Annes - Não sei responder. ..
APL - Como o Senhor vê a chamada reserva de vagas?
Murilo Annes - Na minha opinião, acho ridícula a reserva de vagas.
APL - A proliferação de cursos, além de vulgarizar as profissões, não está aumentando a concorrência entre os profissionais?
Murilo Annes - É claro. Uma ação, em que um profissional capaz cobra R$ 1.000,00 para dar entrada dos papéis no Fórum, vem um outro e cobra R$ 10,00. Depois acaba custando R$ 2.000,00 para corrigir o que foi mal encaminhado.
APL - DefInitivamente, o senhor não advoga e nem leciona mais?
Murilo Annes - Parei de advogar há dois anos. Deixei a UPF em 1986 e não voltei mais lá. Nós, os velhos professores da universidade, lecionamos dois anos inteiros de graça, e depois recebíamos "120 pilas" por mês. Hoje, um mestre, com pós-graduação, ganha em torno de R$ 4.000,00 por mês, chova ou faça sol.
APL - E a corrupção na Justiça? É coisa recente?
Murilo Annes - Hoje até a Justiça é diferente. Depois do almoço, íamos tomar cafezinho com os juízes. Atualmente, eles se fecham numa sala. A corrupção existe desde que existe o Estado. Antigamente, já existia corrupção. Nos estados da Região Sul, porém, ela é menos visível.
APL - O controle do Judiciário vai funcionar?
Murilo Annes - Na minha opinião, controle do Judiciário é bobagem, pois, dos 11 membros da comissão de controle, 8 serão juízes.
Referências
- ↑ Publicado na revista Água da Fonte nº 1