ELOGIO PÚBLICO A PAULO MONTEIRO

From ProjetoPF
Jump to navigation Jump to search

ELOGIO PÚBLICO A PAULO MONTEIRO

Em 01/08/2012, por Mauro Gaglietti


ELOGIO PÚBLICO A PAULO MONTEIRO

                                                                                           

Por Mauro Gaglietti[1]


Estamos aqui para olhar, ainda mais atentamente, para uma obra e um ser humano ímpar, seu autor. Ele já presidiu a Academia Passo-Fundense de Letras (APL) e, atualmente, é seu Secretário Geral, sendo um conhecedor da história do Rio Grande do Sul e um reconhecido ativista cultural. Fazemos referência a uma obra que foi esculpida nos tempos dos poetas da geração do mimeográfo (nas palavras do autor: “mimeogeneration”) e do período em que livros eram enterrados nos pátios das casas. Trata-se de Paulo Monteiro, digno representante da cultura de Passo Fundo, que entrega na noite de hoje, aos nossos corações e mentes, o seu mais recente livro:

Eu

resisti

também

cantando


com versão impressa e em formato E-Book. Assinalamos, ao mesmo tempo, que esse livro teve sua edição garantida pelo auxílio cultural do PROJETO PASSO FUNDO, que já editou, nos últimos anos, cerca de 63 publicações de renomados autores e autoras pertencentes à cultura local. Soma-se a esse apoio dos amigos Ernesto Zanette e Gilberto Cunha, com seu olhar atento, o envolvimento da APL e da Gráfica Berthier.

Ressalta-se, sobretudo, que estamos diante de um “livro póstumo de um poeta vivo”. Encontramos o autor “inteiro nesses poemas” em que a vida do poeta é ressignificada conforme se avança pelos caminhos que se abrem mediante a interpretação de seus versos. A obra conta com 72 poemas escritos a partir de 1974, agrupados em quatro seções: “introdução ao poema”, “suor e sangue”, “par e ímpar” e “caderno de canções”.

Na contracapa, a veia do poeta salta, expondo em 14 versos o espírito do tempo na contemporaneidade. A delicadeza com que a obra foi editada é percebida, igualmente, na capa de Silvana Oliveira, retratando lírios colhidos em uma sala fechada (bela metáfora para uma capa em tempos de Comissão de Verdade e de mortos sem sepultura), na nota do autor, na dedicatória e, também, num prefácio assinado por Júlio Perez. Notamos, nas orelhas do livro, duas fotos do poeta, a primeira de 1974 e a outra recente: o que ambas têm em comum é o olhar penetrante de um atento observador. Além disso, encontramos a inscrição de algumas percepções de leitores das canções que residem em diversas cidades do Brasil e de Portugal.

Paulo Monteiro carrega em si uma parte preciosa da história de Passo Fundo, em seus aspectos mais enigmáticos, sobretudo, aqueles mais associados às estratégias estéticas libertárias utilizadas por muitos militantes da contracultura entre dois tempos: em 1974, com a resistência à ditadura militar, e nos primeiros anos do século XXI, por intermédio da resistência à sociedade do consumo e à ampliação da corrupção na política.

Paulo, por sua vez, filia-se aos que defendem o direito à fantasia em um país que já proibiu – nos anos de chumbo – a leitura de várias obras infantis. Porque é nesse direito de fantasiar que funda sua versão mais seca, prosaica, que é a liberdade de pensar e de opinar. Se não tivermos esta última, sabemos que quase nada mais nos restará. Pensar por conta própria, expressar as ideias e manifestar os ideais de que somos legítimos portadores, eis uma das chaves da democracia (nas palavras do sábio Renato Jeanine Ribeiro). Mas essa senha de acesso – digamos, “racional” – não se constituirá se não lhe tiver sido aberto lugar por um aprendizado bem menos sujeito à razão e que, na verdade, é a primeira grande aventura da fantasia. Aqui, a aventura consiste em imaginar, gerar fantasmas, idear o que não é. O que Paulo Monteiro tenta nos dizer é tão somente que jamais vicejará a planta do pensamento se, antes, não for semeado o terreno pela fantasia – e isso porque ambos têm, em comum, a capacidade de sair da mesmice, da repetição, daquilo que está aí, para construir, em seu lugar, uma vida humana digna.

Por isso mesmo, ele carrega em sua tinta a expressão de um Brasil que teve como uma de suas passagens mais impressionantes a censura a Peter Pan. Nesse caso, talvez a censura não tenha sido nada burra, ao proibir as aventuras desses meninos da Terra do Nunca. Porque Peter Pan e seus amigos não são inofensivos e bem-comportados como querem muitos. São, mesmo, uma turma rebelde e de forte imaginação – e com isso terão preparado muita gente para pensar. A censura tinha razão em proibi-los: quem quer impedir os outros de refletir por conta própria tem que começar muito cedo, coibindo a imaginação de nossas crianças e adolescentes. E por esse motivo Paulo Monteiro resistiu à ditadura “também cantando”, em seus versos, a liberdade de criação e de expressão como um direito da pessoa humana.

Os já tradicionais leitores (e as leitoras) de suas prosas e versos, escritos à maneira regrada, pontuados, perceberam que há uma ótima e bem elaborada utilização da pontuação. Aprendiz dos textos clássicos da literatura universal, desde piá, aprendeu que a finalidade de tais sinais é transmitir a ideia de oralidade do autor por intermédio da leitura. No livro que está sendo lançado hoje – eu resisti também cantando –, ao abolir a pontuação, Paulo Monteiro libertou os leitores, lançando-os a um campo minado de incertezas de sentido. Sem vírgulas, pontos, maiúsculas, nos 72 poemas, faz um emprego não tradicional de pontuações, tal como o português José Saramago, que fazia o mesmo em seus textos em formato não poético, chegando a escrever frases de mais de uma página sem uma única vírgula, sem pontos. Sobre seu estilo, o próprio Saramago conta: "Sem saber como, sem ter pensado nisso, começo a escrever como se tivesse contando aquela história, e contando aquela história, conto-a sem pontuação, da mesma maneira como falamos, com sons e pausas". E complementa: "Abolir a pontuação não foi decidido por alguém que quer escrever algo novo. Foi resultado lógico da aceitação de um tipo de narração que se confunde muito com a oralidade, tem a ver com essa mágica do conto oral. (...). O que eu quero é que o leitor ouça... ouça aquilo que está no livro" (ZERO HORA, 1998).

É provável que Paulo Monteiro considere, também, que a pontuação, como usada atualmente, tende a organizar fria e logicamente o texto, não por seus elementos rítmicos e melódicos. Com base nessa deformação rítmica produzida pelo uso lógico da pontuação, muitos poetas a aboliram em sua escrita. O nosso poeta de Passo Fundo, no caso, inspira-se no que há de melhor na literatura universal, na medida em que, ao escrever sem pontuação, sem divisão em versos, sem maiúsculas, arremeça o leitor para o desconhecido, no território da criação, da fantasia, da imaginação, da própria versão do verso. Assim, enquanto organiza os poemas, ao eleger uma leitura singular, com matéria humana plástica, o leitor recria novos sentidos que configuram as palavras lidas, mastigadas com dentes de moer e marcar a vida. Desse modo, estamos diante de uma criação que ao morrer se desmancha, porque, desintegrando-se, gera outras obras.

Ao que parece, Paulo Monteiro faz parte da ousada vanguarda que tenta normatizar os métodos de composição de uma obra literária modernista à medida que surge um ardente desejo furioso de libertar as palavras, tirando-as da prisão. Essa vanguarda de que Paulo Monteiro faz parte tem se espalhado pelos quatro cantos do mundo, imaginando ser possível destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso, como nascem; empregar o verbo no infinitivo, para que se adapte elasticamente ao substantivo e não o submeta ao "eu" do escritor que observa ou imagina. O verbo no infinitivo pode, sozinho, dar o sentido de continuidade da vida e a elasticidade da intuição que a percebe; abolir o adjetivo, para que o substantivo, desnudo, conserve a sua cor essencial (o adjetivo, tendo em si um caráter de esbatimento, é incompatível com a nossa visão dinâmica, uma vez que supõe uma parada, uma meditação); deletar o advérbio, antiga cola que une as palavras umas às outras (o advérbio conserva a frase numa fastidiosa unidade de tom); eliminar a pontuação e suprimir os elementos de comparação (há muita violência quando se estabelecem paralelos entre palavras, pessoas, livros e...). Por fim, essa vanguarda de que o nosso poeta de Passo Fundo faz parte quer utilizar símbolos matemáticos e musicais para poder expressar toda mágoa, rancor, memória/esquecimento, todo amor concentrado e compartilhado entre as pessoas nesse mundo.

Será que a poesia de Paulo Monteiro deseja ousar e advertir para o quanto não se pode restringir a problemática já levantada por Mallarmé a um desejo de acabar com o verso – colocando como única saída, por exemplo, uma poesia puramente visual ou sonora? Esta foi, aliás, a leitura que predominou entre nós a partir dos poetas concretos, que viram no emblemático poema a resposta do escritor francês à crise por meio de uma poesia supostamente apenas visual. Assim, é preciso buscar nas poesias do poetaaampliação das possibilidades de versificar, expandindo com isso as possibilidades do poético.

Classificar nossa tradição poética contemporânea, por exemplo, em poesia verbal X visual – aquela que se julgaria mais diretamente herdeira da poesia concreta – seria, nesse sentido, colocar mal o problema. “O verso está em toda parte da língua onde haja ritmo”. O problema na escrita é, antes de tudo, rítmico. E se verso é quase sinônimo de ritmo, quem sabe mesmo na prosa haja verso ou, como queria o poeta francês, talvez nem mesmo exista a “prosa”. E quem sabe, nisso tudo, o que importe de fato seja essa indecisão da forma, a potência que a poesia tem de encarnar o instável, o frágil, o corpo em estado – contínuo, ininterrupto – de mudança.

Por isso, caros amigos e prezados integrantes da APL, como diz um provérbio do Malinké, “um homem pode enganar-se em sua parte de alimento, mas não pode enganar-se na sua parte de palavra”, ou – poderíamos acrescentar – “na sua parte de imagem”.             

***

O que desejo ao Paulo Monteiro e a todos os escritores de Passo Fundo, nesta noite e sempre, é felicidade, a felicidade que é sinônimo de respeito pelo outro. A felicidade que não possui lugar fixo e que pode ser situada no ponto exato onde se encontram o trabalho e o prazer, a disciplina e a sensibilidade, a certeza e a dúvida. E porque falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento e porque falham os pensamentos quando querem expressar qualquer realidade, concluo com uma pergunta e com a resposta que lhe deu um poeta:

Que lições a vida pode oferecer? Manoel de Barros aprendeu com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano) o seguinte:

A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.

Arte não tem pensa?

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.

Isto seja?

Deus deu a forma. Os artistas desformam.

É preciso desformar o mundo:

Tirar da natureza as naturalidades.

Fazer cavalo verde, por exemplo.

Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.

Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu

saio por aí a desformar (...)

Referências

  1. Mauro Gaglietti integra a Academia Passo-Fundense de Letras desde outubro de 2010, ocupando a cadeira 31. É Cientista Político, Doutor em História, Professor da IMED (Passo Fundo, RS), Professor do  Mestrado em Direito na URI (Santo Ângelo, RS) e Professor Colaborador da FEMA (Santa Rosa, RS) e da FAI (SC). É o Coordenador do Projeto Justiça Comunitária em Passo Fundo e do Curso de Pós-Graduação em Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa. É autor de vários artigos, ensaios e livros. E-mail: maurogaglietti@bol.com.br