Contexto histórico-cultural da Batalha do Pulador

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Contexto histórico-cultural da Batalha do Pulador

Em 30/06/2007, por Ana Carolina Martins da Silva


Contexto histórico-cultural da Batalha do Pulador[1]

Ana Carolina Martins da Silva[2]


A década 2001-2010 foi decretada, pela ONU, como a Década Internacional da Cultura de Paz e Não-Violência para as crianças do mundo. E paz pressupõe um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida que se baseiam, entre outros, no respeito à vida, ao ser humano e à sua dignidade; no combate à violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; e na adesão aos princípios da liberdade, justiça, solidariedade e tolerância, buscando a compreensão entre os povos, entre as comunidades e entre as pessoas.

Diante disso, unindo meu compromisso com a comunidade de Passo-Fundo - que tão bem tem me acolhido nestes meus 20 anos de permanência (cheguei aqui em 1986), - de resgatar aspectos histórico-culturais de um de seus momentos mais importantes, a Batalha de Passo Fundo, ocorrida nos campos do Pulador, devo orientar minha fala para a paz, colocando esta paz como aquela que um indivíduo sente, quando encontra consigo mesmo, com sua identidade, seu eu.

Ontem, neste mesmo palco, entre os palestrantes que aludiam a aspectos do contexto histórico-político da Revolução de 1893, o prof. NEI D ÁVILA a qualificava como "um choque ideológico entre elites", falava que era a hora de analisar a história sob o filtro da verdade e não sob o filtro de visões partidárias. Referiu-se à guerra civil de 1893 como uma "luta vergonhosa e fratricida", que além de ferir fisicamente os homens, tinha como objetivo, feri-los moralmente. A professora Fátima Roessler lembrou que, sobretudo, aqueles homens matavam e morriam por amor. O professor Ernesto Cassol, analisando a Revolução Federalista, localizou o motivo de todo o processo de violência, motivo esse, fundado em raízes econômicas. Não eram homens em luta apenas, eram projetos econômicos distintos que se digladiavam, eos soldados, de ambos os lados, sim, muitos morriam por amor e morriam sem saber que estavam lutando e morrendo por terra e dinheiro que nunca lhes pertenceriam.

O professor Cassol mencionou firmemente esta questão agrária. E, se de um lado os latifundiários mandavam seus peões à morte para não pagar impostos, nem abrir mão de seus privilégios, de sua parte, o governo ditava uma Carta Constitucional que dizia ao operariado que "como ele jamais se apropriaria do poder, deveria vigiá-lo".

Deste contexto vil, comentado ontem, percebi é comprovei o que minhas pesquisas vieram me mostrando ao longo da preparação deste texto: o povo do Rio Grande do Sul nunca esteve presente nesta guerra como protagonista, esteve como figuração. Lembro minha comunicação feita no primeiro Seminário que discutiu essa Revolução e cito os versos de Apparício Silva Rillo, quando faz 11 anos e quatro dias de sua morte: "Era no tempo das Revolução,/das guerra braba de ermão contra ermão/Dos lenço branco contra os lenço colorado,/ dos mercenário contratado a patacão."

Onde estava o povo, suas crenças, suas manifestações culturais, suas manifestações artísticas, religiosas? Quem compunha este povo? Quem eram estas pessoas que Júlio de Castilhos queria assentar em pequenas propriedades? Quais eram os traços humanos que sua constituição queria fixar no Rio Grande do Sul? Dos grupos tupi-guarani e jê, os chamados caingangues, quem seria a matriz? Onde foram parar seus costumes, a forma como faziam seus artesanatos, seu modo de vida? Sua língua? Conta a historiografia dos massacres sistemáticos que as nações indígenas sofreram.

E tem sofrido. E sofrem, porém, agora, altivos! Podemos ver isso por palavras que ouvimos com respeito: Ventara, Votouro. Coroado, Kaingang, Tupi, Guarani. Nomes que poderiam ter sido esmagados pela história, não apenas do Rio Grande do Sul, mas do Brasil, como: Terena, Krenak, Potiguara, Yanommami, entre outros. Em seu livro. Passo Fundo, Terra de Passagem* D Ávila (1996 - págs. 68 a 72) diz que a maior parte da historiografia da época "(...) revela o papel marginal e negativo ocupado pelo indígena. Marginal, no sentido de que é colocado à margem, fora da sociedade. (...) O europeu ao conquistar e submeter é apresentado como a luz iluminando as trevas (...)."

Toda a cultura indígena, portanto, é resumida a expressões como "agressiva, bárbara, hostil", e os nativos são qualificados como "horda de celerados", "selvagens", "diabólicos" e que "infestavam as matas da região tornando-se obstáculo formidável ao avanço da civilização". Os autores contam sobre "o facão, a borduna, o arco", mas nada dizem sobre as mãos habilidosas que os construíram, sobre as tramas ou desenhos que os ornamentavam, sobre os padrões de cestaria, as flechas, a emplumação, encaixe e fixação nas flechas, sobre os acampamentos, os cerimoniais. A colonização no Rio Grande do Sul sufocou a arte dos indígenas e as sucessivas revoluções ajudaram a concretizar este desastre. Atualmente, muitos projetos são feitos de resgate deste material, o que se espera com muita ansiedade. Gostaria de ressaltar que, sendo este painel sobre aspectos histórico-culturais da Batalha acontecida no Pulador, faz- se necessário este registro sobre as irreparáveis perdas em termos de cultura indígena.

Já, sobre os habitantes brancos, caboclos, escravos e agregados, o registro da época os reúne sob o mesmo poncho, os que estavam contra ou a favor de Júlio de Castilhos. Sobre teatro, música, poesia, pouco se encontra nesta região. Fala-se em música dos clarins, nos cantos dos homens no campo de batalha, em alguns diários e poemas feitos no calor da luta, bailes, saraus, músicas na rua.

Andriotti, em seu texto: Guerra, crime e cultura, (1993- págs. 44-45), diz que:

"No Rio Grande do Sul, nas últimas décadas do século19 e do século 20, as manifestações mais evidentes desse sentimento eram literárias. Sendo as teatrais mais festivas e populares, suprindo-se das produções européias cujas culturas fazem a tradição de todo o continente americano."

Aqui, o historiador refere-se ao número de operetas espanholas, as zarzuelas, aos dramas e às comédias apresentados em Porto Alegre, cuja maioria foi encenada pela Companhia Dramática Italiana. Refere-se ainda a concertos e outros, como circo e ilusionismos. Enquanto no interior as cidades choravam, na Capital, só no período entre maio de1893 e julho de 1894, aconteceram 48 grandes espetáculos de arte. Chamou-me a atenção a forma como ele se refere aos concertos e ao piano. Segundo o autor:

"Concertos instrumentais em salões ou teatros eram raros e pouco concorridos. Em residências, pelo contrário. Grande número delas possuía um piano, instrumento líder para qualquer tipo de Sarau."

Esta referência ao piano, volta a aparecer na análise de Saraiva (1993 - págs. 53 a 65.) " Quanto à musica urbana, praticada no seio das famílias, o instrumento principal era o piano". Geralmente, tocado por moças da elite de então. Ora, sabemos que ainda hoje, o piano é um elemento altamente distintivo de classe social, como não o era em1894.Saraiva, em seu estudo Música popular cita Bussmeyer que constatou: "Muitas vezes ouve-se o som do piano em casas modestas onde não se podia esperar este nível de luxo". A autora constata também os comentários de Angelo Doura- do (1986), que abordam a música durante a Revolução de1893, onde o som dos clarins era o mais ouvido. O cronista dizia ainda que, nas cidades e nos povoados, as pessoas aguardavam a coluna com músicas pelas ruas e que "Gumercindo, mesmo estando aborrecido, assobiava a ária camponesa".

Há, na historiografia, a repetição de que o modelo era de uma sociedade em que a organização econômica, social ea política dominante poderiam ser caracterizadas como latifundiárias, pastoris, patriarcal-militares e escravocratas. As atividades como criação de gado e plantação de ervais traziam o nome dos donos, não do peão ou do plantador, geralmente caboclo ou mestiço, este que foi vitimado pela exclusão e o roubo de suas pequenas propriedades.

Diz D Ávila ( 1996 - PÁG. 72-73) que estes descendentes de mamelucos e índias já tinham sido expulsos de suas terras, com documentos de posse concedidos peio imperador, já tinham perdido o direito de colher livremente erva-mate, pois em 1850, os ervais públicos foram sendo privatizados, obrigando os coletores a entregarem parte da colheita ao proprietário. Inclusive, quando colhiam pinhão e outros frutos silvestres, parte ficava com o titular da posse. Sarte tinha uma máxima muito interessante. Dizia ele: "Fazer, e ao fazer, fazer-se". Como ficou a cultura destes homens, mulheres e crianças? O que falavam enquanto faziam todo o processo do carijo? O que contavam? O que cantavam? Que pássaros conheciam? Que flores colhiam para suas namoradas? Com o que faziam música, se o piano era um artigo de elite? Os livros consultados da época, e acreditem, eu consultei muitos e bons, não mencionam isso. Se fôssemos nos pautar apenas pelo que ficou escrito, o elemento crioulo, o caboclo mestiço, o gaúcho, o negro (escravo ou livre), o mulato, o indígena, o cafuzo, estariam relegados aos termos "homens", quando se menciona o número dos mortos ea "mulheres", quando se menciona a violência, o estupro, os saques, os serviços sexuais.

Prestes Guimarães, em seu livrou Revolução Federalista em cima da Serra, alvo de meus estudos e comunicação no segundo Seminário sobre a Batalha de 1894,no ano passado, consegue ser uma exceção. Em seu relato vai registrando a história em diferentes vozes. Com uma redação muito próxima às características gerais do romantismo, ressalta nos combates aspectos de heroísmo e valorização da natureza, faz uma exaltação à liberdade humana, contrapondo-a à guerra. Traz presentes os sentimentos das famílias, das mulheres, das crianças, dos índios, do próprio inimigo. A falta da etnia negra em sua obra, talvez fosse um constrangimento em relação à situação destas pessoas, pois ele mesmo, em1884, havia liderado um movimento pela libertação dos escravos. Sua forma de contar a história está avante do seu tempo. A forma como escreveu seu livro, entre 1892 e 1895, só começou a ser estudada nos Estados Unidos, em 1960.Além disso. Prestes também fazia poesia. Diz Dourado, médico e cronista da coluna de Gumercindo:

"Pouco adiante estava Prestes Guimarães à espera da coluna dele, eu tinha de esperar a minha gente para mudar o meu cavalo. Deitamo-nos na grama e nossa conversa remontou às tristezas do exílio. Prestes Guimarães mostrou-me uns versos que escrevera no exílio, em Comentes."

As atividades culturais organizadas, iniciadas em fevereiro de 1883, em Passo Fundo, pelo Clube Literário "Amor à Instrução", estão registradas em D Ávila ( 1996 - pág. 107-108). Segundo ele, em pouco tempo de fundação, o clube contava com um quadro de cento e vinte sócios, todos do sexo masculino, embora esposas e filhas de sócios participassem de algumas atividades. Inicialmente o clube funcionou em prédios alugados, e em 1888 foi edificada a sede própria. O clube formou uma biblioteca com trezentos volumes. Gasparino Lucas Annes foi o primeiro presidente. Durante a revolução, o clube foi fechado e sua sede serviu de quartel, voltando a funcionar posteriormente.

Outro clube citado pelo escritor, foi um informal, freqüentado pelos republicanos, apelidado de "Clube do Toco da Vela", em função das reuniões acontecerem na oficina do marceneiro Augusto Reichmann, à noite, e de serem julgados "tão pobretões que não tinham condições de comprar uma lamparina". "Desse clube de jovens letrados, surgiu em 1890,um semanário, O Echo da Verdade, primeiro jornal passo-fundense", afirma o historiador. Essas atitudes culturais, a preocupação com a escolarização, as duas bandas de música (uma do partido liberal e a outra do republicano) foram destroçadas pela Revolução Federalista. Quanto à religião, diz-se que, embora em sua maioria católico, somando alguns protestantes, "o povo era pouco dado a devoções."

Concluindo, retomo a decisão da ONU de transformar a década 2001 -2010 num periodo-simbolo para se pensar a paz. Desde que o ser humano percebeu que podia criar, transformar e articular idéias, a maior parte deste talento tem sido usado para dominar, para matar, para fazer sofrer. Seminários como este são importantes, além de servir para sabermos o que aconteceu, para sabermos o que queremos que aconteça, daqui para frente. Que tipo de sociedade queremos? Uma que constrói arte ou que destrói museus? Uma que cria um clube de instrução ou uma que fecha escolas e queima livros? Quem nós queremos ser?

Sempre devemos nos perguntar isso, pois a história se constrói a cada dia e poderemos ser lembrados como assassinos, como seres cruéis, ou coletivamente, como um povo criativo, feliz, harmônico, saudável, com terra para morar, plantar e produzir seu sustento.

Disse Ernesto Che Guevara: "Os poderosos podem matar uma, duas, até três rosas, mas nunca deterão a primavera!"

Obrigada!


Bibliografia Citada

DAVILA, Ney Eduardo Possapp. Passo Fundo Terra de Passagem. Passo Fundo: Aldeia Sul, 1996.

FLORES, Hilda Agnes Hübner (org.) Revolução Federalista - Estudos. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1993.

Referências

  1. Pronunciamento feito no SEMINÁRIO 112 ANOS DA BATALHA DE PASSO FUNDO - Ocorrida em 27 de junho em 1894, no Pulador.
  2. Ana Carolina Martins da Silva é professora universitária e de Ensino Médio, além de ser membro da Academia Passo-Fundense de Letras - Cad. 1 7, de Ernani Cuaragna Fornari.