Celso da Cunha Fiori e o novo espírito da Academia

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Celso da Cunha Fiori e o novo espírito da Academia

Em 31/12/2003, por Luiz Juarez Nogueira de Azevedo


LUIZ JUAREZ N. DE AZEVEDO


Há dias, em uma de suas primorosas colaborações para O Nacional, vi uma galeria de fotos do arquivo de Meirelles Duarte, presidente da Academia de Letras, que trazia algumas imagens de professores da Faculdade de Direito.

Na fotografia, Celso Fiori está à frente do quadro-negro, numa das grandes salas de nossa velha Faculdade da Avenida Brasil, onde ministrava suas aulas. (Meirelles escreveu na legenda que eram aulas de Economia Política. Ouso retificá-lo: As aulas de Fiori eram de Direito Comercial, absolutamente completas, em que esgotava a matéria, com eloqüência e sabedoria; quem lecionava Economia Política era o saudoso professor Carlos Galves).

A visão da imagem de Fiori na sala de aula levou-me a uma associação de idéias, à inspiração de novamente evocá-lo, tantas vezes o tenho feito. Como Proust, ao saborear as madeleines, foi ao saborear as fotografias da coleção de Meirelles, que me lembrei mais uma vez de CelsoFiori.

Já é a segunda ou terceira vez que escrevo sobre ele e sua personalidade complexa e dinâmica, meridional, singular e contraditória. Do que mais me recordo, como não podia deixar de ser, é do convívio nas atividades de advogado e professor de Direito - as que mais vivenciei e acompanhei. Está na hora de aparecer um pesquisador de peso, da área da História ou do Direito, ou de ambas, para escrever a sua biografia definitiva, que comportaria uma grande tese acadêmica. Já sugeri um esboço disso, que alguns de nós, advogados passo-fundenses, preparássemos uma obra coletiva sobre nossos antecessores, os grandes advogados do passado de nossa terra. Enquanto ela não vem, vamos fazendo isso de forma fragmentária, recordando-nos aos poucos daqueles que mais nos marcaram e inspiraram.

Celso Fiori também foi membro de nossa Academia de Letras, talvez o mais insigne deles, por sua atividade incansável e pela liderança que nela desempenhou. Já nos idos de sua fundação, integrava o grupo pioneiro que implantou aqui a idéia de congregar lideranças intelectuais para o cultivo das boas e belas letras.

Depois, presidente, por volta de 1960, inspirou a troca da modesta denominação - Grêmio Passo-fundense de Letras - por outra, mais pomposa e significativa: Academia Passo-Fundense de Letras.

Por obra de seu espírito ambicioso e inovador, de simples agremiação, semelhante a tantas outras, nosso modesto Grêmio passava a ser uma Academia. Não foi só o nome que mudou. Mudaram os propósitos e mudou o espírito da instituição. De um simples aglomerado de pessoas unidas pela propensão literária, o Grêmio, convertido em Academia, alçou-se a vôos mais altos. Tornou público o seu compromisso com a pesquisa e o estudo das ciências do espírito e a sua universalidade, não mais restrita à literatura, mas voltada a todas as artes e a todas as dependências do saber. Sem desprezar suas origens, incorporou a preocupação com a pesquisa científica, em todos os níveis, como a pesquisa histórica e a pesquisa jurídica. Outras atividades do espírito e não mais apenas a literatura e a poesia passaram a ter acolhida entre seus objetivos. Isso permitiu que tivessem lugar no meio acadêmico novas preocupações e interesses, diversificando-se a produção dos acadêmicos, sendo particularmente significativa a de seus historiadores, como Veríssimo da Fonseca, Nei dÁvila e Welcy Nascimento.

Dizer isso não significa que outrora não convivessem no antigo Grêmio pes¬soas oriundas das diversas profissões, além de poetas e prosadores. Nem que a tarefa da agremiação deixou de apresentar sua importância para a época. O que mudou com a Academia foi o enfoque a respeito das preocupações da casa. Sem desmerecer os poetas e os literatos (ainda nos falta um grande romancista ou ficcionista), devido à influência inovadora de Fiori, passaram a ter espaço preocupações mais amplas, envolvendo praticamente todos os ramos do conhecimento. São respeitados entre nós pesquisadores da História, da Medicina, do Direito, da Teologia, das Religiões, da Pedagogia, da Geografia, do Jornalismo, da Política, da Economia e de todos os domínios científicos. Significativamente, temos um meteorologista, até bem pouco tivemos um maestro de escol. Nossa Academia passou a funcionar segundo o modelo da Academia Francesa (e hoje também da ABL), tornando-se um reduto da intelligenizia, ao agregar uma gama diversificada de intelectuais, artistas e pessoas de expressão social, profissional e política de nossa região.

Essa nova postura resultou da visão inovadora e moderna de Celso da Cunha Fiori que, como em tudo o que fazia, buscava aperfeiçoar a atividade acadêmica. Atento à marcha da história, apercebeu-se que a era dos grêmios literários estava a findar. Que a cidade universitária em que nos tornávamos precisava de uma Academia e não apenas de mais um grêmio literário.

Com a transformação em Academia, mudou-se também a composição dos seus quadros - que passaram a ser mais ecléticos - e, malgrado as resistências, aos poucos vão mudando as mentalidades. Na visão de Fiori, a noveI Academia deveria ser um ambiente paralelo e multidisciplinar à Universidade, com a qual deveria se integrar. Embora sem o compromisso do ensino e da educação propriamente dita, ela alimenta objetivos semelhantes aos da Universidade: cultivar a pesquisa e aperfeiçoar a cultura; divulgar e semear idéias; manter um vínculo permanente de contato com o universo cultural em todas as suas formas de expressão. A Academia, ao mesmo tempo em que recebe os influxos dos pensamentos e das preocupações que inquietam o mundo, quer irradiar para ele o que se faz e o que aqui se pensa. Templo da inteligência, tal como a Universidade, no inspirado dizer de Unamuno, a Academia não é um reduto fechado, mas um espaço aberto. Inspirada no jardim de Academo, que lhe deu o nome, e que era uma construção sem muros, apenas circundada por colunas - essa concepção permite que, pela Academia, circulem os ventos de todas as idéias, permitindo a discussão aberta, enriquecedora e sem preconceitos, num ambiente onde convivem e de onde se irradiam os mais elevados ideais humanos, sobretudo os da liberdade, da civilização e da cultura.

Foi assim que Celso Fiori a quis, anteviu e vislumbrou.