Breve história da carta-testamento de Getúlio Vargas II

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Breve história da carta-testamento de Getúlio Vargas II

Em 25/08/2004, por Paulo Domingos da Silva Monteiro


Breve história da carta-testamento de Getúlio Vargas II[1]

por Paulo Monteiro[2]

A lei de lucros extraordinários foi detida no congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional, potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obsculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.

Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucro das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio à crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constantes, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida Escolho este meio de estar sempre convosco.

Quando vos humilharem, sentireis a minha lama sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifíco vos naterá unidos e meu nome será a vossa banceira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa conciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.

Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo na caminhada da eternidade e saio da vida para entrar na história”.

Passados cinquenta anos, se existia alguma dúvida quanto à autoria da Carta-Testamento, o caso ficou completamente esclarecido pelos testemunhos da época e pela publicação do Diário de Vargas, em 1995. Este, com toda a segurança, escrito de próprio punho pelo presidente, reúnem todas as características literárias de seu ultimo texto: a concisão, as frases curtas, tipicamente jornalísticas. Perpassa-lhes um estilo pessoal, inconfundível. Pela gravidade do momento histórico, pela importância que o próprio autor sabia que o documento assumiria, é claro que pode ter solicitado o concurso de pessoa ou pessoas de confiança. Inegavelmente, porém, a carta-Testamento é obra pessoal de Getúlio Vargas, seu testamento político, seu passaporte para a história.

Afora o mito Vargas, estimulado pela intensa propaganda estado-novista e a pessoa de Getúlio, a Carta-Testamento encerra alguns elementos estilísticos e literários que fazem dela, na prática uma obra literária propriamente dita. Lembra os poemas em prosa, popularizados por Charles Baudelaire, no século XIX. O tema universal, a exploração dos humildes pelos poderosos. O texto é conciso e denso. Transpira o sentimento de um capaz de dar a vida pelos humildes. Cheira a todos os grandes mártires da Humanidade. Confere universalidade e metahistocidade à exploração do homem pelo homem. Lembra a declaração de Tiradentes, referindo a seus companheiros de conspiração: “Dez vidas, se as tivesse, eu daria para salvar as deles”.

Universal (comum, facilmente encontrável) é homens e mulheres da elite passarem para o campo do povo, e mais universal, ainda, é o movimento inverso. Foi o que aconteceu com Carlos Lacerda. Filho de Maurício los Lacerda, velho lutador das causas populares, ele e o pai, ambos comunistas, foram próceres da Aliança Nacional Libertadora, que se propunha a revolucionar o Brasil, implantando um governo “a serviço do povo”. Passou, mais tarde, a defender o regime de privilégios sociais.

Dai, também, a atualidade da Carta-Testamento, quando vemos multiplicarem-se os políticos que seguem o caminho traçado por Carlos Lacerda. E mais, as continuas noticias de envolvimento desses elementos com sujeitos facinorosos, tornam o depoimento o grande suicida cada vez mais identificado com o momento atual. Ao transportá-la para os nossos dias, parece gritar nos que, ao final de cinquenta anos, o número dos judas se multiplicou.

Referências

  1. Publicado em O Nacional 25/08/2004
  2. *Membro da Academia Passo-Fundense de Letras e a Academia Literária Gaúcha