Breve história da carta-testamento de Getúlio Vargas
Breve história da carta-testamento de Getúlio Vargas
Em 24/08/2004, por Paulo Domingos da Silva Monteiro
Breve história da carta-testamento de Getúlio Vargas[1]
por Paulo Monteiro[2]
Durante bastante tempo, a Carta-Testamento de Getúlio Vargas se assemelhou aos textos religiosos. Os seguidores do presidente morto acreditavam nela com vigor dos prosélitos de alguma crença no além; os adversários viam nela uma grande fraude ou, no máximo, o testemunho de uma covardia, como afirma Carlos Lacerda na tribuna da Câmara Federal. Hoje, se sabe que o documento é produto de serena e amadurecida reflexão.
Pela convicção com que defendiam a autenticidade do escrito e a firmeza com que se apegavam aos princípios econômicos e sociais preconizados pelo ex-presidente, elevado à condição de mártir, os trabalhistas eram ridicularizados pelos opositores do trabalhismo, como Carlos Lacerda à frente. Eram os “gregórios”, numa comparação com o tenente Gregório Fortunato, acusado e preso pelo envolvimento no atentado da Rua Toneleros, ou “as viúvas de Getúlio”, que replicavam, atirando-lhes em rosto o epíteto de “corvalhada”, no sentido de bando de urubus.
Vargas tinha instintos suicidas desde jovem.
Ali pela época em que aconteceu a Revolução Constitucionalista (1932), Getúlio pensou em suicídio, "tendo chegado escrever um manifesto à Nação Brasileira, no qual expunha a razão de seu gesto”, conta Afonso Arinos em História do Povo Brasileiro, J. Quadros Editores Culturais S. A. A., 1ª edição, vol. VI, p. 30, São Paulo, 1967, repetindo informação do general Góis Monteiro. Anos depois, com a publicação do Diário, mantido por Getúlio entre 1930 e 1942, esses instintos podem ser documentados através de um documento autógrafo. Em 20 de novembro de 1930, já presidente da República, desabafa: “Quantas vezes desejei a morte como solução da vida” (in Getúlio Vargas- Diário Siciliano/ Fundação Getúlio Vargas (dois volumes), volume I, p. 27, Rio de Janeiro, 1995).
R. Magalhães Júnior em Getúlio- O Julgamento da História, Edição Melhoramentos, São Paulo, 1976, à página 166, sob o titulo de O bilhete do suicida, conta que “dias antes do suicídio, Getúlio havia escrito um bilhete, que dizia”: À sanha dos meus inimigos, deixo o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo o que desejava”. Tal bilhete teria sido mostrado pelo presidente à filha., Alzira, que o teria lido e restituído ao pai. Foi estampado em vários jornais, após a morte de Vargas, e reproduzido em livros, como Ascensão e Queda de Getúlio Vargas, vol. II- Declínio e Morte, de Afonso Henriques, e Últimos Dias do Governo de Vargas (A crise politica de 1954), de F. Zenha Machado”.
Ora, esse texto é a ideia central da Carta-Testamento. Para usar um exemplo tirado da literatura, é como se fosse à chave de outro de um soneto. E vai aparecer numa primeira versão da carta, um bilhete de Getúlio, encontrado pelo major Fitipaldi, que após memoriza-lo, repetiu a Alzira Vargas. No dia do suicídio, aquele militar, que desfrutava da amizade pessoal do presidente, o transmitiu aos jornalistas, chegando a ser divulgado como a opinião última do chefe de estado: “Deixo à sanha de meus inimigos o legado de minha morte. Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia.
A mentira, a calunia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancores e gratuitos inimigos, numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa.
Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que ocupavam, na felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês e insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país, contra minha pessoa.
Se a simples renúncia ao posto a que fui elevado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranquilo no chão da pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para com mais fúria perseguirem-me e humilhar-me. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, prefiro ir prestar contas ao Senhor, não de crimes que cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes. Só Deus sabe de minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue dum inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus.
Agradeço aos que de perto ou de longe trouxeram-me conforto de sua amizade.
A resposta do povo virá mais tarde.
Getúlio Vargas
Como Getúlio não sabia escrever à máquina pediu a Wilson Cabral, contínuo do Catete, que a datilografasse, fazendo três cópias. Uma delas ficou com o próprio autor. Outra está no Museu do Rio Grande do Sul e a terceira ficou com João Goulart. Os originais foram guardados por Alzira Vargas. R. Magalhães Júnior (Op. Cit., p. 166) afirma a carta escrita “com a ajuda de José soares Maciel Filho, conhecido no meio jornalístico como J. S. Maciel Filho”.
Expurgada dos erros datilográficos, a Carta-Testamento talvez seja o documento, mais conhecido da História do Brasil. Políticos trabalhistas imprimiram milhões de exemplares, divulgados no verso de santinhos ou sob as formas de cartões e cartazes. Esta é sua versão, consagrada, revista dos erros datilográficos:
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, insultam: não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender como sempre defendi o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. À campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais e voltados contra o regime de garantia de trabalho.
Segue na segunda parte>>>