Bins, Tarso de Castro, Chico Buarque e o tatu

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Bins, Tarso de Castro, Chico Buarque e o tatu

Em 30/04/2012, por Herlon Goelzer de Almeida


HERLON GOELZER DE ALMEIDA


Ernani Bins Filho, o Naninho, amigo querido de muitos, faleceu. Ele e eu vivemos um momento ímpar e sempre que nos lembrávamos do ocorrido, ele me pedia para um dia transcrever para texto. Agora aqui está.

Eram alguns dias depois de 07 de dezembro de 1976, data em que João Goulart havia falecido no exílio, em Mercedes, no Uruguai, em circunstâncias duvidosas. Até hoje perdura a dúvida se foi enfarto ou envenenamento, este propiciado a mando do Fleury, mão de ferro da ditadura. Para maiores detalhes procurem os relatos em sítios da internet propiciados pelo Google. Eu cursava Agronomia em Santa Maria e já me encontrava em período de férias em Passo Fundo. Bins me procura convidando para acompanhá-lo a Porto Alegre, em uma viagem rápida. Daria carona ao Tarso de Castro até o Salgado Filho – que iria para o Rio de Janeiro onde morava -, e aproveitaria para resolver um determinado problema lá na capital.

Tarso se encontrava em Passo Fundo, pois tinha retornado de São Borja onde havia participado do enterro de João Goulart e aproveitava para rever a família. Eu achei ótimo, pois vivenciar alguns momentos com o Tarso de Castro seria inesquecível, como de fato foi. Eu o conhecia do Pasquim - fui leitor assíduo de artigos em o O Nacional, e o tinha visto algumas poucas ou raras vezes na cidade. Para mim era uma oportunidade de conversar e me alimentar de suas percepções sobre aquele momento histórico da vida nacional - por se tratar de um ex-presidente, morto no exílio e em circunstâncias duvidosas.

Lembro que o Bins me apanhou em casa, na Bento Gonçalves, logo após o almoço, e fomos para a casa do Seu Múcio, na descida da General Neto. Lá estava a família Castro reunida, em uma mesa, pós-almoço com o Tarso, muito falante, de atração total. Ainda pegamos o café e logo saímos rumo a Porto Alegre.

Numa Brasília cor creme, ou algo assim. Dia lindo, Bins na boleia, Tarso no banco do carona e eu atrás.

Tarso estava indignado com a morte do Jango. Pela própria morte, pela circunstância duvidosa e, agravava ainda mais seu estado de espírito, a morte ter ocorrido no exílio. Tarso esbravejava contra a Ditadura, e repetia incansavelmente que “isso não se faz com ninguém. Morrer no exílio é a pior das dores! É uma sacanagem!”

Tínhamos andado uns poucos quilômetros, nem em Ernestina havíamos chegado, e o Tarso pede para parar num posto de gasolina qualquer que tivesse um boteco. Lá ele pediu a primeira dose de muitas tomadas no trajeto. Foram muitas paradas até Porto Alegre, muitas mesmo. Paramos em postos de gasolina com boteco, em botecos sem posto, em tudo que houvesse álcool ingerível. Em cada parada uma dose de alguma coisa: gin tônica, fanta com vodka, whiski puro, whiski com pepsi ou coca-cola, cachaça com guaraná e por aí foi... Aqui não há exageros. Ele tomava cada dose ou copo de forma muito rápida. O que lhe movia era a indignação, a morte, o exílio, a ditadura. Berrava, gritava. Por momentos ficava quieto. Logo depois retomava.

Falamos de tudo um pouco, do Pasquim, da vida no Rio, se ele havia ou não transado com a Candice Bergen, etc. Mas íamos e voltávamos nos assuntos, e a ditadura era de alguma forma relembrada.

Pau no Geisel, no Médici, enfim, era um clima de desabafo, revolta, indignação mesmo. Ele lembrava e repetia os atos e falas do Jango, no exercício da presidência, e os discursos das pessoas no enterro, ocorrido no dia anterior. Era um nacionalismo só.

Depois de algumas paradas e doses estacionamos na Vila Assis. Mais uma dose de algo quente, a tradicional ida ao banheiro, um pastel, e saímos para a rodovia. Ao sairmos do estacionamento, já alcançando a rodovia, vi um menino, no acostamento, ofertando um tatu, segurando-o pelo rabo. Mas fomos em frente. Andados uns dez quilômetros, o

Tarso dá um grito: “Volta!! Vamos voltar lá que vou levar o tatu!! Vou colocá-lo na casa do Chico Buarque!”. Bins deu meia volta e dali um pouco lá estávamos, em frente ao menino. Conversa vai e pechincha também, o tatu ficou por uns 5 ou 10 pilas. Uma bagatela. O bom no Rio Grande é que a moeda nunca muda, nossa estabilidade cambial é maior que a do dólar e euro juntos. É sempre pila.

Fomos até a borracharia, lá conseguimos uma caixa de papelão, fizemos uns furos para respiro, a envolvemos com um barbante e o tatu ficou acomodado nela.

O tatu na caixa embarcaria no Salgado Filho, sob um casaco levado na mão. Na época isso não era problema algum. O assunto passou a ser o tatu, a casa do Chico Buarque de grande pátio, os encontros com os amigos, a novidade que seria um tatu no Rio de Janeiro, etc.

Devemos ter parado mais uma ou duas vezes para tomar umazinha e dar uma verificada na segurança do tatu, que eu, atrás, ia controlando de perto.

Algum tempo depois e de um período de silêncio, o Tarso gritou, assustando-nos: “Pára o carro! Vamos soltar o tatu!.

Não tem cabimento, é uma incoerência minha tirar a liberdade do tatu! Basta o que fez a ditadura, que tirou o Jango e tantos outros de seu habitat!! Eu não vou fazer isto com o pobre do tatu!” Imediatamente, paramos o carro, pegamos a caixa que ele, Tarso, abriu e colocou no chão. O tatu, imóvel, sem nada entender daqueles malucos, ali ficou, olhando-nos por alguns segundos.

O Tarso dizia: “Vai tatu, vai!” Depois de alguns bons, segundos o tatu se foi em direção a um mato rente ao acostamento. Não sem antes dar mais uma olhadinha nos malucos totais. Na visão dele, tatu, claro!

Retomamos a viagem. O Tarso bradava sem fim a necessidade de democracia, a liberdade dos homens e a do tatu. Depois de muitas horas, muitas mesmo, dessa longa e inesquecível viagem Passo Fundo-Porto Alegre, com algum atraso que não sei precisar, deixamos o Tarso no aeroporto. Bins e eu fomos para o centro da cidade.

O Chico Buarque talvez não tenha sabido dessa história toda e do tatu.

Mas eu nunca vou esquecer da viagem e de que o Bins, ao entrar em velocidade na contramão, em uma das avenidas da capital, nos colocou de frente com uma nuvem de carros que vinham em velocidade, em nossa direção logo após ter aberto um semáforo. O Bins deu um meio cavalo-de-pau e já retomamos o rumo certo. O tatu e nós dois nos safamos bonitos naquele dia...