A criação da Diocese de Passo Fundo

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A criação da Diocese de Passo Fundo

Em 31/10/2019, por Jonas Balzan

A CRIAÇÃO DA DIOCESE DE PASSO FUNDO


Jonas Balzan[1]


Resumo: Com a Proclamação da República, em 1889, a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) no Brasil passou por um período ambíguo. Enquanto alguns clérigos viam o evento como uma desgraça, outros assistiam ao episódio como uma dádiva, já que com a liberdade que a ICAR passaria a ter, o movimento, por vezes chamado de romanização, poderia ser implementado no país. E foi de fato o que ocorreu. Assim, a criação de novas dioceses teve como principal premissa a aproximação da Instituição Católica para com os fiéis por meio da figura do bispo, chefe de sua diocese. Ressalta-se que as dioceses podem ser entendidas como centros administrativos que auxiliam na organização e difusão da doutrina católica. Nesse sentido, compreende-se que a Diocese de Passo Fundo se insere dentro desse grande projeto de romanizar o Brasil. Portanto, nesse trabalho discorrer-se-á sobre o processo de criação da Diocese de Passo Fundo, dando maior visibilidade aos movimentos leigos que auxiliaram nesse processo.


Palavras-chave: Diocese de Passo Fundo. Igreja Católica. Catolicismo.


Introdução


Com a Proclamação da República e a instauração de um Estado laico, a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) no Brasil passou por um período ambíguo. Ao mesmo tempo que se viu livre dos ditames estatais e, por esse motivo, poderia se aproximar de Roma, buscando uma reorganização institucional e clerical, por outro lado teria de “lutar” pelo seu espaço, visto que o campo religioso (Bourdieu, 2007) passaria a estar livre para tal disputa. Desse modo, a ICAR utilizou-se de algumas estratégias (Certeau, 1998) para se (re)aproximar da população brasileira. Dentre essas ferramentas, a criação de novas dioceses foi basilar para que o catolicismo ultramontano pudesse ganhar legitimidade e se desenvolvesse. Partindo disso, nesse trabalho, pretende-se discorrer sobre o processo de criação da Diocese de Passo Fundo, que se enquadra dentro desse grande processo de romanização, projeto da Sé Romana, e que tem seu início no começo do século XIX, mas que chega ao Brasil apenas no final do referido século.

Ao fim da Primeira República brasileira começaram a surgir menções acerca da criação de uma diocese na cidade de Passo Fundo. A princípio, partem do clero e sociedade passo-fundense e são acolhidos pela ICAR, na pessoa de Dom João Batista Becker, então Arcebispo de Porto Alegre (1912-1946). Dessa forma, não demorou para que movimentos leigos aderissem a essa ideia e sob o olhar da Igreja começassem a trabalhar em favor desse objetivo: criar uma diocese em Passo Fundo. No decorrer do período, para a efetivação desse propósito, houve a elaboração de alguns movimentos para que a tarefa conseguisse ser alcançada: Comissão Abaixo, Associação Pró-Bispado/Pró-Catedral, Legião Feminina Pró-Catedral, Pequena Cruzada da Legião Feminina Pró-Catedral. Estes, por sua vez, usaram como principal instrumento a mídia impressa local[2], na qual comunicam acerca dos eventos que tinham por intuito arrecadar fundos para o cumprimento dos pré-requisitos estabelecidos pela própria Cúria Romana: certa quantia em dinheiro, um palácio episcopal para residência do bispo e a construção de uma igreja catedral. Enfim, esse movimento, que surgiu por volta de 1930, atingiu seu final em 1951, quando, por meio da Bula Si qua Dioecesis, o Papa Pio XII (1939-1958) cria a Diocese de Passo Fundo.

Pode-se dizer que as discussões para a criação de uma diocese em Passo Fundo precedem 1930, pois se Dom Becker veio até Passo Fundo nesse ano para firmar de fato a ideia, sugere que esses desejos já existiam anteriormente. Como o próprio advogado João Junqueira Rocha relata, a criação da diocese era “antiga e justa aspiração dos católicos deste município”[3] Sobre isso, o professor Welci Nascimento comenta: “Começou em três de setembro de 1926, quando vinte pessoas se reuniram na Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição Aparecida [...] Era a projeção do futuro bispado de Passo Fundo” (Nascimento, 2000, p. 85). Contudo, em todas as documentações analisadas a que se teve acesso, não se localizou nada que aborde sobre esse assunto antes de 1930, justificando assim, o recorte temporal do trabalho: de 1930 a 1951.


Uma ideia, um objetivo: Mãos à obra!


Entre os dias 25 e 27 de julho de 1930, esteve presente em Passo Fundo Dom João Batista Becker com o propósito de deixar definitivamente assentada a ideia de criação de uma Diocese de Passo Fundo. Ao desembarcar na estação da Viação Férrea, foi recepcionado pelas autoridades do município e por circunstância de sua estadia nessa localidade foi elaborada uma programação festiva. Assim, ao longo de sua permanência, o religioso dialogou com as comissões encarregadas pela criação do bispado, com as diretorias das Damas de Caridade, Apostolado da Oração e Conferência Vicentina[4]. Além de Dom Becker, fizeram-se presentes em Passo Fundo para os debates em relação ao bispado o Monsenhor Nicolau Marx, que nesse mesmo período era também deputado estadual, o Cônego Canel, o Cônego Luiz Scortegagna, da Diocese de Santa Maria e o reconhecido advogado Adroaldo Mesquita da Costa[5].

Após a visita de Dom João, não tardou para que ocorresse[6] uma reunião[7] a fim de definir a primeira Comissão Central[8], que seria encarregada de suscitar fundos para a edificação do palácio episcopal e da catedral. No entanto, pelo que se observa na documentação analisada, essa Comissão não será tão atuante quanto Alice N. Bade, Zulmira Ribas e Honorina Avila, sendo elas esposas de Otto Bade, de Octacilio Ribas[9] e de Max Avila, respectivamente. Ressalta-se que tanto o primeiro como o segundo sujeito integraram a Comissão que tinha por intuito a construção de uma nova Matriz.

Essa nova Matriz seria edificada onde se localiza a atual Catedral Arquidiocesana de Passo Fundo. Assim, em 1913, em presença da população, bem como dos Padres Valentin Rumpel e Rafael Iop, e da Comissão construtora da Igreja, o Bispo Dom Miguel de Lima Valverde, então Bispo da Diocese de Santa Maria (1911-1922) fez a bênção da primeira pedra da Igreja Nossa Senhora das Dores que seria erigida no mesmo local da antiga Matriz, demolida em 1909[10]. Esse assunto chegou a ser mencionado até mesmo n’O Nacional e teve sua última citação nesse mesmo periódico aos 13 dias de julho de 1927. Hipoteticamente, essa discussão tenha sido encerada por iniciarem os debates relacionados ao bispado e à provável construção deste no mesmo lugar.

Com a finalidade de arrecadar fundos para a construção tanto do palácio episcopal quanto da catedral, deu-se início à organização de eventos, sendo-os divulgados ao público passo-fundense por meio da imprensa local. Eram anúncios de chás, bailes, torneios de futebol, sessões de cinema, quermesses, rifas, festivais artísticos, etc. A primeira publicação ocorreu no dia 22 de agosto de 1930, com o seguinte título: “Pró palacio episcopal Sessão no Cine Colisseu”. Também se salientava que para o dia da sessão “os ingressos serão vendidos a preços populares, e será focado o film ”[11].

Não demorou para que surgissem as primeiras propostas de projetos para a futura catedral, sendo os primeiros arquitetos a apresentarem suas ideias Ernesto Delvaux – propondo um projeto em estilo gótico –, José Formento – desenvolvendo-o em estilo renascença – e Victorio Zani – apresentando-o através de um gótico de transição do estilo romano. O orçamento inicial da catedral girava entre 800 e 1.200 contos de réis. No início de 1931, havendo oito projetos, nomeou-se uma comissão para “estudar os projectos e dar parecer sobre os mesmos”[12].

Dom Antônio Reis, em posse da Diocese de Santa Maria (1931-1960), que na época compreendia também Passo Fundo, fez uma consulta aos Padres Consultores da Diocese em 1932, com o propósito de saber a posição deles acerca da possível criação ou não de uma Diocese em Passo Fundo. As respostas registradas, em sua maioria, apontam que os Consultores Diocesanos não eram favoráveis. Dentre as alegações expostas, estavam as referentes ao aspecto financeiro, aos aspectos geográficos, aos aspectos religiosos e ao enfraquecimento da Diocese de Santa Maria, que por se tratar de uma diocese recém-criada (1910), nem dispunha de um patrimônio significativo. É importante destacar que esses aspectos apresentados pelos Consultores já se faziam presentes antes mesmo de 1932. Em carta a Dom Becker, Monsenhor Luiz Scortegagna deixa clara a fragilidade financeira em que se encontrava a localidade de Passo Fundo: “Todas as parochias estão com dividas por causa das recentes construções das Igrejas Matrizes, Capellas e outras obras parochiaes”[13]. Assim, com base em argumentos, os Consultores e Monsenhor Luiz julgavam a criação de um bispado em Passo Fundo, naquele período, uma atitude “prematura”, todavia não rejeitavam a probabilidade de este ser criado no futuro. Assim, essa pauta poderia ser retomada quando existisse um panorama mais propício para tal, e segundo eles isso levaria de 10 a 15 anos.

Por dificuldades financeiras, no decurso de todo o processo de construção da catedral as obras foram constantemente interrompidas, o que justifica os 21 anos de processo. Então, solicitando cooperação aos passo-fundenses, as comissões e o Vigário local se valeram mais uma vez da imprensa, fazendo anúncios e pedindo insistentemente para que a população realizasse doações, a fim de que as obras pudessem ser finalizadas o mais breve possível. Sublinha-se que em seus discursos em busca de amparos, evidencia-se não só a questão relativa à fé católica, como também a tentativa de obter auxílio de cidadãos de outras crenças religiosas, recorrendo ao sentimento de afeto pela cidade de Passo Fundo.

Se o objetivo era obter cooperação não apenas de católicos, mas também de sujeitos das mais diversas crenças religiosas ou políticas, esse foi alcançado com sucesso. Para tanto, basta recordar que Nicolau Araújo Vergueiro, durante o tempo em que foi intendente municipal, foi o responsável pela doação de um terreno, em 1922, na Avenida Brasil, para a construção do atual Instituto Educacional Metodista (IE). Nesse período, enquanto maçom, Nicolau simpatizava mais com a Igreja Metodista do que com a ICAR (Medeiros, 2007). Apesar disso, em reunião de 3 de agosto de 1930, Vergueiro foi nomeado presidente de honra da primeira Comissão Pró-Bispado. Outro fato que ilustra o êxito da ICAR, em Passo Fundo, em atrair para dentro do movimento Pró-Diocese integrantes de outros credos ou ideários políticos é o caso do comunista João Junqueira Rocha[14]. Destaca-se que esses são apenas dois exemplos, contudo, crê-se que não se constituam em casos isolados.

Nesse sentido, Riolando Azzi diz que, a partir de 1908, as elites locais passaram a dirigir movimentos pró-bispado, vendo na figura de uma diocese um instrumento de prestígio para os próprios centros urbanos (Azzi, 2008, p. 18). Esse prestígio, trazido ao centro urbano, somava-se ao ideário de progresso, de “ser moderno”, ideia essa difundida por uma elite político-econômica, que se opunha a uma cultura “considerada atrasada, ineficiente e distante do lema republicano de ordem e de progresso” (Souza, 2008, p. 62). Sendo assim, verifica-se que os indivíduos que ocupavam os cargos dirigentes dos movimentos leigos possuíam evidência socioeconômica na sociedade passo-fundense. Portanto, essa participação na direção das organizações, segundo Manoel, assegurava o financiamento fundamental e o seu funcionamento (Manoel, 2008, p. 57).

Seguindo essa linha de raciocínio, identifica-se nos discursos impressos do jornal O Nacional a ideia do poder simbólico e o prestígio que uma diocese traria para a cidade de Passo Fundo: “Inegavelmente, o término desse grandioso empreendimento não significa, apenas, o novo Templo da Igreja Católica nesta cidade, como também, uma bela obra de arte arquitetonica que muito contribuirá para o maior realce e embelezamento de Passo Fundo”[15]. Além disso, constatou-se a pregação da ideia de uma cidade avançada em relação as demais, ou seja, uma ideia de desenvolvimento e progresso: “Entendemos que a solução desse caso interessa vivamente a nossa população, tanto católica, que é a maioria, como de qualquer outra religião, visto que diz de perto com o nosso desenvolvimento moral e artístico”[16].

Em 1939, uma nova Comissão Pró-Catedral foi constituída. De acordo com o vigário, seria preciso realizar uma nova eleição “visto o desejo manifestado pelo anterior de deixar que outros também emprestem o seu concurso para a realização dessa grandiosa obra que atenderia aos vindouros os esforços da população católica de Passo Fundo”[17]. Apesar dessa fala, a alteração, na verdade, pode ter acontecido pela pouca dedicação e empenho da comissão anterior. Para mais, salienta-se que no ano de 1937 existiam somente cinco famílias construtoras[18], já em 1939, após a eleição da nova comissão, inscreveram-se 58 novas famílias em apenas um mês. De acordo com O Nacional, ainda naquele ano as obras encontravam-se paradas: “cuja a construção, em breve será reiniciada”[19]. Porém, as obras apenas foram retomadas em 1940, conforme notícia de 12 de setembro: “Tiveram na presente semana o reinício dos trabalhos da monumental obra da catedral desta cidade[20]. Destaca-se que nesse último anúncio se anexou a ele um desenho (Figura 1) do que poderia a vir ser a futura catedral, procurando, dessa maneira, apresentar a toda a população passo-fundense o resultado que poderia ser atingido se todos se unissem em favor da causa. Contudo, se por um lado, no decurso de todo esse processo de criação de um bispado, a ICAR foi angariando cada vez mais fiéis e se fortalecendo, por outro, fez com que alguns católicos “virassem a casaca”, isto é, eles deixaram de ser fiéis da Sé Romana e aderiram às Igrejas Protestantes[21].

Em vista do indispensável fortalecimento do movimento Pró-Bispado, aos 29 dias de outubro de 1943, Dom Antônio Reis, então Bispo de Santa Maria, deixou incumbido o Monsenhor Clemente Müller para a edificação da futura igreja catedral e da residência episcopal, assim como pela constituição do patrimônio, exigido pela Santa Sé[22]. Para tanto, Dom Reis concedeu ao Monsenhor Müller todas as atribuições necessárias para que pudesse executar seu trabalho da melhor maneira possível nas paróquias dos municípios[23] que pertenceriam ao futuro bispado, deixando sob aviso os párocos, vigários, capelães, reitores de igrejas e demais sacerdotes a fim de que acatassem ao Monsenhor Müller, podendo ele, assim, realizar seu trabalho com sucesso.

Figura 01. Ilustração frontal da Catedral de Passo Fundo. Fonte: O NACIONAL, 12 de setembro de 1940. AHR.

Ademais, destaca-se que dentro dos movimentos leigos as mulheres tiveram enorme relevância, sendo as principais encarregadas pela organização de eventos. Estas, no que lhes cabia, não poupavam esforços para que as festas “revistam-se de grande brilhantismo”[24]. Logo, elas foram as responsáveis pelos preparos dos famosos chás, muito divulgados no período – a comissão encarregada pelos chás era alterada todo mês. Em 1939, durante a reunião da nova Comissão Central, foi composta uma comissão Central de Damas. A partir daquele momento, as mulheres, que já se faziam presentes desde o início do processo, passaram a ser ainda mais ativas, chegando a criar a Legião Feminina Pró-Catedral, com subsede no Município de Marau.

Em 1948 houve a organização de uma nova Comissão Pró-Catedral. Essa Comissão, somada a um número cada vez maior de fiéis católicos e a liderança do Monsenhor Clemente Müller, fez com que as obras ganhassem fôlego nos últimos “metros da maratona”. Nomeada em 19 de maio de 1948 por Dom Antônio Reis, a nova Comissão Central ficou “constituída de elementos de projeção social e religiosa”[25], sendo atribuída a essa comissão “supra poderes de formar sub-comissões, não só nos distritos de Passo Fundo, mas também nas sedes e distritos [...] dos municípios, que pela posição topográfica deverão pertencer ao futuro Bispado”[26].

Aproximadamente um ano depois se faria presente, em Passo Fundo, Dom Antônio Reis com a finalidade de benzer[27] a catedral, sede do futuro bispado. Para tal ocasião um programa foi elaborado. Dentro dessa programação estabeleceu-se a transladação “com enorme massa de fiéis” da imagem de Nossa Senhora Conceição Aparecida da residência da doadora, Laura Vargas Rocha, esposa de Antonio Junqueira Rocha, para a Catedral de Passo Fundo. Com a chegada da imagem à catedral, ambas (a imagem e a catedral) foram benzidas “ante a multidão de fiéis, que se acotovelava no amplo recinto do templo”[28]. Apesar disso, somente no ano seguinte, mediante decreto de Dom Reis a catedral passou a ser sede de uma nova paróquia:


Fazemos saber que, atendendo á necessidade de ser creada mais uma Paróquia na Cidade de Passo Fundo, que será o futuro Curato da Sé, em virtude da Nossa Autoridade Ordinária, havemos por bem decretar, como de fato pelo presente Decreto, determinamos que a Nova Paróquia terá como principal orago: Nossa Senhora Aparecida, modificando a denominação do orago da antiga Paróquia que era de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, para o título de Nossa Senhora da Conceição[29].


Desse modo, nascia a Paróquia de Nossa Senhora Aparecida, tendo como primeiro vigário o Padre Laurentino Tagliari. Em 1950, a recém-criada paróquia já possuía uma média de trinta comunhões diárias, podendo “observar em Passo Fundo uma crescente vida religiosa, pois, sem se denotar diminuição de movimento nas demais igrejas, já existentes, são bem frequentadas as [...] missas”[30].

No ano seguinte, Dom João Claudio Colling, então Bispo auxiliar (1950-1951) de Santa Maria, viria a Passo Fundo para fixar residência. Contudo, pela ausência de um palácio episcopal – o prédio que já havia sido adquirido acabou sendo destinado à secretaria do bispado – Dom Colling hospedou-se por um curto período na casa canônica da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Assim, a compra de uma casa para sua morada foi a primeira “tecla” a ser batida por Colling, já que este possuía o desejo de fixar-se o quanto antes em Passo Fundo, pois, conforme o Padre Laurentino Tagliari , “pesando-lhe sobre os hombros a responsabilidade de filho para com sua santa progenitora quasi octogenária”, portanto ansiava, “uma vez que estava determinada sua residencia em Passo Fundo, trazer quanto antes sua idosa mãe, antes dos rigores do inverno planaltino da Serra”[31].

No início da década de 1950, o município de Passo Fundo já dispunha de um candidato a tomar o posto do futuro bispado e de uma catedral, que mesmo não achando-se absolutamente finalizada, era aceitável para sediar uma diocese. Sublinha-se que os sinos e o carrilhão chegaram por via férrea aos 24 dias de abril e sua instalação se efetivou em 6 de agosto do mesmo ano, quando os sinos soaram pela primeira vez “espalhando modulações sonoras por sobre a cidade, como um chamado solene e cativante de Cristo, Redentor dos povos”[32]. Portanto, aguardava-se somente que houvesse o reconhecimento e o título de diocese.

Dessa forma,


a Diocese de Passo Fundo foi criada por meio da Bula Papal Si qua Dioecesis de 10 de março de 1951, sendo desmembrada totalmente da Diocese de Santa Maria. No dia 22 de julho, Dom Vicente Scherer, então Arcebispo (1946-1981) Metropolitano de Porto Alegre, conforme delegação recebida de Dom Carlos Chiarlo do Núncio Apostólico do Brasil (1946–1954), deu execução a bula Si qua Dioecesis, instalando oficialmente o novo Bispado. À tarde do mesmo dia, com a presença de vários Bispos rio-grandenses, houve posse solene de Dom Cláudio Colling, tornando-se primeiro Bispo da Diocese de Passo Fundo. Dada a grandeza do evento, este foi amplamente mencionado pela mídia não só passo-fundense como também pela imprensa da capital do Estado do Rio Grande do Sul, como por exemplo o periódico Correio do Povo. Assim, por instalação da Diocese ficaram pertencendo os municípios de Passo Fundo, Carazinho, Sarandi, Getúlio Vargas, Erechim e Marcelino Ramos, tendo uma população aproximada de 400 mil habitantes e um total de 32 paróquias sob sua jurisdição (Balzan, 2017, p. 68).


Dom Cláudio Colling, naquele mesmo ano, reconhecendo a relevante atuação dos movimentos leigos, escreveu uma carta ao Núncio Apostólico brasileiro para que este entrasse em contato com o pontífice romano. Na carta, Dom Colling pediu para que Ernesto Morsch e José Canessa recebessem a honraria do papa Pro Ecclesia et Pontifice em sinal de reconhecimento pelos “inestimáveis serviços prestados em favor da Diocese e da Religião”. Em resposta de Pio XII, estes receberam as honrarias solicitadas. Nas palavras de Dom Colling:


O Primeiro, como presidente da Comissão Pró-Bispado, foi incansável, tendo dispendido do próprio bolso somas consideráveis, até de levar vida religiosa regularmente perfeita, tendo mesmo um filho sacerdote da Companhia de Jesus. O segundo é médico em Erebango, solteiro, vindo de muitos anos da Itália, vive para a caridade e destina para as obras pias quase todos os proventos da sua clínica, levando vida de piedade modelar[33].

Figura 2. Registro da apresentação dos artistas circenses alemães do grupo Zugspitz Artisten, vendo-se, ao fundo, a catedral ainda em construção, durante o Centenário de Passo Fundo. Fonte: Acervo Digital IHPF.


É de grande relevância pontuar que Ernesto Morsch, no tempo em que presidiu a comissão, foi o articulador fundamental entre as subcomissões, criadas nas várias paróquias que englobariam a então Diocese de Passo Fundo, os diversos movimentos leigos e a instituição católica. Para Morsch não havia obrigação de seguir a tradicional hierarquia[34] piramidal da ICAR. Ele comunicava-se diretamente com o Núncio Apostólico brasileiro, pois a ele fora conferido tal privilégio.

Tendo ciência da história da criação da Diocese de Passo Fundo, o então Bispo (1999- 2011) Dom Pedro Ercílio Simon, que posteriormente tornou-se o primeiro Arcebispo da recém referida Diocese (2011-2012), salientou a relevância dos cidadãos de Passo Fundo que se engajaram no movimento Pró-Bispado: “Distinção especial merecem os numerosos leigos que abraçaram a causa, criaram condições, insistiram, sempre unidos a seus pastores e finalmente conseguiram o objetivo de todos” (Simon, 2005, p. 35).

Como apontado anteriormente, mesmo estando inacabada, a igreja catedral foi benzida, porém não inaugurada. Então, paulatinamente, as obras iam avançando na medida em que havia recursos para tal. Dessa forma, foi inaugurada em 25 de dezembro de 1965 e mesmo assim não estava concluída. Sublinha-se que “com o tempo, pouco a pouco, festejavam-se novas etapas concluídas: o forro, o piso, os vitrais, o sistema de som...” (Nascimento, 2000, p. 88). Já as pinturas ficaram a encargo do polonês Arysyarch Kasznrewicz, que inicia seus trabalhos somente em 1975.

Salienta-se que a catedral foi erigida em um local de destaque da cidade de Passo Fundo. Localiza-se no coração da cidade, na Avenida General Netto, em frente à Praça Marechal Floriano, mesmo lugar onde foi erguida a primeira capela da cidade. Sem hesitar, pode-se dizer que se tornou ponto de referência. Na compreensão da população passo-fundense, essa obra, que se destaca entre os prédios da cidade, possui significados diversos e que, inclusive, vão além do religioso. À vista disso, em entrevista feita por Zanotto, as respostas sobre a catedral remetiam a feições políticas, sociais, culturais e simbólicas:


um ponto de vista religioso (“lugar sagrado” – ex. Paola, 14 anos), político (“A Catedral é sinal de uma capital de progresso” – Geraldo, 71 anos), social (“ponto de encontro da cidade” – Tania, 60 anos), cultural (“Centro de religião em Passo Fundo” – Lucas Duarte, 72 anos) e simbólico (“Significa tudo” – Leomar Duarte, 72 anos) (Zanotto, 2011, p. 225).


Dessa maneira, ainda segundo Zanotto (2011, p. 229), essa obra que de início era apenas semióforo[35], passou também a ser patrimônio e, nesse caso, um não invalida o outro. Em suma, a catedral é semióforo e patrimônio ao mesmo tempo.

Para mais, elevada à Arquidiocese em 2011, possui 53 paróquias com abrangência de 47 municípios. Além do mais, apresenta uma atuação social nos mais diversos espaços, beneficiando assim, anualmente (segundo consta no site da Arquidiocese), milhares de pessoas, desde crianças, adolescentes, jovens, adultos e/ou idosos. Dentre esses espaços, pode-se citar três entidades: Cáritas, Lucas Araújo e Leão XIII. Mais um dado considerável e que merece destaque é que segundo o censo de 2010[36], a cidade de Passo Fundo possuía 184.826 pessoas, dentre estas, 144.573 seriam pertencentes à ICAR. Isto é, 78,22% da população passo-fundense em 2010 se declarava católica, número este extremamente significativo. Em vista disso, consegue-se dizer que, até o presente momento, a igreja está intimamente ligada à cidade de Passo Fundo, influenciando direta ou indiretamente na formação cultural e social do município.


Considerações finais


O desejo que nasce do clero e de parte da sociedade passo-fundense em relação à edificação de uma Diocese em Passo Fundo foi abraçado pela ICAR em 1930 e sem demora começaram a ser criados movimentos pró-bispado. Esses movimentos foram instrumentos essenciais para promover eventos e arrecadar fundos em benefício da construção dos pré-requisitos impostos pela Sé Romana. Dentro desses movimentos, destacam-se as mulheres, por serem as principais organizadoras de chás, quermesses e bailes em favor da criação da diocese. Para mais, o uso da mídia impressa foi ferramenta base para tais movimentos, visto que foi a partir dela que se pode divulgar todos os eventos para a população; bem como foi por meio dos periódicos que foram feitos os convites para os eventos e também por meio desses veículos que noticiaram-se alguns dos resultados obtidos nessas festas.

Os 21 anos de processo para a realização desse sonho tão almejado por parte da população de Passo Fundo podem ser explicados fundamentalmente pelas dificuldades financeiras, pois elas fizeram com que as obras ficassem a maior parte do período paradas. Já entre fins da década de 1920 até 1950 houve a ocorrência de dois eventos mundiais que devem ser lembrados: a Crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).  Esses fatos ocasionaram forte abalo na economia global, influenciando também na cidade de Passo Fundo. Ademais, é necessário lembrar que a criação de um bispado fez com que a ICAR passo-fundense se fortalecesse com a entrada de novos fiéis. Contudo, por outro lado, ocorreu um fenômeno inverso: alguns católicos deixaram de o ser.

Hoje, a catedral, símbolo do esforço da cidade de Passo Fundo e região, é ponto de referência. Possui para os passo-fundenses vários significados que vão além do religioso, dado que traz significados político, social, cultural e simbólico. Por fim, destaca-se que, criada em 1951, a diocese que inicialmente contava com 34 paróquias, foi elevada à Arquidiocese no ano de 2011. Portanto, atualmente conta com 53 paróquias e possui uma atuação social em diversos espaços da comunidade.

Referências

  1. É mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF), na linha de pesquisa Cultura e Patrimônio. Graduado no curso de Licenciatura em História pela Universidade de Passo Fundo - UPF. Membro do Núcleo de Estudos de Memória e Cultura - NEMEC (PPGH-UPF), do Laboratório de Estudo das Crenças - LEC (PPGH-UPF) e da Associação Brasileira de História das Religiões - ABHR. E-mail: jonas_blz@hotmail.com.
  2. Utilizar-se-á, essencialmente, o periódico O Nacional, jornal passo-fundense fundado em 1925, disponível para consulta no Arquivo Histórico Regional.
  3. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 683, 30 jul. 1930, p. 2.
  4. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 677, 23 jul.1930, p. 4.
  5. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 682, 29 jul. 1930, p.4.
  6. Ocorreu aos 3 dias do mês de agosto de 1930
  7. A comissão reuniu-se diversas vezes, “mas por causa da iminencia da revolução suspendeu seus trabalhos” Livro Tombo - Paróquia de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Nª 2, p. 29 verso.
  8. Nessa ocasião a Comissão ficou assim formada “- presidentes de honra: deputado dr. Nicolau A. Vergueiro e cel. Innocencio Scheleder, - presidente effectivo: cel. Henrique Scarpellini Ghezzi. - 1º vice-presidente: dr. J. Junqueira Rocha. - 2º vice-presidente: Antonio Pupe Loureiro. - 3º vice-presidente: Luiz Busato. - secretario geral: dr. Lacerda de Almeida Junior. - 1º secretario: Ludovico Della Méa. 2º secretario: Honorio Carvalho. 3º secretario: prof. Emilio Stigler. - thesoureiro geral: P. Carlos Lange - vigario. 1º thesoureiro: major Mario Braga. - 2º thesoureiro: Ernesto Morsch. - 3º thesoureiro: Max Avila. - procurador geral: dr. Mauro Pinheiro Machado. - 1º procurador: dr. Pedro de Moraes Branco. - 2º procurador: Pedro Vargas. - 3º procurador: Frederico C. Carvalho”. (O NACIONAL. Palácio Episcopal. O Nacional, Passo Fundo, nº 687, 04 ago. 1930, p. 3). No decorrer dos anos os integrantes dessa Comissão irão sendo alterados.
  9. Os dois fizeram parte da Comissão Pró-Catedral juntamente com Herculano Trindade, Eduardo Kurtz e Almiro Ilha. (O NACIONAL, Passo Fundo, nº 677, 23 jul. 1930, p. 4).
  10. RUMPEL, Padre Valentin, in: Livro Tombo - Paróquia de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Nª 2, p. 3.
  11. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 702, 22 ago. 1930, p. 2.
  12. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 812, 05 jan. 1931, p. 4.
  13. SCORTEGAGNA, Luiz. [Carta] 17 maio 1931, Santa Maria [para] BECKER, João Batista. Porto Alegre. Criação da Diocese de Passo Fundo.
  14. “Durante a década de 1920, uma das figuras mais influentes da Sociedade Operária era a do advogado João Junqueira Rocha, que inclusive presidiu a entidade diversas vezes.  Aliás, devemos lembrar que Junqueira Rocha se filiaria ao comunismo em 1931 e ao reassumir a presidência da entidade, em 1934, tornaria a entidade um núcleo comunista” (Batistella, 2007, p. 2).
  15. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 5204, 16 nov. 1945, capa.
  16. A LUTA, Passo Fundo, nº 2, 16 maio 1931, p. 2.
  17. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 3298, 17 maio 1939, p. 2.
  18. Para se tornar um construtor dever-se-ia fazer uma doação no valor de um conto de réis. “Os nomes dos assinantes, depois da realização do pagamento, serão gravados em mármore na entrada da futura Catedral” (O NACIONAL, 24 maio 1939, p. 4). Percebemos a inexistência desta placa de mármore, acima mencionada, na Catedral Metropolitana de Passo Fundo.
  19. O NACIONAL, O Nacional, Passo Fundo, nº 3303, 24 maio 1939, p. 4.
  20. O NACIONAL, O Nacional, Passo Fundo, nº 3683, 12 set. 1940, p. 3.
  21. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 2211, 23 set. 1935.
  22. REIS, Dom Antônio, in Livro Tombo - Paróquia de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Nª 2, p. 73.
  23. Passo Fundo, Carazinho, Getúlio Vargas, Erechim, Soledade, Sarandi, Iraí e Marcelino Ramos.
  24. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 2476, 12 ago. 1936, p. 4.
  25. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 6017, 18 ago. 1948, capa.
  26. REIS, Dom Antônio. Portaria de 19 maio 1948.
  27. Segundo consta no Código do Direito Canônico “Cân. 1217 – 1. Concluída devidamente a construção, a nova igreja seja quanto antes dedicada, ou pelo menos benzida, observando-se as leis da sagrada liturgia” (2007, p. 211).
  28. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 6308, 12 set. 1949, capa.
  29. BERTOLDO, Monsenhor Achiles Luiz, in: Livro Tombo - Paróquia de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Nª 2, p. 97. Bertoldo foi chanceler do bispado de Dom Antônio Reis.
  30. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 6495, 29 abr. 1950, capa.
  31. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 6480, 12 abr. 1950, p. 3.
  32. O NACIONAL, Passo Fundo, nº 6574, 07 ago. 1950, capa.
  33. COLLING, Cláudio. [Carta] 26 jul. 1951, Passo Fundo [para] CHIARLO, Carlo. Rio de Janeiro: Núncio Apostólico do Brasil. Solicitação de honrarias a Ernesto Morsch e José Canessa.
  34. Para Manoel, “Os leigos subordinados ao comando do clero, eram convocados a trabalhar e a combater pela causa da Igreja católica. Isso ocorria em virtude de a organização da instituição católica ser hierárquica. Essa estrutura eclesial era também administrativa, de modo que todo o trâmite burocrático e de tomada de decisões seguia a sequência piramidal, das organizações paroquiais até o comando centralizado” (2008, p. 57).
  35. Zanotto (2011, p. 221) concebe o conceito de semióforo seguindo Chauí, que o considera como “algo retirado do circuito do uso ordinário, sem utilidade imediata no dia-a-dia, mas um objeto provido da capacidade de articular o visível e o invisível imbricando-se a outras noções de tempo e espaço e que, essencialmente, estão expostos ou são públicos”.
  36. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no último censo (2010), Passo Fundo contava com 184.826. O mesmo órgão traz o dado de população estimada para 2019: 203.275 habitantes.