ART DÉCO E CENTRALIDADE URBANA
ART DÉCO E CENTRALIDADE URBANA
Em 31/10/2019, por Pedro Henrique Carretta Diniz e Caliane Christie Oliveira de Almeida
ART DÉCO E CENTRALIDADE URBANA: os impactos do crescimento socioespacial e da atividade publicitária no patrimônio moderno de Passo Fundo
Pedro Henrique Carretta Diniz[1]
Caliane Christie Oliveira de Almeida[2]
Resumo: Esse artigo insere-se na temática dos impactos do crescimento socioespacial e das mudanças de uso nas edificações com características Art Déco localizadas na centralidade urbana da cidade de Passo Fundo, mais precisamente dos prédios implantados nas Ruas Paissandu, Moron e Avenida Brasil, no trecho entre as Ruas Coronel Chicuta e Tiradentes. Nesse sentido, o objetivo desse trabalho foi registrar, mapear e analisar o repertório Art Déco da referida cidade entre as décadas de 1930 e 1960. Mais especificamente, objetivou-se identificar quais foram as mais significativas alterações que o crescimento da cidade e as mudanças de uso ocasionaram nesses exemplares ao longo dos anos. A identificação das edificações abordadas foi realizada por meio de análises bibliográficas e deslocamento peatonal. Pôde-se perceber que parte dos prédios registrados se apresentam comprometidos em algum aspecto, seja em relação ao seu estado de conservação ou pela anexação de anúncios publicitários demasiadamente grandes, comprometendo a visualização de grande parte da volumetria e modificando significativamente a percepção da identidade arquitetônica. Sendo assim, acredita-se que o presente trabalho possa contribuir com as discussões nesse campo e incentivar a valorização dessas edificações e a outorga de legislação patrimonial que promova sua preservação no contexto municipal.
Palavras-chave: Art Déco. Mudanças de uso. Crescimento socioespacial.
Linhas introdutórias
As edificações de valor histórico/cultural possuem grande importância na sociedade e sua preservação pode ajudar a garantir, não só a identidade local, como também a oportunidade das futuras gerações de vivenciar e valorizar construções com características arquitetônicas que já não estão mais em voga. Em muitos casos, pode-se dizer que o patrimônio arquitetônico das cidades se conforma como testemunho edificado do contexto histórico, cultural, social e econômico em que foram inseridos.
Salvador (2012) considera o Art Déco como um dos repertórios arquitetônicos que merecem ser valorizados e incorporados ao entendimento da história da cidade. Já Pinheiro (2008), ao analisar o processo de verticalização da cidade de São Paulo entre os anos de 1930 e 1940, aponta o referido léxico como uma das manifestações arquitetônicas mais facilmente reconhecíveis e menos estudadas na capital paulista. Ademais, Correia (2010) demonstra que, no contexto carioca, o Art Déco pode ser observado em projetos que buscavam expressar a modernidade, sobremaneira na primeira metade do século XX. Entretanto, o processo de difusão e apropriação do léxico Déco no Brasil, em especial na região Sul, ainda merece ser aprofundado. É pautada nesse aspecto que a presente pesquisa se justifica e é contextualizada.
No que tange o aspecto da problemática atual das edificações Art Déco de Passo Fundo, cidade localizada ao noroeste do estado do Rio Grande do Sul (Figura 1), encontra-se o seguinte cenário: inúmeros exemplares com essa referência arquitetônica estão implantados na sua malha urbana, especialmente na região central, que hoje apresenta-se verticalizada e com grande diversidade de usos, como comércios, serviços e construções de caráter misto e multifamiliar. No entanto, as edificações pertencentes ao léxico arquitetônico mencionado encontram-se, em suma, fadadas à descaracterização e à perda de identidade, ambas provenientes da falta de interesse, discussão e normatização acerca de questões relacionadas à salvaguarda dos prédios de valor histórico da cidade.
Desse modo, o objetivo desse artigo é registrar, mapear e analisar o repertório arquitetônico com características Art Déco na centralidade urbana de Passo Fundo/RS, diante do contexto de transformações socioespaciais e modernização da cidade entre as décadas de 1930 e 1960. Mais especificamente, objetiva-se identificar as mais significativas alterações ocasionadas pelas das mudanças de uso dessas edificações ocorridas ao longo dos anos.
O recorte espacial considerado está compreendido entre as Avenida Brasil e Ruas Moron, Paissandu, Coronel Chicuta e Tiradentes (Figura 2). Trata-se de uma região composta por 14 quadras que abrangem o centro tradicional da cidade e é onde a maior parte dos casarões Art Déco se encontra. Tal recorte se justifica diante das rápidas modificações e/ou alterações urbanas impostas pela especulação imobiliária na localidade, as quais influenciam diretamente na salvaguarda do patrimônio moderno ali existente.
Quanto aos procedimentos metodológicos, essa pesquisa foi dividida em duas etapas principais: revisão bibliográfica e levantamento iconográfico in loco. A identificação das edificações Art Déco abordadas foi realizada por meio de deslocamento peatonal e complementada pela análise bibliográfica de trabalhos da área de arquitetura e urbanismo realizados em Passo Fundo, representados, essencialmente, por Gosch (2000), Kramer e Waihrich (2007), Diniz e Almeida (2017), bem como pelo Estudo para Tombamento de Patrimônio Arquitetônico, Histórico e Paisagem de Passo Fundo (2012), promovido pelo curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Passo Fundo (UPF). Em seguida, fez-se o registro fotográfico de cada um dos 18 prédios identificados para auxiliar no mapeamento e nas análises arquitetônicas empreendidas.
Assim, registrando, mapeando e analisando as edificações que remetem ao léxico Déco em Passo Fundo, pretende-se contribuir com as discussões nesse campo no âmbito do grupo de pesquisa Teoria e História da Habitação e da Cidade (THAC – IMED), assim como incentivar a valorização dessas edificações e a elaboração e outorga de legislação patrimonial que promova sua preservação no contexto municipal.
O Movimento Art Déco: gênese e características
Em linhas gerais, o Art Déco surgiu nas primeiras décadas do século XX como uma expressão artística na Europa, que se contrapunha aos excessos da Art Nouveau e que se dissipou pelo continente americano ao longo das décadas subsequentes. Os primeiros registros dessa vertente artística foram evidenciados em Paris, no ano de 1925, durante a Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes (Pisseti; Souza, 2011).
Segundo Mallgrave (2005), as referidas expressões artísticas puderam ser percebidas em móveis, estamparias, tapeçarias, cerâmicas, vidros, joias, esculturas, luminárias, entre outros objetos de decoração que derivaram, sobretudo, do cubismo decorativo francês, da Bauhaus alemã, do Futurismo italiano e do Construtivismo russo.
Ressalta-se que a simplificação ornamental é uma das principais marcas do léxico Déco. Ademais, inclui-se aos elementos característicos desse movimento referências à máquina, à fauna e à flora, assim como o geometrismo, por meio do uso de prismas ortogonais, escalonamento e sobreposição de planos nas fachadas (Correia, 2008).
O Déco pode ser percebido em edifícios que traziam um novo e moderno conceito de consumo à época, a exemplo das lojas de departamentos, postos de gasolina, cinemas, clubes, pavilhões de exposições e fábricas. Logo, tratavam-se de prédios que propagavam novas formas de cultura e lazer e que, além disso, refletiam as inovações do ramo da produção e modernizavam o modo de viver e de morar nas cidades (Correia, 2008; Diniz; Almeida, 2017; Reis, 2014).
Em se tratando da América Latina, o movimento Déco pode ser considerado um período de transição entre os princípios das escolas de Belas Artes e o racionalismo da nova arquitetura que estava surgindo, praticamente eliminando os vínculos classicistas e a linguagem historicista, mas mantendo elementos como simetria e utilização de ornamentos decorativos aplicados, mesmo que simples. Nesse sentido, salienta-se que a arquitetura Art Déco latino-americana ganhou grande popularidade devido a sua abrangência, uma vez que ela foi bem aceita pela classe média daquele período, fato que resultou em uma expressão mais sóbria, que conta com menos recursos econômicos e materiais (Venturini; Lima, 2009).
No Brasil, conforme os estudos de Correia (2008) e Diniz e Almeida (2017), pode-se categorizar a arquitetura Art Déco a partir de duas principais vertentes: ZigZag Modern e Streamlined. A primeira possuía maior proximidade com o racionalismo modernista, apresentando linhas e ângulos retos encontrados em elementos escalonados e/ou em ziguezague. A segunda, por sua vez, era caracterizada por elementos mais arredondados, representados por linhas aerodinâmicas muitas vezes utilizadas em platibandas, sacadas e na marcação de esquinas (Figuras 3 e 4).
Acima, casa localizada no cruzamento entre as ruas Bento Gonçalves e Uruguai;
Abaixo, casa localizada na Rua Dr. Vergueiro, na Vila Rodrigues;
Para mais, sabe-se que as máquinas, os trens e os navios foram importantes fontes de inspiração para a linguagem Art Déco, representadas em vãos circulares, volumes arredondados, ornamentos em formas de engrenagens e peças de motores e mastros dispostos na fachada principal (Conde; Almada, 2000; Correia, 2010). Além disso, vale mencionar que da arquitetura de Beux-Arts foram emprestadas as regras de simetria, axialidade e hierarquia na distribuição da planta, expressas por meio da ênfase no acesso principal e nas fachadas (Correia, 2008; 2010).
Correia (2010) descreve que o Art Déco também marcou significativamente o cenário das cidades brasileiras, principalmente entre as décadas de 1930 e 1940, afirmando-se como expressão de modernidade à época. Exemplo disso foram os primeiros arranha-céus que marcaram o processo de verticalização de diversas capitais brasileiras, em especial São Paulo e Rio de Janeiro, condição sine qua non para a consolidação destas como metrópoles nacionais.
Observando por outro viés, a autora também destaca a falta de valorização de produções arquitetônicas que incorporam tendências Déco no país, aspecto extremamente paradoxo à grande quantidade de exemplares no cenário urbanístico brasileiro. Ademais, é importante ressaltar que existem algumas restrições para o uso desse termo ao designar um período arquitetônico com características comuns, uma vez que os prédios vinculados a essa tipologia possuem, em sua grande maioria, aspectos derivados do neoclassicismo, ecletismo, modernismo e até da arquitetura do período colonial (Correia, 2008; 2010).
Já na região Sul do Brasil, segundo Conde e Almada (2000), a arquitetura Art Déco encontrou grande expressão devido aos inúmeros arquitetos imigrados, sobretudo da Alemanha, que se instalaram e trabalharam na região. Para Kümmel (2013), assim como no Uruguai, o léxico Déco no Rio Grande do Sul sofreu forte influência da geometrização e da verticalização norte-americana. Contudo, foi a partir da realização da Exposição do Centenário Farroupilha, no ano de 1935, em Porto Alegre, que o Art Déco passou a figurar com mais representatividade no cenário urbano de cidades do estado, a exemplo de Passo Fundo, onde esse estudo foi realizado.
De acordo com Segawa (2014), a Exposição do Centenário da Farroupilha (1935) transformou o antigo Campo da Redenção, projeto do urbanista francês Alfred Agache, no Parque Farroupilha, um dos mais importantes da capital do estado, localizado no centro da cidade[3]. Nele, foram montados diversos pavilhões temáticos para a exposição de produtos agrícolas e industriais, organizada por Christiano de la Paix Gelbert. A exposição contou com representantes da indústria estrangeira, de empresas ferroviárias e dispunha de espaços destinados a cinemas, cafés, bares e restaurantes de diferentes localidades do Brasil. Pelo caráter efêmero dessas obras, as construções e decorações eram conduzidas por soluções simplificadas. Com exceção do pavilhão do estado do Pará, construído em alvenaria e com referências marajoaras, os demais eram estruturados de madeira com fechamento em estuque e o “despojamento ou arrojo ornamental subordinava-se ao sistema construtivo empregado, e o Déco confluía para uma solução formal menos rebuscada” (Segawa, 2014, p. 62).
A exposição, além de rememorar os fatos históricos referentes ao levante armado dos Farrapos contra o governo central, objetivava impulsionar a produção agrícola e industrial local. Além disso, tratava-se de uma “[...] primeira tentativa [no Rio Grande do Sul] de produzir um conjunto de edificações baseado em vocabulário arquitetônico de estética nitidamente modernizante”, já que os pavilhões foram inspirados nas exposições internacionais dos anos de 1920 e 1930 (FROTA; CAIXETA, 2009, p. 4). Nesse contexto, em muitas cidades do interior do estado, a exemplo de Passo Fundo, arquitetos, engenheiros e administradores públicos passaram a incorporar a estética das edificações da Exposição de 1935 para também modernizar suas cidades, como será visto a seguir.
O surgimento e a popularização da arquitetura Art Déco em Passo Fundo
No que tange os aspectos demográficos, atualmente Passo Fundo corresponde à décima-segunda maior cidade do estado do Rio Grande do Sul, com uma população de cerca de 200.000 habitantes (IBGE, 2018), sendo caracterizada como de porte médio graças aos tipos de relações horizontais e verticais que apresenta (Ferretto, 2012).
Em se tratando das relações verticais, aquelas voltadas ao exterior do Brasil, destacam-se o agronegócio e a indústria alimentícia, que formam na cidade um complexo agroindustrial, de ensino e de pesquisa voltada a esse setor. Acerca das relações horizontais, ou seja, as relações com as cidades da região, os serviços de saúde, educação e comércio configuram-se como os principais fatores que atraem de pessoas. Eles são responsáveis por fluxos populacionais intensos, pendulares e diários entre os municípios do noroeste gaúcho. A região em questão é conformada, essencialmente, por Erechim, Ijuí, Santo Ângelo, Santa Rosa, Cruz Alta, Carazinho, Panambi, Marau, São Luiz Gonzaga, Palmeira das Missões, Soledade, Frederico Westphalen, Três Passos e Três de Maio (Ferretto, 2012).
Apesar dessa representatividade regional/estadual, em se tratando dos estudos socioespaciais e referências arquitetônicas, Passo Fundo ainda é tida como um território pouco explorado. Visto que a historiografia local se deteve, primordialmente, em analisar os processos de ocupação do seu território e a influência europeia nesse contexto.
Ferretto (2012) classifica o desenvolvimento urbanístico de Passo Fundo em três períodos. Esses períodos compreendem uma linha do tempo que começa com a expansão paulatina das ocupações ao longo da Estrada das Tropas, que fazia ligação do povoado com o resto do país, em 1827. Essa estrada foi estratégica para a passagem dos tropeiros rumo a São Paulo e hoje em dia se transformou na maior via arterial da cidade, a Avenida Brasil. Ali encontram-se os principais estabelecimentos comerciais e de serviço, bem como o primeiro Shopping Center da região.
O segundo marco nessa linha do tempo, de acordo com o referido autor, se dá a partir de 1898, com a construção da Estação Ferroviária de Passo Fundo. Atualmente, esse complexo ferroviário está tombado pela Lei Municipal n.º 2.6714/1991 e seu entorno recebeu uma requalificação, proporcionando novos usos ao local que se encontrava parcialmente abandonado, transformando-o no maior parque de lazer da cidade (Ferretto, 2012).
A última das três fases corresponde a meados do século XX, momento em que ocorreu uma expansão horizontal considerável da malha urbana passo-fundense a partir, entre outros aspectos, da criação de loteamentos periféricos, como a Vila Santa Marta e o Parque Farroupilha (Ferretto, 2012). Foi nesse contexto histórico que, a exemplo do que estava acontecendo nos grandes centros brasileiros como São Paulo e Rio de Janeiro, bem como na Europa e América do Norte, começou-se a construir e disseminar a arquitetura Déco em Passo Fundo. Assim, muitos prédios para diferentes usos foram edificados e a maioria deles ainda podem ser encontrados no centro tradicional da cidade.
O primeiro edifício Déco em Passo Fundo foi concebido no contexto de verticalização da área central e é considerado o primeiro prédio de apartamentos da cidade. Trata-se do Edifício Lângaro, localizado na esquina das avenidas General Netto e Brasil, concebido pelo projetista Annito Petry no ano de 1942 (Figuras 5 e 6). Levantamentos pretéritos revelam que Passo Fundo chegou a comportar mais de 200 edificações com referência Déco ao longo das décadas de 1930 a 1960. Contudo, vale registrar que boa parte deste conjunto já sofreu significativas alterações ou mesmo descaracterizações pelo uso comercial (Diniz; Almeida, 2017).
À direita, o Edifício Lângaro durante sua construção (1942); à esquerda, o mesmo edifício atualmente (2018);
Apesar do repertório de arquitetura Art Déco passo-fundense ser significativo, as edificações que remetem a esse movimento ainda são pouco analisadas sob o viés preservacionista. Estudos mais específicos merecem ser desenvolvidos nesse sentido, seja sob o enfoque da conservação do patrimônio arquitetônico da modernização e/ou industrialização da cidade, seja a partir do eixo central de discussão sobre as práticas de reuso e/ou a valorização de diferentes referências arquitetônicas na cidade.
Em relação à centralidade urbana de Passo Fundo, onde esse estudo foi desenvolvido, Ferretto (2012, p. 88) afirma que “no início do século XX, o centro da cidade se desenvolvia entre a estação ferroviária e a Avenida Brasil, sendo a Avenida General Netto o principal eixo de conexão. O autor completa que outras ruas já se destacavam naquele período, tais como a Rua Bento Gonçalves, Rua Moron, Rua Independência, Rua Capitão Eleutério e Rua General Canabarro, nas quais se localizavam os mais tradicionais estabelecimentos comerciais da cidade nas primeiras décadas do século XX. Por outro lado, também se salienta o uso residencial da área central naquele período, quando antigos casarios eram ocupados pelas famílias tradicionais da cidade, “compostas por proprietários de terras, comerciantes e profissionais liberais. Essa elite morava, trabalhava e se sociabilizava no centro da cidade, frequentando os clubes, cafés e cinemas” (Ferretto, 2012, p. 91).
Para além, Machado e Miranda (2005, p. 49) apontam que a primeira metade do século XX pode ser lembrada como “a época em que a cidade encontrou a sua modernidade”. As ruas ganharam iluminação por lâmpadas elétricas que substituíram os lampiões a querosene, houve a ampliação da rede telefônica, a construção do primeiro banco, cinemas (Figura 7), entre outros movimentos que mudaram a paisagem urbana, como a construção de hotéis e a inauguração do prédio da Intendência Municipal.
Foto noturna do Cine Teatro Coliseu em 1937;
Pode-se notar algumas características arquitetônicas que remetem ao Art Déco presentes na hierarquia de acesso da fachada do Cine Coliseu, assim como na simetria da distribuição das aberturas e ornamentos e na presença de elementos escalonados, principalmente na platibanda. Em relação à categorização dessa edificação, que possuía grande importância cultural para Passo Fundo à época (décadas de 1930-1940), pode-se afirmar que os aspectos supramencionados a caracterizavam como um exemplar Déco de vertente ZigZagModern. Segundo Lech et al. (1999), o Cine Coliseu foi destruído por um incêndio, onde mais tarde foi erguido o Cine Real, que também possuía aspectos referentes ao léxico Déco.
De maneira geral, afirma-se que ao longo da primeira metade do século XX ocorreram grandes e importantes transformações no espaço urbano passo-fundense, dando início ao processo de verticalização da área central da cidade. Esse processo foi marcado pela edificação do referido Edifício Lângaro (1942), que precedeu a construção de uma série de outros prédios Art Déco que ajudaram a modificar a paisagem urbana de Passo Fundo e que constituem, até os dias de hoje, marcos referenciais no imaginário coletivo.
A expressividade do Art Déco na centralidade urbana de Passo Fundo
Atualmente, o recorte espacial desse estudo se caracteriza por ser uma área de grande densidade e predomínio de uso misto do solo, ocupada principalmente por pontos comerciais, de serviço e residências, manifestando expressões de heterogeneidade e pluralidade. Na centralidade urbana, o Art Déco se apresenta em edifícios de uso variados, sobretudo, comerciais e institucionais, que originalmente comportavam grandes e suntuosas residências pertencentes à população mais abastada da primeira metade do século XX. Essas edificações encontram-se situadas em vias predominantemente movimentadas (arteriais e coletoras), possuindo uma dinâmica de mobilidade mais complexa em relação ao observado em outras localidades da cidade.
Como visto anteriormente, as análises dessa pesquisa estão delimitadas pelas 14 quadras localizadas na Rua Paissandu, Avenida Brasil e Rua Moron, entre as Ruas Coronel Chicuta e Tiradentes. Desse modo, vale mencionar que, conforme o mapeamento realizado, oito edificações estão implantadas na Rua Paissandu (33,3%), sendo uma delas de esquina com a Rua Tiradentes; quatro edificações estão implantadas na Avenida Brasil (22,2%); e oito encontram-se na Rua Moron (44,4%), sendo uma delas de esquina com a Rua Coronel Chicuta e outra de esquina com a Rua Tiradentes (Figura 8).
No que diz respeito à questão patrimonial, Passo Fundo possui legislação específica regulamentada pela Lei nº 2.997, de 1995, que dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico-cultural, paisagístico e natural do município. As ações de salvaguarda ocorrem com a inscrição dos bens de natureza material em livro do tombo, conforme o Decreto nº 134/2013. Atualmente, a lista de bens tombados não compreende edificações com referências à arquitetura moderna, ficando toda a produção Déco relegada ao esquecimento e/ou abandono. Desse modo, o repertório analisado nessa pesquisa encontra-se fadado às mais variadas formas de descaracterização, promovidas pelo crescimento urbano, pelas mudanças de uso e pela falta de educação patrimonial da população.
Salienta-se que a importância da conservação do patrimônio material existe na lógica de preservar as características originais da edificação, não permitindo, desse modo, que ela se descaracterize em virtude das transformações urbanas do meio em que estão inseridas. Todavia, como colocado por Salvador (2012), as alterações que não descaracterizam a edificação são benéficas, pois garantem a manutenção e a atuação ativa delas nas cidades e, consequentemente, o uso e a manutenção de sua memória.
É importante ressaltar que apenas o reconhecimento do valor histórico de edificações não garante sua preservação. Faz-se necessária uma legislação regulamentadora em prol da salvaguarda desses testemunhos históricos. No caso de Passo Fundo, as transformações socioespaciais e as mudanças de uso dos prédios Art Déco analisados, principalmente do uso residencial para o comercial, podem comprometer significativamente suas características arquitetônicas. O levantamento fotográfico dessas edificações (Figura 9) apresenta-se, assim, como um primeiro passo para a proteção desses bens edificados, com o intuito de contribuir para o reconhecimento de seu valor histórico-cultural para a cidade.
Como dito anteriormente, o reuso pode ser considerado uma das mais eficientes formas de preservação do patrimônio edificado, pois permite que as edificações se mantenham vivas na paisagem das cidades e no convívio da sociedade. Entretanto, as mudanças de uso sem critérios estabelecidos e normatizados acarretam, muitas vezes, na descaracterização.
No caso de Passo Fundo, das 18 edificações levantadas, apenas uma delas ainda preserva seu uso original (residencial). Todas as outras passaram a abrigar estabelecimentos comerciais, de serviço ou apresentam uso misto (térreo comercial e demais andares residenciais). Diniz e Almeida (2017) demonstram que o uso comercial/serviço atribuído com o passar dos anos às edificações Art Déco da cidade exerce grande influência na descaracterização dessas edificações. Segundo eles:
[...] o valor histórico, arquitetônico e artístico deste montante de edificações está sendo negligenciado pela municipalidade e pela população, que não consciente do seu valor, não mobiliza esforços para a sua preservação. Estando o repertório Déco passo-fundense relegado aos interesses da iniciativa privada e fadado ao desaparecimento. Neste contexto, vale ressaltar que não há nenhum projeto de Lei Municipal que padronize letreiros, propagandas, outdoors, cores ou revestimentos para incentivar o resguardo das características arquitetônicas destas construções (Diniz; Almeida, 2017, p. 8).
Nesse trabalho foram elencadas, dentre as 18 registradas, três edificações para a realização de análises mais detalhadas. Portanto, ao se analisar a situação atual de todos os exemplares estudados, escolheu-se àqueles Art Déco que apresentaram o maior grau de descaracterização promovido pelas transformações socioespaciais e pelas mudanças de usos. São os prédios de nº 07, nº 11 e nº 12 (Figura 10):
Edificação nº 7: localizada na esquina da Rua Moron com a Rua Fagundes dos Reis, essa edificação Art Déco com referências Streamlined pode ser considerada uma das mais problemáticas dentre as analisadas nesse estudo. Seu uso original (residencial) foi totalmente modificado para abrigar um estabelecimento comercial especializado em venda de açaí. Nesse sentido, mais de 70% da edificação foi coberta com as cores da marca, foram anexados às fachadas grandes painéis de madeira com vegetações e letreiros e, além disso, a maior parte das esquadrias originais foram substituídas por vidros fixos, havendo quebra da estrutura original da fachada para abertura de vãos maiores.
Edificação nº 11: esse prédio está localizado na Avenida Brasil, onde milhares de pessoas transitam por dia. Pode-se notar que seu uso original era de caráter misto, sendo comercial no pavimento térreo e residencial no segundo, fato que se mantém até a atualidade com uma loja de confecções, um bazar e uma residência unifamiliar. Assim como no exemplo anterior, essa edificação se enquadra como Art Déco, mas com influências que remetem, essencialmente, ao zigzag modern devido as suas linhas mais retas e aos elementos escalonados. Quanto ao seu grau de conservação na envoltória, percebe-se uma fachada com reboco e pintura deteriorados, anexação de aparelho de ar-condicionado e esquadrias em madeira com diferentes colorações. As atividades publicitárias no primeiro pavimento possuem cores destoantes do restante do edifício, além da utilização dos anúncios que, por sua vez, estão despadronizados e cobrindo demasiadamente a fachada frontal.
Edificação nº 12: assim como no caso anterior, esse prédio, conhecido como Edifício Berta, está localizado na Avenida Brasil e possuía, originalmente, uso misto: comercial no pavimento térreo e residencial no segundo pavimento. Atualmente, essa construção abriga duas salas comerciais, sendo uma loja de roupas e acessórios e outra de eletrodomésticos. No segundo andar, por sua vez, o uso é metade residencial e metade de serviço. Esse exemplar Art Déco também possui referências que remetem ao zigzag modern devido ao escalonamento de sua platibanda e sua linguagem mais ortogonal. Em virtude dos diferentes usos que esse prédio possuiu durante os anos, percebe-se a utilização de materiais de revestimento destoantes entre o embasamento e a parte superior, assim como entre o lado esquerdo e direto da fachada principal. Além disso, nota-se a anexação de anúncios publicitários despadronizados e que cobrem demasiadamente a fachada, em especial na loja de eletrodomésticos, onde o anúncio “esconde” duas sacadas com cantos arredondados, típicas do movimento Déco.
Analisando por este viés, Diniz e Almeida (2012) trazem exemplos de legislações municipais que já foram outorgadas e que apresentaram resultados satisfatórios em relação à preservação das edificações históricas sob o aspecto da ação desregulada da publicidade inerente aos estabelecimentos comerciais e de serviço. A primeira delas é da cidade de São Paulo (Lei nº 14.223/06), que dita regras para a colocação de anúncios indicativos nas fachadas dos imóveis públicos e privados, dando tratamento especial para as edificações com valor histórico. Desde que a lei entrou em vigor, ficou determinando que todos os estabelecimentos comerciais e de serviço devem possuir, no máximo, dois anúncios padronizados, dependendo da extensão da fachada. Para prédios considerados de pequeno porte, com testada de até 10 metros, o anúncio não pode ter uma área maior que 1,5 m². Esse valor aumenta proporcionalmente com o edifício, sendo que, em último caso, o dono do estabelecimento pode recorrer a dois anúncios caso a testada deste seja superior a 100 m lineares. Além disso, ficou proibido instalar qualquer tipo de anúncio publicitário que oblitere, de qualquer maneira, a visibilidade de bens tombados, prejudique a edificação em que estiver instalado ou as edificações vizinhas, bem como que comprometa a insolação ou a aeração da edificação em que estiver instalado ou a dos imóveis limítrofes (Diniz; Almeida, 2007).
A segunda lei que os autores apresentam foi outorgada em Erechim, um município da região do Alto Uruguai, localizado aproximadamente a 75 km de distância de Passo Fundo, e apresenta aspectos comuns à legislação paulista. A Lei municipal “Erechim, Cidade Limpa” (Lei nº 6.093/15), de 2015, tornou-se um instrumento importante no processo de requalificação do centro comercial e histórico do município. De modo geral, conforme o mencionado documento, todo anúncio indicativo em edificações de cunho comercial deve observar, entre outros, o seguinte critério básico: não prejudicar a integridade nem a visualização das edificações, principalmente as de valor histórico e cultural. Além disso, essa normatização ainda proibiu qualquer tipo de adesivo colado sobre as vitrines de edificações históricas. Banners e outros anúncios de mesma natureza só são permitidos no interior do estabelecimento, a no mínimo 1 m de distância da vitrine. Por fim, adesivos em fachadas não históricas deverão igualmente passar por análise do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, o COMPHAC, quanto a sua permissividade ou não, caso esses prédios estejam no entorno de edificações de caráter histórico no raio delimitado pelo Plano Diretor Vigente (Diniz; Almeida, 2017).
A terceira e última lei regulamentadora para letreiros publicitários apresentada foi a Lei n° 5.871/14, da Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves, localizada na região serrana do estado do Rio Grande do Sul, a aproximadamente 175 km de Passo Fundo. Nesse caso, também se propôs a padronização das dimensões dos letreiros, placas, outdoor, etc., aos moldes das supramencionadas cidades, nos imóveis que estão inventariados nas fichas patrimoniais da municipalidade (Diniz; Almeida, 2017).
Nesse sentido, percebe-se que o governo possui o poder de ditar as regras pertinentes à normatização de letreiros publicitários e à salvaguarda do patrimônio histórico. Em se falando das construções de caráter Déco na cidade de Passo Fundo, essa é uma das formas mais eficazes de se criar uma cultura de cuidado desse patrimônio, bem como de desenvolver um senso de estética e conforto ambiental perceptível pela maior parte da população.
Considerações Finais
Diante do estudo realizado, pode-se reafirmar que o surgimento da arquitetura com características que remetem ao Art Déco possuiu um papel significativo nos processos de modernização e verticalização das cidades brasileiras, sobremaneira nas capitais. Seguindo essa tendência, nota-se que a influência da arquitetura dos grandes centros urbanos “respingou” nos processos de formação e transformação das cidades de porte médio de meados do século XX em diferentes regiões do país, incluindo a cidade de Passo Fundo. Mais especificamente, identificou-se a referida Exposição do Centenário da Farroupilha (1935) como um importante marco na disseminação do léxico Déco no âmbito do estado do Rio Grande do Sul.
Em Passo Fundo, o Art Déco foi amplamente utilizado em diversas edificações de variados usos e tipologias. Pode-se identificar, até os dias de hoje, antigos clubes, cinemas, residências e edifícios de uso misto que possuem características dessa vertente arquitetônica/artística. Entretanto, essas edificações ainda não são reconhecidas como patrimônios históricos municipais, o que pode acarretar, ao longo do tempo, em sua descaracterização total.
Os exemplos identificados, mapeados e analisados nesse trabalho, assim como todas as outras edificações Art Déco da cidade de Passo Fundo, deveriam ser reconhecidas como importante elemento histórico e, dessa maneira, estarem protegidas pelos órgãos regulamentadores do patrimônio. Destaca-se que elas pertencem a um notório período histórico de expansão da malha urbana, como visto por meio, principalmente, dos textos de Gosch (2000) e Ferretto (2012), época na qual as técnicas construtivas e os materiais utilizados eram diferentes; o movimento arquitetônico que elas representam não está mais em voga, mas estão inseridas em meio a um grande conjunto de edificações similares.
Além disso, verificou-se que parte desses testemunhos históricos se apresentam comprometidos quanto aos seus estados de conservação, tendo reboco, pintura, esquadrias e materiais da fachada degradados e/ou sem restauração alguma. No caso de edificações comerciais ou de serviço, a maioria possui anúncios excessivamente grandes, desproporcionais ou com coloração que compromete grande parte da volumetria, modificando significativamente a percepção da identidade arquitetônica. Ademais, em alguns dos prédios, observou-se alterações estruturais na fachada, como retirada de sacadas, janelas, platibandas ou marquises. Portanto, todos esses fatores tornam esses testemunhos históricos em elementos urbanos fadados ao esquecimento e desaparecimento, pondo em xeque boa parte da história passo-fundense.
Observando por outro viés, acredita-se, sobretudo, no reuso como a forma mais eficaz de preservação do patrimônio histórico, por mais que algumas concepções acerca desse assunto sejam divergentes. O problema social e urbano do patrimônio e a forma como o reabilitam-no para sua nova função está filiado à falta de conscientização geral de seus donos, da população que os utiliza e do poder público. Percebe-se em Passo Fundo e em inúmeras outras cidades uma desvalorização da importância histórica e artística dos prédios Art Déco em detrimento ao valor seu econômico; deixando a sua gestão a cargo dos interesses da iniciativa privada.
Por fim, salienta-se que existem modelos de Leis Municipais que podem servir de embasamento para a criação de uma normatização própria para a cidade, a exemplo de São Paulo, no âmbito nacional, e Erechim e Bento Gonçalves, no âmbito estadual, que já estão colhendo os frutos de uma padronização em prol da preservação dos anúncios em seus estabelecimentos, em especial os de importância histórica. A criação de uma Lei Municipal é uma das maneiras mais simples de se padronizar os anúncios e os tratamentos de fachada, muitas vezes submetidos ao gosto popular de pessoas que não possuem qualificação ou habilitação para saber como preservar seus bens. Portanto, cabe aos Arquitetos e Urbanistas, bem como os demais profissionais da construção civil e da publicidade, discutirem formas de se conciliar a salvaguarda das construções históricas com a prática da propaganda, tão presente e necessária nos dias de hoje.
Referências
- ↑ [1] Arquiteto e Urbanista (IMED), mestrado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo da IMED/PF e bolsista PROSUP/CAPES. E-mail: phenriquecd@gmail.com
- ↑ [2] Doutora em Arquitetura e Urbanismo (IAU – USP), coordenadora e docente no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo da IMED/PF. E-mail: caliane.silva@imed.edu.br
- ↑ [3] Até os dias de hoje o Parque Farroupilha é popularmente chamado de “Redenção” pelos moradores da capital gaúcha.