Síntese de um povo

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Síntese de um povo

Em 31/12/2003, por Pedro Ari Veríssimo da Fonseca


Síntese de um povo[1]

Veríssimo da Fonseca


Na Semana Farroupilha não comemoramos a guerra fratricida, nem a coragem e o heroísmo do povo rio-grandense. Nenhuma batalha, seja entre irmãos ou mesmo com inimigos da pátria, deve ser comemorada, no sentido de festejar, mas sim no de memorar em conjunto, pois sempre implica em sacrifício de vidas e sofrimento de um povo. Memoramos em conjunto, sim, a lição de civismo dada pelos nossos ancestrais.

De cada lado, acima de tudo esteve o respeito ao próximo, o civismo entre adversários que pensavam diferente e que lutavam para a grandeza e o aperfeiçoamento das instituições públicas da mesma pátria. Ambas as facções tinham como denominador comum o respeito à pátria.

De 1680 a 1828, isto é, desde a fundação da Colônia do Sacramento até a batalha do Passo do Rosário, com a Argentina, o povo gaúcho lutara pela conquista desse solo, sem interrupção. Nesta batalha, de resultado indeciso, segundo alguns historiadores, foi decidido o fim da luta entre povos irmãos.

O Marquês de Barbacena, comandante do Exército Brasileiro, ordenou o cessar fogo e a retirada, evitando o sacrifício dos soldados brasileiros. Alvear, o grande comandante do Exército Argentino, em melhor situação tática no campo de batalha, também ordenou o cessar fogo e a não perseguição do inimigo em retirada, exausto de tantas lutas. Isso é o que se conclui de Cláudio Moreira Bento, em seu livro: 2002 - os 175 anos da batalha do Passo do Rosário (Porto Alegre: Metrópole, 2003), a última palavra sobre o polêmico tema.

Da decisão desses dois homens, ambos lutando pelo domínio da República Oriental do Uruguai, nasceram o abandono das disputas territoriais e a independência da República Oriental do Uruguai, em 27 de agosto de 1828.

A partir dessa data, nascia uma nova mentalidade entre os povos brasileiro, uruguaio e argentino; e, dentro do Brasil, do povo rio-grandense.

A anexação do Uruguai era uma política do rei do Brasil, não aprovada pelo povo e nem por seus representantes na Câmara dos Deputados, pois o destino uruguaio da área fora definido pela fundação de Montevidéu, em 1727, por crioulos argentinos.

Os comandantes gaúchos brasileiros, com a têmpera forjada em 148 anos de lutas, e preteridos em comandos pelo governo central, voltaram das guerras com o ideal de formar uma república federativa do Brasil; e de não mais aceitar a interferência do governo central em suas decisões, no que dizia respeito aos interesses dos estados.

Poucos anos antes da Independência do Brasil, Saint Hilaire já havia anotado a identidade cultural do povo rio-grandense, ao escrever que o Rio Grande do Sul era um verdadeiro acampamento em armas; e que no povo não se encontravam os traços de mansidão e de humildade das demais províncias. Impressionou-se com a independência da mulher no lar e na sociedade, coisas que também não havia nos habitantes das demais províncias do Brasil. Saint Hilaire nos deixou a convicção de que, antes da batalha do Passo do Rosário, a identidade cultural dos gaúchos brasileiros, uruguaios e argentinos estava definida.

E todos os demais viajantes estrangeiros que por aqui passaram anotaram a mesma coisa. Todos eles descreveram, com traços fortes, o tipo social gaúcho, único no mundo. E não só os estrangeiros. Dyonísio Cerqueira, anos depois, na guerra do Paraguai, extasiou-se diante do garbo do batalhão dos gaúchos. Negar a identidade cultural de hoje com o gaúcho de ontem, e afirmar que o gaúcho é um mito, é desconhecer as descrições que dele fizeram diferentes e insuspeitos cronistas da época. É pura opinião pessoal, sem embasamento histórico-social.

A Revolução Farroupilha sintetizou o caráter do povo rio-grandense em busca da democracia, nos primórdios da formação da nossa Pátria. Exemplo de civismo, na luta pelo ideal federativo democrático, não concluído.

Ainda hoje estamos lutando politicamente pelos mesmos motivos: a exagerada tributação, a isenção de impostos às custas do erário público estadual para beneficiar a balança comercial do Brasil, acordos internacionais favorecendo os nossos concorrentes, empobrecendo os nossos produtores, e o poder central sobrepondo-se aos interesses estaduais.

No aurorescer das sesmarias, a posse das terras conquistadas à Espanha foi concedida a militares de posse financeira, e capazes de sustentar milícias para a defesa. A consciência de defesa da terra infundiu, no espírito das pessoas mais simples, o amor cívico pelo Brasil. Que fique bem claro: eles lutavam pelo Brasil.

Os comandantes-proprietários, hoje pejorativamente chamados de latifundiários, serviam ao reino. Quem distribuía as sesmarias, em nome do Imperador, eram as cornandâncias militares, encarregadas de garantir a defesa e a posse das terras conquistadas.

Este sistema social-militar é que influenciou na formação do gaúcho e na tradição. Na realidade, o. gaúcho esteve sempre a serviço da Pátria. Todos serviam a uma ou outra milícia, sob o comando de uma autoridade das Milícias, que foram substituídas pela Guarda Nacional. Gaúcho vagabundo? Discordo. Ele, durante toda a idade do couro, foi safrista, como hoje ainda o são os cortadores de cana e os colhedores de café e laranja.

Em 1870, ano em que terminou a Guerra do Paraguai, nasceu o capitão da Guarda Nacional, João Simões Lopes Neto. O menino João criou-se entre os veteranos dessa guerra, ouvindo-lhes os testemunhos do heroísmo e o garbo dos componentes da Guarda Nacional, magistralmente descritos pelo general Dyonísio Cerqueira, em sua obra Reminiscências da Guerra do Paraguai. Conheceu de perto o grande general Osório, laureado em tantas batalhas que, após a guerra, radicou-se em Pelotas, até sua morte, em 1879, no Rio de Janeiro, como Ministro da Guerra.

Quando, em 1892-1895, o Rio Grande do Sul pegou em armas novamente, numa luta fratricida e bárbara, Simões Lopes Neto alistou-se na Guarda Nacional. Após a paz assinada em Pelotas pelos revolucionários, novamente a terra gaúcha foi submetida ao regime da força. Havia ressentimentos do povo gaúcho com o Governo central, e de veteranos e filhos de veteranos da Guerra do Paraguai, contra o bacharelismo dominante na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, em ecorrência do Regulamento de Ensino do Exército, de 1874.

Preocupado com a Educação Cívica do povo, J. Simões Lopes criticou a Guarda Nacional à qual pertencia. Criticou o bacharelismo no Exército Brasileiro imperante, que substituíra o profissionalismo militar. Bacharelismo que se mostrou incapaz de formar homens para a Defesa Nacional. J.Simões Lopes Neto pregava a volta do profissionalismo militar e a formação de reservas para o Exército. Assim lutou pela criação do Tiro de Guerra, em Pelotas (1903), o segundo do Brasil. Foi o seu comandante e formou a primeira turma. Iniciou uma série de conferências sobre Educação Cívica (1904), o que teve grande repercussão, sob o argumento:

"Nenhum povo pode ser grande sem o sentimento de amor a sua Pátria. Nenhuma nação pode ser forte sem se apoiar no amor a ela, dos seus filhos. Por isso, amar a Pátria é o mais sólido elo da nacionalidade e o maior estímulo dos cidadãos."

A pregação de J. Simões Lopes Neto teve seus efeitos. Em 1905, a Escola Militar da Praia Vermelha foi fechada, pondo fim ao bacharelismo militar. No ano seguinte, foi reaberta no local do atual Colégio Militar de Porto Alegre, com o nome Escola de Guerra, voltada para o profissionalismo militar que, no tempo de Cezimbra Jaques, se chamava Escola Preparatória de Tática. Exaltou as tradições cívicas do povo gaúcho, pelo muito que ele lutou para ser brasileiro, e pela qualidade dos comandos aqui existentes. E porque, em função da nossa mais problemática fronteira, tinha que ser na terra gaúcha a primeira escola de guerra do Brasil, aqui, no Rio Grande, segundo escreveu J. Simões Lopes Neto:

" ... onde, a cada passo, em teu chão se acorda um eco, onde cada barranca de teus rios conhecem uma história, onde cada coxilha tua testemunhou um feito histórico, e onde os muros de cada cidade abrigam um acontecimento."

Conviveu com o Príncipe dos Poetas, Olavo Bilac, outro grande patriota batalhador pela criação do serviço militar obrigatório, "para imprimir ao Exército feição com todas as características do povo brasileiro". Olavo Bilac foi financiado em suas campanhas pelo senador Miguel Calmon, casado com a rica pelotense ,Alice da Porciúncula, segundo Pedro Calmon, que conviveu com o casal.

"Assim J. Simões Lopes Neto foi o pioneiro do ensino de Educação Cívica no Rio Grande do Sul e, possivelmente, no Brasil, antes que por ali passasse, dez anos depois, Olavo Bilac, que visitou seu túmulo e sobre ele colocou uma flor, numa reverência muda ao seu pioneirismo em defesa da Educação Cívica."

Olavo Bilac nasceu também em 1865, e faleceu em 1918, dois anos após a morte de seu amigo e contemporâneo, irmão de letras e de civismo, J. Simões Lopes Neto. Este pregou a Educação Cívica "onze anos antes da atuação de Olavo Bilac em defesa da adoção do serviço militar obrigatório, do qual hoje é patrono".

No Casarão da Várzea, antes que ali funcionasse a Escola de Guerra de Por¬to Alegre, lecionava o major Cezimbra Jaques, que foi o primeiro a praticar o culto às tradições gaúchas, razão de sua consagração como patrono do MTG. Ali influenciou outros militares da Escola Militar e civis, e com eles fundou o primeiro centro de culto das tradições gaúchas, com o nome de Centro Gaúcho. Um ano depois, em 20 de setembro de 1899, seu amigo, capitão da Guarda Nacional, J. Simões Lopes Neto, fundou a União Gaúcha em Pelotas, hoje União Gaúcha J. Simões Lopes Neto.

Nos estatutos da União Gaúcha, ele introduziu o seguinte dispositivo:

"A União Cívica se compromete a acompanhar a propaganda, e a agir a bem da criação da Federação dos Tiros Brasileiros."

Entusiasmado com as idéias de Lopes Neto, o marechal Hermes da Fonseca, filho de São Gabriel, empenhou-se na criação da Confederação do Tiro Brasileiro, tão necessário para exercitar jovens para a Defesa Nacional e formar reservas para o Exército, que não dispunha ainda do serviço militar obrigatório.

E foi com esse espírito que J. Simões Lopes Neto escreveu suas imorredouras obras literárias, Contos Gauchescos e Lendas do Sul, onde criou a figura de Blau Nunes, e onde cada conto é um exemplo do civismo gaúcho, do amor à pátria e às tradições do Rio Grande do Sul, de respeito à autoridade constituída.

Após J. Simões Lopes Neto, Olavo Bilac e Cezimbra Jaques, seguiu-se um período de instabilidade política perturbada por um quase permanente estado de sítio, até que um gaúcho da fronteira, encarnação das velhas cepas de caudilhos pampeanos, Getúlio Vargas, assumiu a Presidência do Brasil. Mas a democracia plena com ele não se estabeleceu. Com o Estado Novo, Vargas proibiu o culto às tradições estaduais, a pregação dos feitos de seus heróis e o uso de bandeiras estaduais. A validade dessa medida é discutível. Necessita de um estudo mais aprofundado, pois no Brasil se digladiavam duas ideologias estremadas, o comunismo e o integralismo; e no mundo, o conflito nazifacismo x comunismo, ameaçando a democracia e a liberdade mundial, e exigindo um controle social e político mais efetivo, para o Brasil atravessar unido essa conjuntura, segundo análise do historiador C. Moreira Bento. Com a queda de Vargas, em 1945, foi retomada a democracia no Brasil. Em 1948, surgiu a personalidade do filósofo do Movimento Tradicionalista do Rio Grande do Sul, Luiz Carlos Barbosa Lessa, o qual, juntamente com o gigante das pesquisas dos usos e costumes do gaúcho, J. C. Paixão Cortes, com o suave poeta Glauco Saraiva, e com uma plêiade de estudiosos dos nossos heróicos antepassados, criou o atual Movimento Tradicionalista. Em 1954, Barbosa Lessa submeteu à apreciação o seu trabalho intelectual, O sentido e o valor do tradicionalismo. Até hoje, todos nós seguimos fielmente os ideais desse grande mestre. Com Lessa, O MTG retirou-se dos quartéis onde nasceu, pois fora conquistado o serviço militar obrigatório em 1916. O MTG tornou-se independente e passou a habitar os galpões do Rio Grande, em rodas de fogo de chão, onde o mate-chimarrão tem mais sabor, e onde as portas estão abertas para repouso e abrigo dos andantes.

Nas invernadas das letras postou-se Edson Otto, cria do Rodeio das Águas, de Guilherme Schultz Filho. Cambona sobre as brasas, aquentando a água do mate, cuia numa mão, lápis na outra, papei de embrulho sobre a tampa de uma caixa de latas de querosene, despachava chasques a todos os posteiros do MTG. Anos e anos Edson Otto alimentou o guarda-fogo do galpão, com a chama das letras, faiscando idéias.

Mas ainda faltava uma cabeça a ser coroada pelo MTG. A de um grande historiador, de muitas décadas de batalhas e combates; biógrafo dos nossos heróis; idealizador, criador e presidente do Instituto de História e Tradições, por 16 anos, no sesquicentenário do combate de Seival, que ocorreu em 10 de Setembro. Ele foi criado em campo aberto, temperado com o sal da terra, e nutrido com a seiva que brota do chão. É Cláudio Moreira Bento, de Canguçu, "a magnífica dos cerros", no dizer de Osório Santana Figueiredo, terra onde se desembainhou, na defesa do nosso chão, a maior espada do Rio Grande do Sul, que foi Rafael Pinto Bandeira.

Após tantos anos de silêncio oficial da Secretaria de Educação e do Ministério da Educação, tramita na Assembléia Legislativa o Projeto n° 3112002, de autoria do deputado Manoel Maria, oficializando o ensino da História do Rio Grande do Sul, nas escolas.

Em especial, a vasta obra erudita de Moreira Bento, sobre a história do Rio Grande do Sul, deverá estar em todas as bibliotecas gaúchas, como fonte obrigatória de pesquisa e ensino.

É inaceitável o fato de que a biografia de Cláudio Moreira Bento, o maior biógrafo dos heróis gaúchos, não é ainda exigida nos concursos de Mais Prendada Prenda do MTG. As biografias dos nossos heróis, escritas por ele, estão à disposição no Arquivo Público de Passo Fundo, e muitas outras, no Jornal Tradição, ao tempo do grande tradicionalista Edson Otto. Não existe nenhuma instituição tão democrática quanto o MTG.

Democracia, que foi defendida em nível mundial, com a vida de 21 gaúchos da FEB, é a expressão livre das nossas idéias, cada um das suas, sem conflitos; é a aceitação do contraditório; é o ponto de chegada e o ponto de partida de todas as idéias, e do consenso daí resultante.

Por ser um consenso de idéias, ela não tem ideologia. É dinâmica, e por ser dinâmica, vivendo e se adaptando a cada fase do progresso da humanidade, não se prende nem pode se prender a princípios ideológicos, nem a programas pré-estabelecidos.

É um aprendizado de atualização contínua. A idéia dominante da democracia é não ter idéias, e sim fundamentos a serem estudados e debatidos dentro do contexto atual, respeitando as tradições do povo e dos povos. Democracia é compreender a nossa pátria e a dos outros. É respeitar as diferenças.

A tradição é a raiz que nos prende ao solo, que alimenta a nossa identidade de alma, que nos toma únicos no mundo. É o direito de um povo de ser diferente e respeitar as diferenças. É o somatório dos atos cívicos dos nossos ascendentes, dos atos que hoje praticamos, e do exemplo que deixamos aos nossos descendentes.

A tradição é o valor permanente de um povo, por isso se repete e, ao mesmo tempo, evolui. E, quanto mais um povo evolui, mais cultua suas tradições e mais se afasta de ideologias. Cuida dos atos que praticas hoje, pois é a herança mais preciosa que deixarás aos teus descendentes.

A tradição está para um povo como o perfume está para uma flor. Segundo o filósofo inglês, Chesterton, a tradição é a democracia dos mortos, pois os mortos se sentem eleitores, quando as tradições por eles criadas e respeitadas o são e serão também pelas gerações que os sucederem. Tradição é prática da Educação Cívica.


Referências Bibliográficas

BENTO, c. M. História da 3ª região militar 1807-1889 e antecedentes. Porto Alegre: [s.n.], 1995. v.1, 323 p.

BENTO, C. M. História da 3ª região militar 1889-1953. Porto Alegre: [s.n.], 1995. v.2, 394 p.

BENTO, C. M. O negro e descendentes na sociedade do Rio Grande do Sul (1635-1975). Porto Alegre: Grafosul; Instituto Estadual do Livro, 1976. 288 p. (Biênio da Colonização e Imigração, 5).

BENTO, C. M.; GIORGlS, L. E. C. A educação cívica e o espírito militar na visão do capitão da Guarda Nacional João Simões Lopes Neto (1865-1916). Porto Alegre: Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul; Academia de História Militar Terrestre do Brasil - Delegacia Gen. Rinaldo Pereira da Câmara, 2003. 16 p. (O Gaúcho, 19).

Referências

  1. Publicado na revista Água da Fonte nº 0