Alguns poetas passo-fundenses
Alguns poetas passo-fundenses
Em 30/04/2004, por Paulo Domingos da Silva Monteiro
Alguns poetas passo-fundenses[1]
PAULO MONTEIRO[2]
Durante a Semana das Letras Passo-Fundenses, promovida pela Academia Passo-Fundense de Letras, 7ª Coordenadoria Regional de Educação e Secretaria Municipal de Educação, realizada entre os dias 1º e 7 de abril de 2002, realizei uma palestra, em parte publicada no n° O de Água da Fonte, sob o título Dois romancistas passo-fundenses, analisando os romances de Jurandyr Algarve e Jorge Edeth Cafruni. Com o presente estudo, concluo a publicação do núcleo central daquela dissertação.
Creio que, ao analisar, ainda que rapidamente, alguns dos poetas e romancistas mais conhecidos de Passo Fundo, contribuo para um melhor conhecimento de nossa literatura local. Seguindo uma tradição da historiografia literária iniciada há quase um século por José Veríssimo, e que se mostrou positiva, acredito que o estudo de escritores representativos e aceitos como canônicos, de uma determinada literatura, é suficiente para o entendimento dessa mesma literatura.
Optei por romancistas e poetas já falecidos, pois suas produções literárias estão concluídas, são imexíveis. Todos eles são reconhecidos como integrando o grupo mais representativo dos escritores passo-fundenses, o nosso cânone literário.
A literatura passo-fundense começa com um poeta: Bento Porto da Fontoura, nascido aqui, possivelmente no dia 12 de janeiro de 1840, e falecido no Rio de Janeiro, em 25 de março de 1913. Seu livro de poemas, Flores Incultas, foi publicado em 1875, pela Tipografia Jornal do Comércio, de Porto Alegre. Procurei essa obra entre bibliófilos e bibliotecas, sem êxito. O exemplar existente, que pertenceu a Guilhermino César, desapareceu antes de chegar à Biblioteca Pública do Estado, em Porto Alegre.
A poesia passo-fundense continuará com Francisco Antonino Xavier e Oliveira, que também nasceu aqui, no dia 5 de setembro de 1876, vivendo até 9 de julho de 1959. Foi um dos fundadores do Grêmio Passo-Fundense de Letras e é conhecido como nosso primeiro historiador local. Cognominado "o pai da história de Passo Fundo", deixou vários livros sobre a formação histórica do antigo município e de sua área urbana.
Antonino inicia seu livro Pelo Passado (Oficinas da Livraria ABC, Passo Fundo, 1922), com uma série de seis quadras:
Lá de traz daquele serro
se levanta uma fumaça,
contando que João dOutrora
já vem perto desta praça.
Traz ele bem afinada
a viola do tempo antigo,
com a qual, quando era moço,
não temeu nenhum perigo.
Abra cancha, minha gente;
que não haja tropelia.
João dOutrora só pretende
liquidar um arrelia.
Foi pealado de surpresa
quando passava na estrada,
agora vem ver se é certo
que acabou-se a gauchada.
O guiso de cascavel
já treme dentro do pinho,
ansiando pela porfia
de daqui a bocadinho.
Abra cancha, minha gente,
ue é de paz o João dOutrora,
corra o mate-chimarrão
que a pega começa agora.
São quadras calcadas sobre versos folclóricos, como a série de trovas que começa com o conhecidíssimo: "Lá atrás daquele serro ... " E assim vai João dOutrora (pseudônimo usado por Antonino), imitando, parodiando nossa poesia popular anônima.
Livro inteiramente em versos é Cartas Gaúchas (Tipografia A Nacional, Passo Fundo, 1929), "Homenagem à Aliança Liberal e seus denodados batalhadores, que, hoje, formam a guarda avançada das instituições republicanas da Pátria, na mais necessária de todas as reivindicações".
Antonino foi um típico poeta de circunstância, embora soubesse versejar, o que fica demonstrado por estrofes como esta:
Minha consciência me disse
que aos liberais eu pedisse,
nestes versos de campeiro,
consciência mais elevada
nesta causa tão sagrada
para o povo brasileiro.
Precursor da nossa poesia gauchesca, ao final de seu livro reúne uma série de "palavras e frases populares", que comprovam sua filiação ao regionalismo poético.
Nascido em Santa Maria (RS), no dia 9 de janeiro de 1858, e falecido em Passo Fundo, no dia 25 de julho de 1950, Gabriel Bastos, também fundador do Grêmio Passo-Fundense de Letras, foi um poeta bissexto. Seu livro Da mocidade à velhice (Tipografia Independência, Passo Fundo, 1944), reúne quase três dezenas de poemas de sua lavra e alguns de seu pai. Muitos foram escritos circunstancialmente, ao longo de 40 anos. Publicou, ainda, A Atlântida, sobre o "continente desaparecido" (Of. Gráfica da CITA Editora Ltda, Porto Alegre, s/d -1948?-).
Seu soneto, A VIDA, de 1936, tem algo da lírica bocageana:
Mar encapelado de agonias,
Oceano de lutas e amargores,
A vida é estendaI de dissabores,
Onde duram bem pouco as alegrias.
Se aos lábios nos aflora riso leve,
Logo vem a dor cortar-lhe o surto,
Não deixando, sequer, um só minuto
Passar inteiro, esse momento breve.
Nessa estância de luta, anos e anos,
Nesse viver de amargos desenganos,
Vai o tempo levando a creatura.
Jamais, jamais prazer inteiro existe,
Pois que, a desilusão a tudo assiste,
Até nos encerrar na sepultura.
Antonio Donin é outro passo-fundense por adoção. Nasceu em Vila Maria, área do antigo município de Passo Fundo, no dia 15 de fevereiro de 1911. Formado em Filosofia, Teologia e Direito. Veio para cá em 1941. Daqui saiu em 1946, retornando definitivamente em 1952. Educador e advogado. Foi um dos idealizadores da Universidade e do Movimento Tradicionalista Gaúcho, em Passo Fundo. Foi secretário municipal da Educação.
Sua contribuição para o tradicionalismo e a educação passo-fundenses não foi ainda devidamente reconhecida. Publicou O Brasil em marcha (Tip. Modelo, Erechim, 1941), Alma de poeta (versos, Tip. A.B.C., Erechim, 1946) e Heroínas (Tip. Liceu Salesiano de Artes e Ofícios Leão XIII, Rio Grande, 1950).
Antonio Donin nunca aceitou o verso livre. Sempre praticou uma poesia grave. Nos últimos anos de vida dedicou-se intensamente à trova.
Veja-se o poema As Mestras:
Pulindo cérebros, moldando as almas,
Numa tarefa quase descomunal,
Mas sempre altivas, álacres e calmas,
As mestras vão cumprindo seu ideal.
As efêmeras glórias e os salões,
Em que palpita a alma juvenil,
Não têm encanto para os corações
Destas heróicas filhas do Brasil.
Elas fazem dos bancos escolares
Fontes de vida e forças imortais,
Porque ali formam nossos ricos lares,
Pela virtude e pelos ideais.
Difundindo o saber, na mocidade,
Dão a seiva do amor da Pátria amada;
Com a fé, o labor e a liberdade,
Dignificam a raça imortalizada.
As mestras são as lídimas obreiras
Da grandeza do povo varonil;
São sempre intrépidas e prazenteiras,
Na defesa da glória do Brasil.
Falecido no dia 8 de agosto de 1987, Antonio Donin foi um poeta conservador. Seus poemas possuem um tom oratório, típico dos neoparnasianos.
Outro poeta conservador, na forma e na temática, foi Gomercindo dos Reis, nascido em Pinheiro Marcado, então interior de Passo Fundo, no dia 4 de fevereiro de 1898. Veio para Passo Fundo em 1920, fixando-se como corretor de imóveis. Libertador, participou da Revolução de 23. Homem de grande coragem cívica, chegou a ser preso ao comandar um movimento social, evitando que a praça da Vila Rodrigues fosse vendida. Combateu o Estado Novo, escrevendo um libelo intitulado Defendendo a Verdade, crítica administrativa na vigência do Estado Novo (Empresa Gráfica Editora, Passo Fundo, 1947) e os livros de poemas Jardim de urtigas, versos satíricos e humorísticos (Imprensa Oficial, Porto Alegre, 1957) e Nuvens e rosas, versos líricos (Imprensa Oficial, Porto Alegre, 1957). Faleceu no dia 11 de outubro de 1965.
Formal e tematicamente conservador, Gomercindo dos Reis poderia ser colocado entre os poetas da chamada "Bélle Époque", do início do século XX. Sirva de exemplo, esta sátira a seus adversários políticos estado-novistas, escrita em 1940:
Trevas na prefeitura
Na Comuna há mandachuva,
Mas outros mandam também,
Como em tareco de viúva,
Como em casa de ninguém.
Qual cego que vai palpando
Numa eterna noite escura,
Vê-se um prefeito tateando
Nas trevas da Prefeitura.
Se a "turma" pedir que fique
E o povo disser que saia,
Hão de ver que esse cacique
Não há de sair sem vaia.
Se por fora há lama e poeira
Que nos magoa e tortura,
Também, há grande sujeira
Por dentro da Prefeitura ...
Seus dois livros de poemas foram publicados em 1957, quando o Modernismo já estava consolidado, os poetas da chamada Geração de 45 produziam obras significativas, e o Concretismo, com sua poesia visual, avançava pelo país.
Nessa época, escrevia acrósticos em versos decassílabo ao bairro de sua predileção:
Velho Boqueirão
Vendo que a minh alma se afervora
Eu brado ao Senhor lá do infinito:
Luz e vida que nos deste outrora,
Hoje é glória ao Boqueirão bendito!
O povoado que surgiu na história,
Berço que nasceu da luz da aurora;
O povo já o grava na memória,
Quer amá-lo na existência afora.
Um século de progresso e de glória,
E ainda vê-se aquele povo, agora,
Irmanado e sempre extraordinário!
Relembro os heróis dessa vitória,
A gente, enfim, que ainda revigora
O meu velho Boqueirão lendário.
Outro poeta, libertador também, veterano da Revolução de 23, literariamente conservador, é André Pithan, nascido na Fazenda Capão Grande, à margem da estrada que liga Santa Bárbara a Palmeira das Missões, no dia 9 de julho de 1894, e falecido em Passo Fundo, no dia 21 de dezembro de 1958.
Satírico terrível, talvez por isso não tenha sido aceito para integrar os quadros da Academia Passo-Fundense de Letras, que mais tarde viria a ser presidida por seu filho Romeu Pithan, também poeta. Seu filho, Ruy, que ainda reside em Passo Fundo, é autor de diversos poemas, inéditos.
Os poemas de André Pithan foram publicados postumamente, no livro Landas (Gráfica Papelaria Andradas, Porto Alegre, s/d - 1963? -). Verdadeiro Bocage de bombachas, alguns poemas seus continuam inéditos, pois seus herdeiros não quiseram publicá-los, tal a virulência empregada, especialmente contra os adversários políticos do Partido Libertador.
Veja-se este soneto intitulado Carta de alforria, a um desafeto que aniversariava no dia 10 de abril:
Hoje tu completas mais um ano,
Meu pobre burro, estúpido animal,
Como não gastas ouro nem estragas pano,
Te presenteio uma ração de sal.
Se fosses, como eu, um ser humano,
Em vez de seres burro, ó imoral,
Um relógio, um livro de Herculano,
Escolheria para o teu natal.
Mas nada disso se te não prescreve,
São uns trastes inúteis, sem valia;
Burro não lê, não veste, não escreve,
Nem sabe quantas horas tem o dia,
- Não mais terás meu freio de almocreve,
Pois dou-te a vida inteira de alforria.
Severino Ronchi, médico nascido em Itajaí, Santa Catarina, a 4 de dezembro de 1907, casado com Lucila Schleder Ronchi, fundadora do Grêmio Passo-Fundense de Letras, legou-nos um livro de poemas intitulado Pelos caminhos do horizonte (Editora Pe. Berthier, 1976, Passo Fundo). Os poemas foram compilados e acompanhados de alguns comentários da própria Lucila.
Severino faleceu no dia 2 de setembro de 1977, e deixou publicado, ainda, o volume Temas de introdução à Psicologia, calcado sobre idéias marxista-Ieninistas.
É outro poeta tradicional, comprovando a tese de que um intelectual com idéias revolucionárias pode ser, esteticamente falando, conservador e até reacionário. Sirva de exemplo o soneto Origem, escrito em Santo Cristo, no dia 20 de setembro de 1942:
Surgimos do infinito interminável
Dos mundos siderais em formação;
Dos átomos de força incontrolável
Que se agitam por própria vibração.
Por séculos de tempo inexorável,
A matéria em tenaz transformação,
Se organiza e dum ciclo inevitável,
Emerge a vida em grande floração.
Da vida animal, mas pelo trabalho,
Remontamos até A NOSSA ESSÊNCIA,
Causando às feras um grande espantalho ...
Das RELAÇÕES SOCIAIS, em convivência,
- Pois este pensar nunca será falho –
É que brota, afinal, NOSSA CONSCIÊNCIA.
Lucila, em nota, afirma: "Original do soneto Origem, escrito na sobrecapa do Livro de F. Engels: Feurbach e o fim da filosofia clássica alemã, ao terminar a leitura, quando lhe chamou a atenção o conteúdo da VI Tese de Marx sobre Feurbach."
Ele mesmo se definiu em versos que acabaram por servir-lhe de epitáfio:
Por aqui dorme o Ronchi Severino
Que, embora tendo vida muito inquieta,
Sempre soube de amor tecer um hino:
- Era doutor, amou e foi poeta!
Tenebro dos Santos Moura nasceu em Palmeira das Missões, no dia 21 de março de 1906. Participou das forças que ocuparam a cidade de São Paulo, em 1924; foi um dos fundadores do Partido Libertador, em 1928, e participou de nova ocupação da Paulicéia, durante a Revolução de 30. Ali escreveu seu primeiro poema, intitulado Saudade. Foi um dos pioneiros do Movimento Tradicionalista Gaúcho na região.
Seus poemas foram reunidos no livro Querência, que teve duas edições (1ª: Editora Berthier, 1985, Passo Fundo; 2ª: idem, 1987, Passo Fundo). Tenebro dos Santos Moura continua sendo o mais representativo poeta gauchesco passo-fundense. Até mesmo por ter vivido no meio rural, antes que o processo de mecanização dos nossos campos substituísse a criação extensiva (base para a existência do gaúcho serrano) pela granja, empresa agrícola para a produção de grãos destinados à exportação.
Homem de poucas letras e múltiplas leituras, conhecia os clássicos do regionalismo gaúcho, mas sua maior admiração era Guerra Junqueiro (1850-1923), poeta português. Aposentou-se como funcionário Municipal e faleceu no dia 29 de agosto de 1994.
O conhecimento da vida real do chamado gaúcho serrano, e a convivência com os clássicos da língua marcaram profundamente seu regionalismo poético, e contribuíram para que não praticasse a mesmice e o artificialismo da poesia gauchesca mais recente, o que pode ser visto em poemas como este:
O cusco
Para Nicolau Araújo Freitas
Apareceu um dia no meu rancho
um cusco teatino, magro e feio.
Eu pensei: este cusco que veio,
com jeito humilde de quem pede abrigo,
irá compartilhar das minhas penas,
será meu companheiro, meu amigo ...
O cusco ficou e é cheio de latidos
o sítio todo que era muito quieto.
Eu acho até que o cusco, solidário comigo,
quer enxotar pra longe o meu pesar secreto.
Às vezes mais atento aos seus latidos,
não espero, mas gosto de pensar
que alguém que vive no meu pensamento
também sente saudade e vai chegar.
Mas, se à noite, fugindo do relento,
no borralho se aquieta, o cusco dorme,
meu coração se agita no silêncio,
e invade o rancho uma tristeza enorme.
Conclusão
Nossos poetas e nossos prosadores do passado merecem ser lidos, para que possamos entender a literatura passo-fundense. Em entendendo essa literatura, estaremos contribuindo para que tenhamos escritores que inscrevam o nome de nossa cidade na história das letras pátrias.
Ouso dizer que, os estudo dos nossos escritores mais antigos, levou-nos à constatação de que até agora não tivemos um Simões Lopes Neto, um Erico Veríssimo, um Mário Quintana, um Moacyr Scliar ou qualquer outro escritor da projeção daqueles que saíram de outras cidades gaúchas, porque o peso do conservadorismo estético é muito grande entre nossos ficcionistas e poetas. E esse tradicionalismo literário acaba exercendo uma força frenadora sobre nossos criadores literários, fazendo com que eles sejam historicamente ultrapassados.
Não faltam valores, não falecem méritos aos nossos romancistas e poetas, mas eles não pertencem ao seu tempo, e sim a tempos anteriores. Por isso não encontram reconhecimento histórico.
O que nos cabe é conservar a sua memória; é editar as obras inéditas; é reeditar os editos; é estudar suas obras como jamais estudamos, para que possamos viver para a história do nosso tempo, para as letras de nossa época e, assim, transcendermos tempo e época.
Nossos romancistas e nossos poetas já falecidos merecem nosso respeito e nossa consideração, mas merecem, acima de tudo, que façamos muito mais do que eles puderam fazer. Para isso, precisamos praticar uma literatura atual e atualizada, que seja referencial para a época em que vivemos.
(Paulo Monteiro é titular da cadeira 32,
da Academia Passo-Fundense de Letras,
que tem como patrono o poeta e jornalista Gomercindo dos Reis.)
da revista
Água da Fonte nº 1