Passo Fundo: mais que 160 anos

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Passo Fundo: mais que 160 anos

Em 07/08/2017, por Fernando Borgmann Severo de Miranda e Djiovan Vinícius Carvalho


Fernando Borgmann Severo de Miranda[1]

Djiovan Vinícius Carvalho[2]


Os primeiros grupos humanos que chegaram à região, onde hoje está Passo Fundo, tinham a caça e a coleta como seu principal modo de subsistência. Estes grupos nômades de caçadores-coletores-pescadores fabricavam ferramentas de pedra lascada, madeira, ossos e conchas.

Na região do Planalto Médio, tivemos ainda a presença marcante de duas grandes culturas ceramistas: Taquara e Tupiguarani. Sobre sabemos que a Tradição Taquara “ocupou o planalto sul-brasileiro do Rio Grande do Sul”. Marilandi Goulart escreve que eles estariam adaptados “aos campos altos, matas mistas identificadas pela araucária e, por vezes, à floresta”.

Entre os vestígios mais característicos destes grupos figuram sua indústria oleira e as chamadas casas ou estruturas subterrâneas, popularmente denominadas de “buracos-de-bugre”, a exemplo dos sítios arqueológicos existentes nos municípios de Casca, Passo Fundo e Água Santa. Acredita-se que seus antigos ocupantes tenham sido os ancestrais dos atuais Kaingáng e Xokléng, pertencentes linguisticamente ao ramo meridional da família Jê.  

O Rio Passo Fundo faz parte da constituição histórica do município. Chamado de Goio-En – água funda – pelos índios Kaingang que habitavam suas margens no início do século XIX, e, de Uruguai-Mirim – pequeno – pelos Tupiguarani, o rio Passo Fundo teve significativa importância desde os primórdios da cidade que hoje leva o seu nome. Ás suas margens, grupos indígenas que habitavam a região do planalto conviviam ao lado de imensas matas nativas. Sua existência foi importante também durante a passagem dos tropeiros pela região, que, cruzavam o rio, carregados em suas mulas até de Sorocaba (SP).

O caminho por onde transitavam tropeiros com mulas e gado em direção a São Paulo, conhecido como Estrada das Tropas, era um antigo caminho indígena, sendo parte do que hoje é a Avenida Brasil. Ao longo da antiga Estrada das Tropas diversas casas comerciais foram criadas, nascendo, assim, a Vila de Passo Fundo.


O início da Vila de Passo Fundo

A partir da chegada do Cabo Manoel José das Neves, “paulista” de São José dos Pinhais, hoje estado do Paraná, considerado o fundador da cidade, em fins de 1827 ou início de 1828 a povoação desenvolveu-se. Depois de obter a concessão de “quatro léguas quadradas” (17.424 ha) trouxe sua “família, escravos e gado”, estabelecendo aqui uma fazenda pastoril e agrícola.

O núcleo da povoação ficava na região da atual Praça Tamandaré. Isso possivelmente devido à facilidade de conseguir água, do Arroio do Chafariz; a topografia da área (que se estendia para o oeste, ‘um ‘boqueirão’); e por ser uma área mais segura, devido à tensão surgida entre os recém chegados e os índios Coroados.

Conforme relata Antonino Xavier "o povoado era cercado de matas, pelo sul divisando com a atual rua Independência e até mesmo com a rua Moron, d’onde partia a maior fonte de perigo. Sob o comando do índio Marau, saiam os bugres de suas malocas no Rincão do Herval, a sudeste do povoado, e vinham concentrar-se à beira da Serra Geral, que confinava com os terrenos da atual rua General Osório, ficando à espreita, com a decisão de destruir o povoado e exterminar seus habitantes”.

Com o desmembramento do município de Cruz Alta do território de Rio Pardo, em 1834, Passo Fundo passou a ser seu 4º Distrito.


Dois tempos sobrepostos

Uma das representações mais antigas da forma urbana da cidade de Passo Fundo encontra-se na ‘Planta da Freguesia do Passo Fundo’, projetada por Antonio Trola, em 1853, quatro anos antes da emancipação do município. O desenho mostra o arruamento e as casas, “de pedra” ou então simples “ranchos”, com cercas que confinavam uma espécie de pátio comum aos habitantes de cada ‘quadra’. A primeira capela e o antigo cemitério ficavam localizados distantes da antiga povoação; matos ou capões existiam ao norte e ao sul da Freguesia.

Sobrepor a planta de Antonio Trola com uma planta do atual centro de Passo Fundo é um exercício interessante. A sobreposição das duas plantas nos mostra que a primeira capela da povoação estava situada onde hoje está a Catedral, com frente para nordeste. A primeira capela do foi edificada em 1834 e consagrada a Nossa Senhora da Conceição, em 23 de agosto de 1835. O terreno onde foi construída a capela foi doado pelo Cabo Neves, que além do terreno, entregou à Igreja uma extensão de terras bem maior, que envolvia o atual centro da cidade, e que deu origem, mais tarde, aos terrenos ‘foreiros’.

Na época em que Antonio Trola desenhou a planta da Freguesia, existiam cerca de trinta e seis construções “de pedra”, a maioria delas situadas na ala norte da hoje Av. Brasil, e vinte “ranchos”, sendo a metade deles agrupados e situados em ângulo com a avenida, seguindo a direção do arroio do Chafariz e da Estrada das Tropas. Com cinqüenta e seis “fogões”, a população do pequeno núcleo deveria ser de uns 370 habitantes, tomando-se por base a mesma proporção da população de 1843, de 9 casas e 60 “almas”. Percebe-se com isso, confirmando a historiografia, que a incipiente povoação teve uma grande expansão entre 1843, pouco antes do término da Revolução Farroupilha, e 1853: de 9 para 56 habitações e de 60 para aproximadamente 370 moradores.


O grande Passo Fundo

Em 28 de janeiro de 1857, Passo Fundo emancipa-se de Cruz Alta e a ‘Freguesia’ passa à condição de ‘Vila de Nossa Senhora da Conceição do Passo Fundo’. A 7 de agosto, data em que se comemora a emancipação, tomam posse os primeiros vereadores. Naquele momento, como não existia ainda o cargo de prefeito, exercia a chefia do governo municipal o vereador mais votado. Na primeira eleição, o que recebeu mais votos foi o Capitão Manoel José d´Araújo, que tomou posse como Presidente da Câmara de Vereadores.

A área do novo município era enorme, abrangendo mais de 24.000 km2, ou seja, mais de 2.400.000 hectares. Ao norte, a fronteira municipal chegava até o rio Uruguai.  A economia, naquele período, girava em torno da erva-mate, sabemos que entre 1857 e 1858 teriam saído do município 600 toneladas de erva-mate, planta nativa dessa região. Este é considerado o primeiro ciclo econômico que aconteceu no município.

Apesar do enorme território, estatísticas da época indicam que existiam apenas 8.108 habitantes no município, não contando, nestas, os povos indígenas. Deste total, 1.600 habitantes, ou 20% da população, eram escravos. Na Vila mesmo, onde hoje se assenta a cidade de Passo Fundo, estima-se que viviam cerca de 500 pessoas. Como nos diz Antonino Xavier: “Na época da emancipação, como não havia clubes, os saraus eram realizados nas casas de família, onde o piano era o instrumento da época, geralmente tocado por membro da família [...] havia ainda o jogo de carta, mas a principal diversão era a "carreirada” [...] a raia, primeiramente na Rua do Comércio, desde a 10 de Abril até a Teixeira Soares...”. Iniciava, portanto, na hoje Praça da Mãe, passava em frente ao colégio Notre Dame, indo terminar aproximadamente em frente ao prédio da Academia Passo-Fundense de Letras, atravessando quase toda a extensão da principal rua da Vila, a rua do Commércio.

Os nomes das ruas datam, oficialmente, de 26 de maio de 1858, quando a Câmara fez nomear as ruas da Vila do Passo Fundo, emancipada de Cruz Alta no ano anterior. Inscreviam-se os nomes de Rua das Flores (hoje Teixeira Soares); rua da Ponte (hoje Dez de Abril); Rua São Bento (hoje Rua Paissandu, que ainda não havia sido aberta em 1853); Rua da Imperatriz (hoje Marcelino Ramos); rua da Direita (hoje Sete de agosto); e Rua Santa Clara (hoje XV de Novembro).

Os nomes de rua “das Flores”, rua “da Ponte” e, em seguida, “do Chafariz”, “do Estreito”, e “da Ladeira” chamam a atenção para a integração homem-natureza, numa época em que o progresso ainda não havia chegado à povoação.

Como se pode perceber, não havia ainda em 1858, nenhum nome de ‘herói’ ou personagem político da época como nome de rua, salvo uma referência à Imperatriz. A construção dos ‘heróis passo-fundenses’ está diretamente ligada à política e a feitos militares: a batalha de Paissandu, no Uruguai (1864), a Guerra do Paraguai (1865-1870) e a Revolução Federalista (1893-1895). Desses acontecimentos surgiriam depois os nomes das ruas ‘Payssandu’, ´Cel. Chicuta´, ´Cel. Miranda´, ´Cap. Eleutério´, entre outros.


A mudança vem pelos trilhos...

A inauguração da Estrada de Ferro em Passo Fundo, em 1898 alterou a dinâmica urbana da cidade. A partir de 1890, a expansão urbana foi interrompida no sentido do Boqueirão, e teve inicio o processo de urbanização do atual centro da cidade, em área completamente oposta, Leste. A notícia da construção da estrada de ferro Santa Maria – Passo Fundo, contrato assinado em 1890, foi determinante para essa mudança de rumo.

As duas primeiras pessoas a terem seus nomes inscritos nas placas das ruas de Passo Fundo estão ligadas ao trem. Os nomes de Marcelino Ramos da Silva (engenheiro na construção da via férrea e que doou à Câmara um mapa inédito do município, confeccionado por ele), e o engenheiro João Teixeira Soares (que obteve a concessão para a construção) são casos únicos: as ruas foram nomeadas em 1891, quando os dois ainda estavam vivos. As ruas Marcelino Ramos e Teixeira Soares são testemunhas da grande importância atribuída à construção da estrada de ferro Santa Maria – Passo Fundo no imaginário sócio-político e econômico da cidade. Os nomes já estavam nas ruas mas o trem, símbolo do progresso e da modernidade, só chegaria a Passo Fundo em janeiro de 1898.

É nesse contexto, que a Avenida General Netto passou a ter a ter uma importância significativa, pois ligava a principal rua, do Commercio, com a futura Estação Ferroviária, atual Gare. A construção da via férrea a partir de Santa Maria sofreu atrasos devidos à Revolução Federalista (1893-1895), e só chegaria a Passo Fundo – ponto terminal dessa primeira etapa no início de 1898, provocando profundas mudanças no meio rural e urbano do município. Com a chegada dos trilhos a dinâmica dos processos socioeconômicos foi intensificada. Em função dos trilhos diversos foram os segmentos que puderam se desenvolver, a exemplo disto estão os diversos hotéis construídos no entorno da Gare, além da indústria moageira.


Ampliação da Planta de 1853 sobreposta ao centro atual da cidade

O pequeno cemitério da Freguesia estava localizado, conforme podemos ver na Planta, ao sul da capela, ocupando uma parte da quadra formada hoje pelas ruas Independência, General Neto, General Osório e a rua Coronel Chicuta. Ali permaneceu até 1902, quando a urbanização do atual centro da cidade forçou sua transferência novamente para fora da zona urbana, na então inexistente Vila Vera Cruz. As cenas da mudança do cemitério certamente mexeram com o imaginário popular da época, com as suas memórias e com o passado das três gerações de passo-fundenses que existiam então. Mas ‘a vida tinha que continuar’, e os mortos, literalmente atropelados pelo trem do progresso, foram recolhidos e outra vez enterrados, agora no novo campo-santo.

A Praça Marechal Floriano recebeu este nome, em homenagem ao segundo Presidente da República. Sabe-se que em 1918, a praça era cercada de arames, possuindo porteiras em cada um dos seus quatro cantos, por onde se entrava através de porteira giratória em forma de cruzeta. Havia também, no centro da praça, um Quiosque onde havia mesas e cadeiras, onde eram discutidos pelos frequentadores os problemas sociais, políticos e econômicos.

A década de 1920 chega a Passo Fundo trazendo novos ares. A cidade passou pelo “aformoseamento urbano”, como era chamada na época a remodelação da cidade, nesse processo de remodelação das ruas e canteiros, naquele período a passagem das tropas pela Avenida foi proibida, com pena de multa aos tropeiros que por ali passassem, findando assim um capítulo da Avenida Brasil, o cavalo dava lugar aos automóveis.

A Praça Marechal Floriano também foi modificada, em 1921 foi retirada a cerca de arame e melhoramentos foram realizados, foram instalados bancos de concreto, os passeios foram calçados e ela foi ajardinada. Era o cartão postal da cidade! A construção da Catedral


Construção da Catedral, final da década de 1930.

Na década de 1940, a praça recebeu uma remodelação total, ganhando um lago e calçadas de pedras portuguesas, que ainda hoje fazem parte do dia a dia dos passo-fundenses. Durante muito tempo a praça foi ponto de convergência, no seu entorno ficavam os cinemas Real, Imperial e Pampa, restaurantes, cafés e casas de jogos.

Entre os monumentos, bustos e placas comemorativas, um dos que tem maior destaque é a Cuia, presente do Governador de São Paulo, pela passagem do centenário de Passo Fundo, em 1957, sendo um dos cartões postais do município.


Cartão postal da Praça Marechal Floriano, da Casa Tupi.

Passo Fundo ontem e hoje

Alguém já disse que a História de uma cidade pode ser quase tão importante quanto ela própria, entretanto, muitas vezes, a história se perde nas esquinas do tempo. Perdida entre o caos de um engarrafamento, ela pode se esconder entre as paredes de uma instituição. Documentos, acervos, fotografias, memórias...


Ao caminharmos por Passo Fundo podemos ver diferentes camadas dos tempos. Espaços que evocam memórias,

A pequena vila das ‘carreiradas’ de 160 anos atrás se transformou em cidade com ares de grande. A comemoração da emancipação do município a cada 7 de agosto revigora uma tendência, notável em Passo Fundo nos últimos anos, de levantar monumentos, inaugurar placas comemorativas, nomear praças, logradouros e lembrar o passado. Há, enfim, certa preocupação em dirigir o olhar para o passado, em ligar o presente ao passado e projetar o passado. Essa ‘onda de rememorações’ traz junto o sentimento de pertencimento a um lugar, a necessidade da busca de uma identidade, de reter alguma coisa do passado, num mundo moderno cada vez mais caracterizado pelo novo, pela mudança e por uma história cada vez mais acelerada.

Referências

  1. Presidente do Instituto Histórico de Passo Fundo
  2. Secretário-Geral do Instituto Histórico de Passo Fundo