Dez dias no México

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Dez dias no México

Em 10/02/2014, por Agostinho Both


Dez dias no México[1]


Pra início de conversa

Fui ao México e de tudo que vi não vou dizer a metade, pela simples fato de pouco entender, pois não se compreende a vida que se passa na casa dos outros. Entre os limites da razão e a força da perplexidade, resolvi dizer as minhas impressões.

Pelas leituras e, particularmente, nessa viagem, percebi toda a complexidade da condição humana. A racionalidade sofre e, por vezes, a ponto de a loucura ser mais vigorosa que a consciência e seus valores morais. Para provar tudo isso me aparece, então, um povo sem meios termos. É como um sino em movimento: uma força o leva para as extremidades. Parece haver efervescência nas ruas que ocultam, em pleno sol, os Cristos lanhados nas igrejas, símbolos de uma dor, própria de quem foi massacrado. Em todas as feiras se vê a força das cerâmicas de muitas cores, de vasos de cobre coloridos e, por contraste, conforme Érico Veríssimo: as imagens agônicas dos Cristos que tenho encontrado: adoram Cristos esfolados, vergastados, Cristos que vertem sangue. As igrejas espanholas se mostram soturnas, indicativo de uma felicidade duvidosa. As mexicanas parecem mais tristes em razão da violenta conquista. A face humana sofrida aí se revela sem rebuços: demonstração viva da condição humana em não suportar a humilhação. As canções mariachis de um lado mostram sentimentos de mil carências e abandonos: uma choradeira de meter compaixão nas almas sensíveis, enquanto seus pistões anunciam uma esplêndida alegria. Mas vamos ver estes mexicas de corações colados na metade de suas terras, pois que a outra lhes roubaram, e, aí, revelada uma história e um espaço de causar espanto. De um lado a doçura sem medidas e de outro uma paixão insólita a instigar revoluções e mortes sem piedade. De um lado o vigor palpitante da identidade e, de outro, a entrega humilhante de suas terras aos americanos. Se matam em casa por suas causas e se deixam matar por los de afuera asi no más. Roubam as terras das congregações religiosas as quais, fazia séculos, educavam o povo e entregam muito mais a estrangeiros sem história. No los comprendo pero me gusta verlos muy cerca. Hai que amarlos! Mui queridos, pero muy locos.

Vamonos!, como dizem os guias

As viagens nos levam a ver e ser muito mais que vemos e somos. É isso mesmo, e ainda mais quando me reporto a esta viagem ao México. O contato entre civilizações deixam os seres humanos completamente diferentes, fazendo ver realidades sempre visíveis na espécie humana, mas com detalhes novos de causar assombro. Pois bem, os espanhóis avassalaram os astecas, e pela miscigenação, nasceram seres interessantes, sobretudo amáveis, ora pesarosos, ora alegres, malgrado descendentes de um encontro de violências. Ainda mais: todos aqueles que usufruírem dessa gente ficam contaminados pela cultura, modificando-se também. Disso dou meu testemunho.

Desde criança meu espírito foi povoado de canções e histórias mexicanas. Para atender aos apelos antigos resolvemos, eu e a Solange, ver de perto tudo o que até então se me afigurava como distante.

Sobrevoando Costa Rica, sabia que, abaixo, dois oceanos dividiam as estreitas terras. Ali do alto, pensamentos estranhos povoavam a mente, não tendo nada a fazer senão aguardar. É claro que, então, algumas ideias começam a se apresentar sem licença. Uma poesia de Pessoa começou a me atrair, lembrando o estado preguiçoso em que me encontrava:

Deve haver ilhas para o sul das coisas

Onde sofrer seja uma coisa mais suave,

Onde viver custe menos ao pensamento,

E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol

E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais

Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Vieram mais outras convergências preguiçosas e de momento se afastavam. Lembrei, também,  o espanhol São João da Cruz que não queria nada com nada, além de Deus. Não tinha tanta clareza das palavras quanto as do poeta português, pero me agradavam e muito. Ri com ele: acho que não tem um espanhol que não seja meio louco. Penso, por vezes, que alguns lugares são hábeis em criar seres estranhos. Bem, do mesmo jeito, como certos tempos, aparecem fornadas de gentes especiais. Parece ser assim entre a massa e o pão quentinho. A massa vai se estendendo e basta um fogo para se ter o pão, pronto pra se pôr na boca. O tempo das sementes foi longo bem como o da farinha, mas surge, como que num piscar de olhos, uma realidade nova: o pão que deve muito a outros esforços, incluindo o suor do agricultor. Antes de me perder mais nessa divagação viageira, retomei ao santo baixinho que descobrira o poder do nada. Acho até que de tão pouco e de tão pobre que era, resolveu ver a fundo sua aniquilação. Vou enrolando pra dizer o que dissera o santo homem, mais eis aqui alguma coisa dele, dizendo que do nada pode ver o absoluto. Tudo menos o que pensara Cortés.  

Para chegares a saborear tudo,

Não queiras ter gosto em coisa alguma.

Para chegares a possuir tudo,

Não queiras possuir coisa alguma

Para chegares a ser tudo,

Não queiras ser coisa alguma.

Por tudo ao contrário de seu conterrâneo Cortés!

Por aí vão ideias do santo de nada ser em nome de Deus. Em nome das divindades dos astecas vou me indo com muita alegria como São João se ia contente à sua cela carmelita.

Cansado de ouvir toda espécie de música e da pressão que os fones faziam, me pus a pensar em Deus tendo por referência sua criação na palavra do tradutor hebreu, mas antes soprava-me no ouvido, mouco de tanto ruído, o Joãozinho, o miúdo:

As afeições às criaturas são diante de Deus como profundas trevas, de tal modo que a alma, quando aí fica mergulhada, torna-se incapaz de ser iluminada e revestida da pura e singela claridade divina. Coisa de espantar, e pior, por lembrar outras ideias suas ao afirmar que pela aproximação às criaturas se processa o princípio da identificação, uma espécie de comunhão humana, fazendo se perder o absoluto da misericórdia e do amor de Deus. Manda fugir da afeição humana uma vez que o que ama a criatura desce ao mesmo nível, porque o amado submete o amante ao objeto de seu amor, sobrando pouca coisa para Deus. Isso até pode levar à barbárie por querer que Deus não seja maguado pelas diferenças da crença. Fiquei, então, assustado nas alturas. Ora, ora, pensava com meu zíper: que coisa perigosa é essa, se pelos lampejos de tal certeza, devo erradicar o próximo ou até destruí-lo para obter o sumo bem, há de se entender os crimes dos espanhóis por verem os astecas divergirem da trilogia cristã. Como se afastar da unidade divina em favor de gente com sacrifícios humanos?

Abri a janelinha para ver os ares por onde andava. A luz forte do sol invadiu o pequeno espaço. Retornei ao ambiente da luz mortiça, liguei o mapa e já me aproximava da ponta sul do México. Norte da Guatemala: duvido que haja algum lugar desta vasta terra que não se derramassem gritos de dor. Prefiro, então, contrariamente a meus sentimentos, imaginar as águas dos dois oceanos no meio desta oceana dor. Me reporto, então, às narrativas da criação. Fazia pouco havia escrito: A terra estava informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito pairava sobre as águas. Fez-se o dia e a noite. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia. E não contente com seu trabalho fez o firmamento.

A terra em comunhão com o alto, se forma conforme a proposição divina. Força natural, ou não, ela foi criada. Nada existe que não tenha passado pela energia, sendo o início a semente de todas as coisas. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o segundo dia. Deus fez o mais difícil: o tempo e o espaço e com eles a semente de todos os acontecimentos.

Do mar nasceu a vida: da grandeza de seus movimentos e da inquietude inicial nasceram a diversidade de plantas e animais, inscrita na comunhão das circunstâncias. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o terceiro dia. Abrandava-se assim minha angústia por lembrar a violência espanhola através da ternura da criação. Inerente a tudo parecia haver uma fome devastadora de a vida se alimentar de uma espécie sobre a outra. Seria um espírito devorador em tudo a justificar a fome espanhola também? Do medo da morte e do poder começou a engendrar-se a violência para extermínio dos mais fracos. O espírito trazia a duplicidade das forças. Tripulação preparar-se para o pouso!

Nada mais havia para pensar senão nos procedimentos da aduana, passaportes e autorização pra conhecer essa gente e seu lugares: receios naturais de não atender às exigências mexicanas. Mal havíamos saído do avião, policiais, acompanhados de um cão farejador se moviam ao longo dos passageiros. Se os astecas tivessem cães espertos para avaliar perigos, por certo, não deixariam a destruição penetrar o solo dessas terras. Solanmge e eu fomos logo para a verificação da licença de ingresso. A conversa amena com o agente federal fez que estivéssemos sem receios. Falamos de futebol brasileiro. Impressionou-nos seu conhecimento sobre a copa de 70. Mi padre habla de Pelê. El tiene una foto con Pelê, falou e depois mandou que el passeo fosse bueno a la pareja! Estávamos agora atentos a outra preocupação: estarão as malas e o nosso transfer nos esperando? Tudo certo e de olho vivo em tudo.

De fato, é de se estar atento ao Deus que passa. Íamos para o hotel NH Centro Histórico. Nada podia ser perdido nem as folhas velhas cedendo lugar às novas: primavera. Tudo dizendo de como se renovou a história. Agora se morian las hojas e en 1500 se morian los astecas. As sementes se renovaram. Conversava insistindo a que o motorista explicasse; Acaso El centro histórico fuera el centro de La historia de los astecas tambien? No lo sé, pero el guia de vosotros les dirá, respondeu pra que soubesse que cada macaco tem seu galho. Chegamos ao velho hotel, mas muito acolhedor.

Descansamos um pouco e como não há mulher que sai para rua sem melhorar seu visual, a Solange demorou, pensando: o que os mexicanos vão dizer de mim? Fomos até ao passeio Madero: rua feita só pra passear. Oscar, um dos representantes da empresa Ketzaltour, responsável por nosso turismo, nos havia indicado como um bom passeio pra início de conversa. Que maravilha: uma ponta dava para o palácio presidencial, no Zócalo: enorme praça, e a outra para o teatro de Belas Artes, onde iríamos assistir, dia 28/04, ao comovente Ballet Folclórico Mexicano. Um palhaço mexicano me tomou pra se divertir, emblemático de tudo que aconteceria nesta terra. Eu, dem dúvida, era estranho e a realidade toda se divertia com minha ignorância. Me afastei fazendo de conta que seu papo não me interessava. A verdade era de que meu espanhol e minha mente estavam embotados pra conversar com aquela alegria, nem tampouco estava pra gozarem de minha velha cara. Fomos logo em seguida experimentar as tortillas, coisa sem graça, no magnífico restaurante, conhecido como Casa de los Azulejos, onde se localiza, hoje, também, uma das casas da rede Samborn’s, onde se vende de tudo e mais um pouco. Contar a história deste local barroco exigiria um volume para descrever os ocorridos. Aí fica também um mural, Omniciência, de Orozco, conhecido por seus quadros exóticos e cheios de simbolismos e horror. O local até faz parte dos eventos da independência, pois aí o personagem polêmico Augustin Iturbide, ergueu um arco para comemorar seu desejado reino mexicano. Ele fez a independência e logo a seguir mataram o homem, pois queria ser imperador. Pois é... pensar apenas em si pode levar à morte. Aquele exótico e contraditório herói é belo exemplo dessa máxima. Deixemos isso pra mais tarde. Pois bem, não dá para deixar de sentir em tudo um ar picaresco e heróico, e quase em tudo contraditório. No México a alma humana é cheia de conflitos e exageros, um gosto rústico de tragédia como diz Veríssimo. Um pouco de Cortez e de Cantinflas ao mesmo tempo, todavia, parece haver uma dor oculta, talvez, pela forma espanhola de dominar os mexicas: sentimento de desalento por terem uma pátria nascida de massacres e a metade perdida pra estrangeiros.

Tem mais desse passeo madero. As pianolas soam de um som triste, parecendo evocar mais choro que música. Há uma sonoridade mística, religiosa, e os velhos que as tocam estendem seus chapéus pedindo auxílio. Enquanto caminhávamos reparava, também, nas feições dos transeuntes. Vi diversos transeuntes de rostos iguais aos desenhos de verdadeiros mexicas. Me comovia a genética forte de um povo derrotado. Mas não havia o que dizer: aí uma gente miscigenada. Havia, então para mim um mau sentimento ao lembrar a austeridade de um tempo de horror à vida em que era só matar. Pero que si pero que no, acho que a minha percepção tinha de muy personal para se constituir uma verdade. Ainda bem que a vida de todos os jeitos era protegida por inúmeros policiales.

Pessoa insistia em conversar comigo:

Lenta, a raça esmorece, e a alegria

É como uma  memória de outrem. Passa

Um vento frio na nossa nostalgia

E a nostalgia touca a desgraça.

Confesso, porém: os passantes não eram tristes quanto os índios de Érico Veríssimo em seu livro México: em seus rostos unânimes na distância, parecendo cansados e resignados por não terem mais o que era seu. O orgulho fora roubado para sempre na impressão do grande escritor. No aspecto geral do índio estarão o peso e a cor sóbria do chumbo. Na sua atitude esquiva, a qualidade resvaladia e arisca do mercúrio. Na pele, o cobre. O carvão nos olhos. Caminhavam com certa alegria na rua Madero, distantes das dores antigas, somente a pianolas para lembrá-los do orgulho ferido.

Fomos dormir que o dia fora pra matar. Queria ver o México!, pois tava vendo. Outro dia começaria o tour. Às nove horas em ponto o guia: siñor e siñora Both e lá fomos nós a ver tudo com os olhos dele. Vamonos al palácio presidencial. Magníficos os murais de Diego Rivera, principalmente a dar sua noção da cidade de Tenochtitlan, capital dos astecas ou mexicas como queiram. Sem dúvida, aí reside a maior comoção ao se ver reconstituída a beleza da cidade. Somente uma desgraça com um exército desgraçado poderia apagar do mapa aquele lugar com tudo que ele continha. A comoção toma conta ao se ter diante dos olhos a extensão, a organização, a arquitetura, cuidadosamente estudadas, e expostas pelo pintor. Somente a mística de um espaço dada pela fantasia prodigiosa de reis poetas e de arquitetos religiosos poderiam engendrar a polis de diversos deuses. Nada de estradas, pois não se moviam por carros e, sim, por barcos, uma vez que a roda não fazia parte de sua cultura. Os canais, portanto, não significam somente o gosto por água, mas por necessidade da movimentação, o que custou caro, uma vez que Hernan Cortés, ao destruir as construções, impedia a movimentação dos defensores da cidade. Em sete meses nada mais sobrou da antiga beleza. Por tudo isso se justifica o ódio sobre os conquistadores. Uma dor perene habita a sepultura dos encantos mexicanos. Ainda que se odeie, resultou de tal violência uma raça amável, ainda que difícil de se entender. Parece haver sob este antigo vulcão movimentos de uma revolução prestes a eclodir, rigorosamente de acordo com as diversas e inflamantes revoluções, que, de tempos em tempos, invocam reclames profundos, nunca satisfeitos. Outros motivos de Rivera são postos de maneira contundente, solicitando olhares sensíveis pra entender uma história na qual raças dominadas e dominadoras buscam o difícil entendimento. A vida parece estar além das discórdias, embora brutas e feitas de violências, mostrando até o improvável. Num dos painéis Cortés recebe seu quinhão em moedas e, de outro, pobres índios aram terras com parelhas de jovens. Tudo sob a bênção de sacerdotes com os quais Rivera tem grave diferença. Acusa-os em razão da inquisição e do silêncio sobre os inocentes. Mais tarde veremos que outras opiniões se interpõem sobre esta questão. Mais cenas de horror com índios devastados e mortos. Contrariamente às cenas das raivas espanholas, rivalizam as cenas das feiras de cujas trocas os índios cambiavam ofícios, objetos e alimentos. Ainda mais: danças solenes com dançarinos floridos tendo ao fundo pirâmides coloridas. Em tudo: as cores não se envergonham uma das outras. Equívoco maior de Rivera se dá ao final de seus painéis, entendendo que a solução socialista daria conta de um horizonte justo e bom. O sonho de Rivera se tornou numa Rússia com tantos mortos quantos de quaisquer outros absolutismos. Parece acertado quem diz serem as grandes ideologias e utopias, como as das conquistas das Américas, traidoras da esperança e da igualdade. Teço nesta manhã do dia 20/04/2013 um pedido aos deuses pra que se encontre um caminho melhor e que se evitem os sacrifícios humanos, piores aos dos astecas, pobres mexicas, filhos de um doído imaginário, tendo à frente Quetzalcoat, o devorador de jovens corações. Mas desde quando não os há? E eles sabem de minha pouca fé na conversão do homem em favor da compaixão – impressionante: a violência ama se repetir. Mal feito o pedido, lembro uma cena de Rivera, de um lado um cão raivoso de dentes ferinos e, de outro, um cusquinho índio, assustado, assistindo o desfile do poder espanhol. Não podia deixar de aparecer a águia com a serpente em seu bico, sonho de um sacerdote asteca, antes de encontrar a ilha do lago Texcoco, onde se encontra a cidade do México. Pois bem, assim que encontrares junto a um pé de cactus uma águia tendo em seu bico uma serpente, aí construam um lugar para ficar, dizia-lhe o sonho. Duzentos anos depois a Espanha devorava a serpente e a águia, representando a dualidade inerente à condição humana. Se ao menos a indiada tivesse a prudência da serpente e o olhar da águia. Foram ingênuos como as pombas.

Saímos do Palácio Nacional e fomos passear no Zócalo, grande praça que assim leva o nome, uma vez que em espanhol quer dizer pedestal, em cujo cimo nada foi erguido, mas assim ficou denominado o local, não se sabe se por picardia ou se pelo fato, de por longo tempo, nada aí ter sido erguido. Avistando daí mais uma vez o Palácio, ouvi do guia: Allá és donde Montezuma dirigia su pueblo e donde Cortés ordenó La conquista, pero el fuego derrumbó todo.

Também junto ao Zócalo, o monumento da Catedral metropolitana. Não há como não ter dela sentimentos muito contraditórios, assim como em tudo o que é do México. Na época da conquista a Igreja mostrava dificuldades severas de relacionamento político com a Espanha. A acusação de a Igreja conviver silenciosamente com as práticas de vilania contra os índios parece não coincidir com os testemunhos históricos. Tanto isto é verdade que o primeiro Bispo da cidade do México, então Nova Espanha, se opunha contra a escravidão na qual viviam os mexicas e outras comunidades como as dos perépechas, dos otomanis e de tantos outros. Juan de Zumárraga, O.F.M. † (1530 - 1548), não mediu protestos contra as formas de domínio espanhol. Mas ei-la imponente e severa, trazendo exemplos de diversos estilos aquitetônicos: gótico, neoclássico, plateresco, barroco novo-hispano, coisa que não é pra menos. Pra religiosidade espanhola, louca e santa, basta pensar em São João da Cruz e Teresa d’Avila, nada causa estranheza o barroco, que significa em sua origem penhasco e, no caso novohispânico, exageradamente trabalhado, considerando-se os extremos sentimentos aqui reinantes, bem como nada demais em misturar o mistério elevado do gótico com as minúcias incrustadas na construção, semelhantes a pérolas ou filigranas mouras. Para completar não podiam faltar placas de prata(plateros) ou, o que quer que o valha, para fazer elogios a santos e outros personagens. Buenas, ao se adentrar em seu recinto sente-se o peso dos santos e de Cristos sofredores, sem faltar Nossas Senhoras suaves: estávamos na catedral nossa Senhora da Anunciação. O México todo ama se proteger no colo de Nossa Senhora. E não é para menos.

Feita a visita à Catedral, nos dirigimos até a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe. A nova catedral, estilo moderno, guarda a imagem da Santa. Uma perfeição!  Pelos relatos, uma "Senhora do Céu" apareceu a Juan Diego, identificando-se como a mãe do verdadeiro Deus, fez crescer flores numa colina semidesértica em pleno inverno, as quais Juan Diego, índio nahua, devia levar ao bispo, que exigira uma prova de que efetivamente a Virgem havia aparecido. Juan foi instruído por ela a dizer ao bispo que construísse um templo no lugar, e deixou sua própria imagem impressa milagrosamente em seu tilma, um tecido de pouca qualidade feito a partir do cacto, o qual deveria se deteriorar em 20 anos, mas que não mostra sinais de deteriorização até ao presente. Um estudo realizado no Instituto de Biologia da Universidade Nacional Autônoma do México, em 1946, comprovou que as fibras do tecido correspondem a fibras de agave, facilmente deterioráveis.

Embora em Guadalupe a doce Senhora tenha falada ao índio Juan Diego Cuauhtlatoatzin que repousasse em seu regaço e nada temesse, o que foi anunciado e feito não me parece tão repousante.   Meu amigo Vinicius Galliazi escreve ao referir-se a Guadalupe: Vi em 14 de dezembro de 2010, as peregrinações para o santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, milhões,  e a devoção franca daquele povo. Veja que Maria, ícone católica do conquistador espanhol, apareceu, durante a conquista sanguinária, para um índio  e não para um espanhol. Essa constatação me empurra para uma indagação intrigante: veio ela convencer de que a destruição da cultura milenar e a matança eram vontade de Deus, para o índio aceitar com resignação? Coisas do México, Vinicius, coisas do México. Vai ver que ocultavam as maldades cristãs à Nossa Senhora. Aí nessa terra até Deus se confunde. De todo jeito, de um lado intriga o fato de o saco feito de fibras de agave estar cheio de rosas colhidas na colina estéril e mais o fato de ter nesse poncho um desenho perfeito da Senhora. Buenas, pero que si pero que no, o México tem disso. De cinzas mortas brotam reações inesperadas. Pois é, para um bispo acreditar num índio é que os fatos deveriam ter sido muito contundentes. Vamos ver mais muito mais. Daí fomos até a região das pirâmides, distantes quarenta quilômetros. Mis espantos. Havia lido a lenda fantástica em torno delas:

Antes que existisse dia, os deuses reuniram-se em Teotihuacan e disseram, "Quem iluminará o mundo?". Um deus rico (Tecciztecatl) disse "Eu me encarregarei de iluminar o mundo". "Quem será o outro, que deverá apagar a luz?", e como ninguém respondia, nomearam um outro deus, pobre e sarnento (Nanahuatzin). Depois da nomeação, os dois começaram a fazer penitência e a rezar. O deus rico ofereceu penas valiosas de uma ave chamada quetzal, pepitas de ouro, pedras preciosas, coral e incenso de copal. O deus sarnento por seu lado, oferecia canas verdes, bolas de feno, espinhos de maguei cobertos com o seu sangue e no lugar de incenso oferecia as crostas das suas feridas. À meia-noite terminou a penitência e começaram os rituais. Os deuses ofereceram ao deus rico bela plumagem e um casaco de linho enquanto que ao deus pobre era oferecida uma estola de papel. Depois, junto ao fogo, ordenaram ao deus rico que se atirasse a ele. Este teve medo e recuou. Voltou a tentar e mais uma vez recuou, isto por quatro vezes. Chegou então a vez de Nanahuatzin, que fechou os olhos e se atirou ao fogo sendo consumido por este. Quando o deus rico viu isto, imitou-o. Em seguida entrou no fogo uma águia, que também se queimou (e é por isso que as águias têm as penas foscas, de cor morena muito escura); em seguida entrou um jaguar que se chamuscou e ficou manchado de branco e negro. Então os deuses sentaram-se à espera para ver de onde sairia Nanahuatzin; olhando para o oriente viram aparecer o sol com uma cor forte; irradiava luz em todas as direções e não conseguiam olhar diretamente para ele. Voltaram a olhar para oriente e viram aparecer a Lua. No início os dois deuses resplandeciam com igual intensidade, mas um dos deuses presentes atirou um coelho à cara do deus rico e desta maneira diminuiu o seu brilho. Todos ficaram quietos; depois decidiram morrer para assim dar a vida ao Sol e à Lua. Foi o Vento que os matou e que em seguida começou a soprar, fazendo deslocar primeiro o Sol e mais tarde a Lua. Por tudo isto é que o Sol nasce durante o dia e a Lua mais tarde, durante a noite que é para todos descansar. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Teotihuacan).

Coisa de louco, as crenças! Mas aí estão elas; de um lado a pirâmide da Lua e do outro a do Sol, mal dando para acreditar no que se pode ver entre as duas. Me penalizei da lua, sendo assim apagada por ter levado uma coelhada no rosto.

Não custa imaginar o esplendor de uma cidade que se estende ao longo de um eixo de mais ou menos cinco quilômetros. Aí se pode ver ainda os edifícios mais importantes que abrigavam templos, palácios e casas de personagens importantes. Além destes, também pirâmides, a Casa dos Sacerdotes, o palácio de Quetzalpapalotl (borboleta quetzal), o palácio dos Jaguares, a estrutura dos Caracóis emplumados, o templo de Quetzalcóatl, a cidadela e muitas outras edificações que naquele tempo eram de grande beleza, todas junto a esta avenida. E dizer que não se sabe o povo que construiu essa grandeza toda.

Existem evidências arqueológicas de que Teotihuacan terá sido um local multi-étnico, incluindo Zapotecas, Mixtecas, Maias e mesmo Nahuas ou Mexicas. Os Totonacas sempre afirmaram que haviam sido eles a construir esta cidade, o que era corroborado pelos Astecas. Na antiguidade esta cidade foi também conhecida pelo nome Tollan, nome este também usado, séculos depois, para designar a capital Tolteca, Tula. Considera-se que Teotihuacan é a sede da civilização Clássica no Vale do México, período clássico que vai de 292 a.C. até ao ano 900. O primeiro povoado data do ano 600 a.C. De tudo que aí se fez restou a influência para todos os povos que por aí passaram. Deuses tantos aí foram reverenciados e tantos homens e mulheres morreram crentes de verdades passageiras. De tudo que se vê se depreende: os sacerdotes tinham um papel muito destacado no que tocava à religião e à administração. Se a organização, o ânimo e a identidade  vinculava às crenças e aos mandos sacerdotais, dando conta de um sentido de vida, ressalta-se que do deus da serpente emplumada, entendida na figura de Hernan Cortés, veio a morte de uma civilização e o sofrimento ainda presente no povo. Pois, pois, se mostra, então, um perigo viver de crença e apenas nela constituir a identidade, uma vez que se pode chegar ao ponto de se dizer que contra a fé não existem fatos nem argumentos. Esse foi o mal de Montezuma e seu grupo. Dizem os historiadores que já era tarde quando Montezuma se deu por conta de Cortés não ter nada de salvador. Se, acaso, tivessem posta a sua identidade em seus lugares, nos fatos e em seus argumentos, poderiam salvar a pele e sua civilização, mas e daí o que seria o México sem a ciência e os encantos espanhóis. E pra espanto de muitos, Vasconcelos, um escritor mexicano, chega dizer num diálogo com Érico Veríssimo: todo aquele que se sinta mexicano deve a Cortés o mapa de sua pátria e a ideia de nacionalidade. Antes do Conquistador, o México era uma multidão de tribos separadas por montanhas e rios, e pelo abismo de seus trezentos dialetos. É verdade, os espanhóis oprimiram os índios e nós os mexicanos continuamos a oprimi-los, mas nenhum desses dois tipos de opressão se compara com os padecimentos que os caciques impunham aos seus súditos.

De todo jeito que se olhar e buscar desculpas, não se justifica a devastação impiedosa e cruel de um patrimônio. Por outro lado, por que em todo o México não existe um úncio monumento erguido em honra de Cortés?  Por que os índios estiveram por profonar o túmulo do Conquistador, devendo-se esconder, então, seus restos na Igreja do Doce Coração de Jesus? Basta de pirâmides e de reflexões.

Basta de pirâmides e de reflexões.

Voltamos para casa uma vez feitas as despedidas dos luagres sagrados, onde sopram as divindades. Pedi ao Guia se daria tempo de ir até o museu antropológico uma vez que, curiosamente, não estava incluído no tour histórico-cultural. Coisa mexicana... aí até se pode perder o principal, assim como perderam os astecas e mais tarde perderam os mexicanos para os gringos dos USA. Disse-nos o guia... tienes dos horas para verlo. Lá nos fomos, a ver aquilo que corta o coração: um mundo desaparecido.

Na entrado do museu, que por si só imprime respeito, está escrito:

PEl pueblo mexicano levanta este monumento en honor de las admirables culturas que florecieran durante la era Precolombina en regiones que son, ahora, territorio de la República… hoy se rinde un homenaje al México indígena en cuyo ejemplo reconoce características de su originalidad nacional. Com estas palabras o presidente, Adolfo López Mateos, inaugurou o grande museu. Era setembro de 1964.

Em rápidas passadas vamos ver o que duas horas podem oferecer a um curioso de poucas ideias e de muitos sentimentos ao se deparar diante da grandeza de uma civilização assassinada. Antes de nos adentrar nas salas, asteca e maia, as mais importantes das 23, ali estava um grande monumento ao Deus da Água ou que fosse melhor, à Deusa Água, que por essas terras é tão necessária e sobre a qual a população asteca erguia suas pequenas casas sob uma árvore cercada flores. As águas que caíam do alto da gigante coluna me pareciam lágrimas de um povo extinto. Entramos na sala asteca.  Fui tomado de um profundo sentimento de respeito. Já imaginaram se aquela gente toda, seus deuses e seus símbolos fossem tomados de horror pela invasão, vendo em mim um dos responsáveis pelo silêncio de tudo que morreu? De todo jeito não tem como não se sentir parte daquela história e do tamanho daquela quietude acusadora. Por lembrar o diálogo de um sacerdote cristão e de um sacerdote asteca, me culpo mais ainda.

Sacerdote Cristão - Converta-se ao nosso Deus que os vossos são falsos, cruéis e duvidosos.

Sacerdote Asteca - Fico com os meus. O Deus de vocês mata e não dá para entender que tenha três num só.

Não imagina como se esgotou o diálogo. Por certo o padre condenava com veemência os sacrifícios humanos. Da parte do padre asteca poderia vir a resposta pesada ao questionar: que Deus é esse que manda matar seu filho para diminuir seu rancor sobre suas criaturas? Ao que o padre cristão poderia responder: que deuses vocês têm que devoram suas criaturas. Mania do homem pôr nos deuses a sua semelhança. Assim fui entrando vendo festas, carrancas e imagens do cotidiano como de velhos em suas diferentes dores. Figuras seguravam espigas de milho, alimento principal. Penacho enorme e colorido enfeitava o espaço: quem não necessita se mostrar para sobreviver à sua pobreza? Cabeças e corpos mostrando seus poderes... e o que dizer sobre a grande maquete de uma feira asteca? Só faltam falar... trocam de tudo: alimentos, objetos de cozinha, facas obsidianas, flores, frutas, panelas, farinhas, sementes. Não havendo moeda vai o valor dado a cada mercadoria. A simplicidade está solta. Alguns carregam suas trocas em bolsas feitas de pano de agave penduradas ao pescoço. Adiante em ambiente contíguo assustam duas pedras, uma denominada pedra de Tizoc e a outra a pedra do Sol, ou calendário asteca. Por se saber da função, assustam, pois se prestavam ao sacrifício de jovens prisioneiros e de crianças com deficiência. Pois bem, julgavam os interpretadores de Deus que, para o sol nascer todas manhãs, o deus sol carecia de muitos corações.  Se vê na pedra o deus segurando corações em suas mãos. Os judeus, menos cruéis, para trazer a bondade divina, sacrificavam animais, caçando, porém, as tribos infiéis. E os cristãos...

Logo adiante vários tipos de registros com os códices astecas em livros com caracteres pictográficos. Figuras expressivas querendo dizer algo, mas encontraram um analfabeto.

Impressiona, também, uma pequena parte do templo maior, destruído pelos espanhóis, sobre o qual foi erguida a catedral, vista pela manhã. Em outro espaço se pode avaliar a crença em outra vida, porquanto em uma urna pode se ver dois esqueletos com todo tipo de instrumentos e alimentos, a exemplo do que vi num museu etrusco em Roma: uma parelha de cavalos ajaezada para que o falecido chegasse bem ao destino final. De fato, ninguém quer terminar como se acabam as plantas e outros animais.

Depois fomos ver a sala maia e mais outras pedras reveladoras de uma cultura adiantada. Dominavam a matemática cujos cálculos serviam para as medidas de suas construções. Dominavam também a escrita iconográfica. Causa admiração os templos externos ao museu, devolvendo ao curioso a sensação da crença. O pensamento mítico era abundante e por onde quer que se olhe aparece a preocupação com a transcendência. As pedras mostram suas realidades imaginárias incluindo-se nelas a tumba do rei Pakal, o Grande. Do cotidiano retrata-se menos do que é visto na sala asteca. Em quase todos os restos da civilização aparece uma espécie de perplexidade das figuras humanas, como que querendo decifrar o destino ou o sentido da vida. Neles a vida era um espanto, por isso os sacerdotes buscavam decifrar os significados do mistério maia. Mais uma vez a deficiência na racionalidade empobrecia a defesa da terra. A invocação aos deuses não conseguiu afastar a sanha espanhola. Ao vê-los fragilizados em suas pirâmides e templos, fica claro: a fé sem a ciência pode muito pouco. Sempre acompanha o perigo do homem, e ai dos incautos.

A visita rápida parece ser ofensiva a história de tantos povos que declinaram de sua história por tantas e incompreendidas razões. Não havendo tempo para visitar as outras 21 salas, reveladoras de tantas civilizações, cabe apenas o silencioso respeito, sabendo que os curiosos que aí passam, por sua vez, também serão parte dessa passagem vista por outros, os quais olharão admirados do pouco que resta de tanta vida.

Caía a tarde sobre o museu. Ainda um olhar reverente sobre tudo que nos dizia: veja o que restou de nossa grandeza.

Tomamos um táxi que nos levaria ao Centro Histórico, nome também de nosso hotel. O taxista nos foi mostrando outros monumentos ao longo da via da Reforma, lembrando Benito Juarez e Porfírio Dias, a quem mais tarde lançaremos um olhar crítico por suas radicalidades. Os homens e suas maquinações querendo dominar o que não se domina.


O tour da independência: caminhos da história mexicana

Manhã incerta, essa do dia 22/04. Quem será nosso guia? Quem serão nossos companheiros? Veio um homem, atrasado, anunciando entre dentes: Ketzaltour! Nos apresentamos. Vamonos, falou! Vendo o peso de uma das malas reclamou: tienem las piedras de las Pirâmides? No, pero son las cosas de mi mujer. Mui bien! Vamo-nos a pie um ratito, puesto que la policia guarda cerrada la calle. Fomos levando as malas com las piedras, por mais de uma quadra. Ao entrar na van havia um casal e mais o motorista. Leo, o guia, nos apresentou: cá estamos: Solanche, Agostino, de Bracil,  Flor y Octavio, de Peru. A las dos horas de la tarde llgaremos a Morélia. Curiosidade cheia: como serão nossos amigos do Peru, Flor e Octávio? A manhã estava fresca e gostosa. Olhávamos admirados as ruas que não eram poucas e muito longas. Tenemos calles muy largas. La de los Insurgentes tiene 42 quilômetros. Admirava as casas e os poucos prédios. Puxei conversa com Octávio que conversava baixinho com sua Flor. Falou timidamente que era advogado e ela maestra de classes especiales. Novamente silêncio. A Solange, falando com Flor: eu trabalho de voluntária com los viejos de mi tierra. A si a si, muy bien! Adonde és tu tierra? Passo Fundo! Una ciudad ao sul do Brasil.

Já íamos por mais de hora. Perguntei ao Leo: A ca donde estamos, aun es la ciudad de México? No, no, respondeu a ca estamos en Lla ciudad de... não lembro se valou Axapusco ou Apaxco. Lugar lindo, cheio de árvores, parecendo pinheiros. Aos poucos, as casas foram rareando. Estávamos, então, já em auto-pista com três vias de cada lado, um capricho de estada, cercada de colinas cinzas, cobertas de vegetação pobre. Logo começaram os pedágios. Leo falou: se puede hablar malo de muchas cosas em México, pero no de las rutas. Enfim, Morélia, no estado de Michoacán antigamente chamada Valladolid. O nome se deve a José María Morelos y Pavón, herói da Independência do México. A cidade respira Morelos, um padre que, juntamente com Hidalgo, iniciou a luta armada pela independência do México. Leo nos levou a ver a Catedral. Mas vejam só, a Igreja estava cheia de fiéis, não cabendo mais nenhum fiel, muito menos turistas. Eram duas da tarde. Fiquei atônito de ver a religiosidade de um povo, apesar das perseguições que atravessaram os século XIX e indo até os meados do XX. Lugar de muitos conventos. A política laicista e virulenta de Juarez e mais tarde de General Plutarco Elías Calles, acabou humilhando a Igreja, fechando seminários, conventos e toda ordem de posse religiosa. Uma atitude muito avessa a todo sentimento religioso daquela gente. Contradições mexicanas... Mas isso é tema pra mais tarde. Pouco me atraía mais que a terra dos índios perhépechas, pois aí ficavam os lugares arqueológicos da província de Michoacán com antigos assentamentos desse povo, uma cultura originária no estado e que teve aí sua sede política, administrativa e religiosa. Só pra ver melhor, é interessante ver as gentes e as línguas que aí se falava, povos que viviam se debatendo pra sobrevivência e domínio regional. O território michoacano esteve habitado pelos tarascos ou purhepechas, que se desenvolveram como uma cultura dominante e impuseram sua hegemonia económica, religiosa, militar e cultural às demais etnias que também habitavam a região, como os nahuas, otomíé, matlatzincas ou pirindas e tecos. Na região, falava-se, além do idioma tarasco ou purhepecha, os dialetos coacomeca, xilotlazinca, colimote, pirinda, mazahua, sayulteco, náhuatl e teca. Na atualidade os povos nativos destas terras dão o mesmo nome que a sua língua: purhépecha, ainda que também se lhes conhece como tarascos[2]. É admirável o fato de haver tantas línguas em tão pequenos territórios. Seriam as montanhas a razão de haver tantas falas?  

A Igreja foi responsável pelos assentamentos destas comunidades que desenvolveram a belíssima arte da artesania de toda ordem sob a orientação inicial do Bispo Vasco Quiroga em meados do século XVI. Por lembrar dele convém dizer que em Morélia  se encontra a Universidade Michoacana de San Nicolás de Hidalgo  cujos antecedentes históricos remontam ao antigo Colégio de San Nicolás Bispo, fundado em 1540 pelo primeiro bispo de citado acima (também conhecido como Tata Vascão). O dito Colégio tinha como finalidade formar sacerdotes para auxiliarem a Vasco de Quiroga evangelizar o território Purhépecha. Não lembro ao certo, mas ao atravessar a praça principal da cidade Leo nos levou à Unidade Universitária onde José María Morelos y Pavón lecionava aos seus alunos nos no início de 1800. Olhei com respeito a casa, sentindo as ideias revolucionárias que podiam ser ouvidas. Com que zelo eram ditas nesse lugar as primeiras palavras sobre a liberdade dos povos. Fomos também conhecer a casa onde Morelos nascera. Impressionante o quadro de uma das paredes, no qual Hidalgo, coordenador da revolução, mostrava a Morelos a direção do sul, enquanto ele iria ao norte organizar o movimento da independência. Fomos, então, almoçar, não sem antes comprar alguns mimos nas casas de artesanato, pois também é uma questão de respeito pelas mãos carinhosas e cheias de engenho. Fomos, para finalizar a passagem por Morélia, ver a igreja dos agostinianos, mas a beleza morava um pouco mais longe: a igreja das Clarissas. Em nada a igreja perdia às filigranas de Alhambra. Um encanto poético naquele canto silenciado pela decisão do índio Benito Juarez, educado pelos padres. Buenas, sempre há tempo para formação de preceitos estranhos ao ninho.

Seguimos depois a Pátzcuaro, onde iríamos passar a noite. A tarde de domingo findava numa espécie de serenidade incômoda, pois como tudo se termina, aí se via com nitidez a violência, inscrita sobre conventos e santos, que silenciavam por ordens preconceituosas. Fomos a Pátzcuaro: povo mágico, assim definido pelo ministério de turismo, sendo uma das 61 cidades que  os mexicanos chamam de povos mágicos, as quais representam melhor a cultura dos povos nativos do México.

   Cinquenta e dois quilômetros de estrada para chegar ao lugar que se pode traduzir como o lugar onde começa o paraíso. É ali que se pode ver exatamente o que era o tempo colonial. Um domingo preguiçoso nos esperava na praça central da antiga capital da província de Michoacán. Leo nos dizia também ser aí o reino das borboletas monarcas, voando 5.000 qulômetros pra se reproduzirem nestes sítios frios e montanhosos. Somente as borboletas novas retornam, sabendo de cor como voltar para o Canadá. Mas não estou para falar de borboletas, estou muito mais para falar das gentes e das impressões humanas do que vi e ouvi.  

México é incomensurável e tanto é que nos intimida, bastando dizer dos acontecimentos e das contradições humanas aí recorrentes. Li a respeito de um expedicionário cruel chamado Nunõ Gusmán que por onde passava destruía tudo e a todos. Se Cortés não era flor que se cheirasse, imaginem o Gusmán que matava sem razão os índios dominados e assustados. Por matar demais foi preso e levado para Espanha. Para ver o resultado da devastação nunhosa, foi enviado um advogado e sacerdote chamado Vasco Quiroga para ouvir sobre os terríveis acontecidos. Tornou-se bispo da região, sendo Pátzcuaro o centro administrativo da diocese. É interessante o que nos diz a história e as lendas. Narram ter feito brotar água de rocha ao bater com seu báculo sobre pedras. O que merece maior atenção é o magnífico templo de Nossa Senhora da Saúde com uma imagem de larga saia feita de milho. Quando entramos no templo, coisa de cair o queixo... uma beleza de deixar tonto qualquer descrente. Se quiserem ver melhor é só acessar o Google:  Catedral de Pátzcuaro. Colunas belíssimas sobre o altar e nas paredes filigranas de ouro. Tinham sido recentemente polidas... o dourado refulgente na manhã clara elevaria até um espírito tosco. Me apiedei de uma mulher miúda carregando, de joelhos, seu filho na direção do altar. A bondade divina poderia ver o clamor sem aquele sofrimento, avaliei amargo. Mas dos mundos e das almas há que se respeitar as diferenças. Mas, cadê Octávio? No te procupes, disse Flor. E não era a primeira vez que Octavio desaparecia e como, por encanto. Solange depois me assoprou: Flor me falou que ele é assim mesmo. Foi criado com pais muito austeros, que só fugindo pra mostrar sua liberdade. Buenas, nunca se sabe com quem se anda. Espero que sempre encontre sua Flor.

Falo mais de Tata Vascão: ao ver a pobre gente em estado de miséria, começou a criar trabalhos singelos através de diferentes artesanatos... seja em barro, seja em cobre, seja em prata, seja em palha, seja em pedra ou em diferentes madeiras abundantes na região. Este sim é o homem admirável, e a ver que 300 anos depois viesse um governo pra devastar a fé e a caridade cristã, entendendo-se que o Estado pudesse vigiar sozinho sobre a alma e a miséria humana. Brincadeira... Enquanto afastava a Igreja do exercício da caridade entregava aos americanos a exploração de empresas e ainda pior... as próprias terras, parecendo procedente a crença sobre a maldição de Montezuma. Mas veremos que aparecerão governos abertos à diversidade de costumes, inclusive os da solidariedade cristã. Deixemos de meditar. Não disse da praça frente à catedral... magnífica e dizer que tal zócalo é o terceiro do México. Final de tarde de domingo... não havia dúvidas estava em 1.600. Apesar de uns carros velhos que rodavam, aí se punham índios, criollos e espanhóis já pacificados pelo tempo que tudo esquece. Já estávamos em 22 de abril de 2013 e vamonos a conocer una artesania de cobre en Santa Clara, falou Leo ao sairmos do hotel de... Vasco Quiroga. Dizem que, no tempo prehispânico, era este o lugar para onde os príncipes perhépechas vinham descansar de suas peleias contra os astecas. Saímos, subindo cerros de árvores sem grande pretensão, se comparadas com as nossas, mas suficientes para encher de orgulho nosso guia: acá se tiene muchas arboles como se puede ver... e la artesania es prospera... como, de fato, se via por uma pequena fábrica de cadeiras. Andamos mais meia hora e chegamos a Santa Clara Del Cobre. Duas igrejas circundavam a praça. Leo narrou junto à praça, frente à igreja maior, una história muy estranha. Indicando a arcada junto ao sino, falou. Pito Peres era um homem muito interessante. Apracialhe la bebida. Subia adonde se puede ver, y, a luz de las estrellas, empezava sus histórias. El pueblo venia a oir sus fábulas. En una vez el era boticário, en ortra, cocinero, en otra oficial del exercito nacional. Em todas narrativas foe siempre un heróe. La gente se sonria mucho com Pito Peres.  Saben ustedes que hai um libro y una película de esto que vos hablo. El lbro y la película tiene el nombre de La vida inútil de Pito Peres. De cara me agradou o tal do Pito Peres. Dias depois fui a uma livraria comprar o livro, mas o vendedor: no tengo el livro pero hai la película. Está comigo, mas afianço que é bem melhor imaginar Pito Peres contando histórias do alto da torre, a ver o filme. Valeu atravessar oceanos pra conhecer Pito Peres, o contador de histórias.

Seguimos caminhando pra conocer la artesania del cobre. Um galpão do qual, pela aparência, se poderia dizer pouca coisa. Não há, porém, como não se encantar com as maravilhas que aí se encontram. Vasos coloridos, com enfeites de cobre e prata, perfazem o que de melhor os séculos e as gerações de artesãos foram gestando. Não há dúvidas que agradam aos guias levar os turistas a lugares onde possam comprar. Sempre levam também alguma vantagem, desde que tenham paciência. Isso eles tem de sobra. Acho que aprenderam com o presidente Lázaro Cárdenas que afirmava ao ouvir, em praça pública, as misérias de seu povo: eles precisam de tanta coisa! Paciência, ao menos, eu lhes posso dar. Antes de levar um recurso, Leo nos levou a ver o trabalho artesanal. O esforço de jovens batendo sobre peças de cobre apenas retirados da forja, causava sentimentos de compaixão. Depois convidavam a que malhássemos também. Imaginava a Solange, a Flor, Octávio e eu ter que viver de um trabalho pesado assim. O jovem, líder do grupo, explicava que esse era seu trabalho, fora assim por seu pai, seu avó e toda ascendência. Recebiam pelo trabalho produzido. Os artesãos que concluíam a arte também recebiam por peça finalizada. Alguna de ellas se lleva un mes, falou. O patrão é o responsável por negociar nosso trabalho. Saímos, ouvindo os golpes ritmados de dois artesãos sobre a mesma peça. Comprei lembranças, pela beleza e pela vida de quem batia o pesado martelo.

Adelante, hermanos! Vamonos a Tzintzuntzan. Pode haver som mais afável?, onomatopéia perfeita do voo dos beija-flores. Pois é isso mesmo, nos dirigimos ao lugar deles. Temprano a la maniana hai muchos que vuelan!, falou Leo. Saímos do lugar das borboletas amarelas para ir ao encontro dos colibris. Um mundo bizarro nos esperava a começar pelo convento franciscano abandonado.  Em google descreve a tragédia governamental de Juarez e Calles: Cerca del lago de Pátzcuaro se encuentra el convento de San Francisco de Tzintzuntzan. Este conjunto conventual data del Siglo XVI fundado por los Franciscanos.  En 1538 cuando el Obispo electo Vasco de Quiroga tomó posesión de su obispado, en el Templo de Tzintzuntzan, el cual aún conserva el gran atrio, el templo, una capilla abierta y el claustro, así como el llamado Hospital, el Templo de la Soledad y una original pila bautismal. Infelizmente este monumento histórico foi desapropriado dos franciscanos por entender-se que os franciscanos se fueran muy ricos, passando o patrimônio aos cofres públicos, hoje abandonado. Alguns oravam alto, na capela. Meninos eu vi, só não sabia a razão das múrmuras orações.

Uma impressão encantadora e, outra, exótica para nossa realidade, ainda nos aguardavam em Tzintzuntzan. Não há como não se comover diante dos trabalhos artesanais dos descendentes dos perhépechas. O trabalho em palha e outros materiais são de encher os olhos, tanto pela feitura delicada como pelas cores fortes e harmônicas. Não tem como não agradecer a Dom Quiroga, e lá vai quase quinhentos anos, pela iniciativa de dar a oportunidade da arte aos dedos inteligentes e às almas assustadas daquela gente. Imaginem o agradecimento daquele povo ao bispo que tanto contrastava ao cruel Gusmán.

  O exótico e o diferente, porém, nos reservavam o que o guia Leo nos havia dito em Morélia: hacen fiestas muy hermosas e alegres en cementério. Pois bem, ao passar pelo centro de Tzintzuntzan, olhamos para o inesquecível: o cemitério todo ornado de flores muito vivas, próximo das casas dos falecidos, dava impressão de um acolhimento às almas. Entre o fim dos túmulos e o início da rua nem ao menos vi um cordão. Acredito que as narrativas dos primeiros historiadores sobre os costumes indígenas, afirmando que os familiares guardavam os seus mortos em suas casas, aí quase se confirmava: não dentro de casas, pero muy cerca, em casinhas brilhantes e festivas. Leo nos narrou que, ao falecer alguém da comunidade, se fazem três dias de festas. E dizer que no dia de finado vem muita gente participar de festas muy expressivas. Eram duas de la tarde de 22/ 04. Entoces Leo habló: nosostros vamos al amoerço a  degustar um pesce del lago. Paramos num restaurante e comemos um peixe muito especial, mas sem chile( pimenta de verter lágrimas).

A seguir o caminho de Guadalajara. Já entrávamos no estado de Jalisco. Leo ia nominando as cidades com nomes da lingua perhépecha, como em ladainha. Ao passar por uma vila apelei por seu nome e Leo: Muy pequeña y io no lo sé. Todavia, gracias!, agradeci. No silêncio valeu lembrar Jorge Negrete:

Ay jalisco, Jalisco, Jalisco, Jalisco

Tú tienes tu novia que es Guadalajara

Muchacha bonita, la perla más rara,

De todo jalisco es mi Guadalajara

Y me gusta escuchar los mariachis,

Cantar con el alma sus lindas canciones,

Oir como suenan esos guitarrones

Y echarme un tequila con los valentones.

Comecei a rir solito. Tomava margaritas com a Solange, bem distante de los valentones. Chegamos ainda cedo dia 22/04 a um hotel muy hermoso, pero no logro  el nombre. Saímos pra ver uma sacola que as malas já não carregavam mais tanta artesania.  

No programa de Guadalajara havia uma visita a uma tequileria. Rondamos primeiro a cidadezinha, vendo pouco mais que bodegas cheias de garrafas. Enonces la destileria. Me surpreendeu o tamanho dos tubérculos de agave, chegando alguns a 200 quilos. Imaginei quantos litros se pode fazer se são necessários 20 quilos fabricar um deles. Muito índio tonto por um tubérculo. Os gomos são retirados pelo processo de fervura. Logo após separa-se o líquido, por moagem, em tudo se fazendo semelhante à garapa da cana de açúcar. O processo seguinte é o mesmo da fabricação da cachaça. A tequila comum passa apenas por uma destilação. As mais sofisticadas passam até por barris de carvalho chegando-se até à tequila reserva e gran-reserva. Não vi muito sentido em gastar tanto tempo para ver tão pouco. A propaganda foi extensa em torno das diversas tequilarias da região e de outros estados que a fabricam.

Voltamos da fábrica Copadria pra ver coisa melhor em Guadalajara. O guia estava também interessado em nos mostrar artes maiores do que as de destilaria. Falou mais ou menos assim, ao mostrar nas escadarias da Suprema Corte de Justicia de la Nación: os afrescos constam de cuatro painéis, englobando tres temas principais. Em dois se refere ao tema da justiça; neles satiriza a prática da justiça. Significativa é a sátira contra os charlatões, os demagogos e os políticos. Outro tema se refere às riquezas nacionais, os produtos da terra: metais preciosos, petróleo e os movimentos sociais dos trabalhadores. Para ver a diferença entre Rivera y Siqueiros, pode-se dizer que Orozco retrata a condição humana de forma apolítica; se interesa por valores universais e não insiste tanto en valores nacionais. Disto se deduz  que suas imagens mais características comuniquen a capacidade do homem de controlar seu destino e sua liberdade diante dos  fatores determinantes da história, da religião e da tecnología[3]

Nossos amigos Actavio e Flor comunicaram que estavam fazendo 25 anos de casados. Rimos juntos ao dizer-lhes da piada de um casal que comemorava cinquenta de união. A mulher lembrou ao marido que pela data valia matar um porco, um cabrito e um bezerro. O marido respondeu que os animaizinhos não tinham culpa do acontecido. O garçom riu também e disse estar feliz por não ser casado.

Depois do almoerço fomos ver mais obras do Orozco. Por serem pesadas não combinavam muito com a digestão. Acho que pela pouca atenção dada às explicações de Leo, ele nos deixou a tarde livre. A Solange e eu decidimos descansar no hotel, pois que o dia não fora devagar. Assalto no meio do camino! Alguém deu-me um safanão pelas costas. Pensei que fosse alguém com forte expressão de amizade. Quando olhei pra tras, vi alguém correndo e a correntinha do pescoço estava em minhas mãos. Ao mostrar pra a Solange dizendo que o desgraçado não conseguira levar o que queria, uma mão forte se abateu sobre a mina. Lutamos por um momento e a correntinha de Jesus crucificado ficou partida. A parte maior ficou comigo e a outra com o ladrão. Jesus ficou com um dos ladrões.

Continuamos nossa ida ao hotel. E para tirar o peso do azar a Solange foi tomar um banho, descobrindo que seus chinelos haviam sido surripiados. Fiquei aflito, mas o azar não havia se esgotado. A noite chegou e alguém, foi dito pelo Leo, nos levaria a ver um show mariachi. Entramos no bariachi. Quem nos levou foi o próprio Leo e com o motorista. Desconfiei da sorte ao nos adentrar num espaço de quinta categoria. Fiquei na portaría esperando que o pequeno grupo entrasse. Perguntei ao recepcionista pelo valor do ingresso: nada, puede entrar señor! Solo el consumo, señor!  Percebi que o valor do transporte havia sido muy estraño! Entendi como um terceiro assalto! Uma raiva mal contida começou a estragar definitivamente a noite. Vou pegar um taxi e me mandar! Por favor, te acalme, falou a Solange, deveremos ficar mais dias com eles! Ao final da miserável noite, um belo show de mariachis. Vamonos, disse o Leo. No caminho explicou que o termo  Mariachi nasceu nessa região. Houve um tempo que tivemos muitos franceses por aqui. Convidavam as bandas de músicos mexicanos para tocar em seus mariage(casamentos). Daí a associação de mariachi aos músicos e cantores, o que se tornou um fenômeno nacional por influencia do presidente Porfírio que costumava contratá-los nas festas de sua rica corte.  E cadê dormir? Naquela noite matei uns cinco ladrões. Estava um valentão de setenta e um anos peleando contra um bando deles. De tanto matar, cansei, adormecendo como um velho inocente. E viva Guadalajara, seus…! Outro dia, 24/04, maniana, ainda me defendia de los ratónes de mierda.


Tlaquepaque

De Guadalajara, seguimos por 15 minutos até Tlaquepaque, o que significa terra de artesanato, entretanto, não é sobre a riqueza da artesania que vou me referir. As catrinas é que me chamaram atenção. Esqueletos de mulheres com lindos vestidos. À medida que Leo  ia hablando, as tais figuras me despertavam curiosidade. Buenas, hablava Leo, o gravurista José Guadalupe Posada foi o criador da famosa "Catrina". Mira que cosa, ele, então, inventou a tal personagem como deboche às ricas mulheres do tempo do presidente Porfírio Dias. Miren, a população da época se sentia sufocada pelos privilégios concedidos aos ricos durante seu mandato o que durou por mais de trinta anos. Enquanto isso a população mexicana sofria toda sorte de mazelas. Na verdade, as catrinas são um deboche aos ricos e ao presidente. Tornaram-se, assim, parte do folclore. Enquanto a Solange se divertia em ver algo interessante, sentei-me num banco e me vinham ideias sobre a morte mexicana. lembrei o que vi em Tzintzuntzan. Lembrei  as impressões de Veríssimo: em alguns pueblos se observam alguns usos: costumam os índios tapetar o caminho que leva da tumba do morto até a porta de sua casa, pra que o defunto não se extravie. O certo é que nas cerimônias de finados e de velório não falta o pulque e a tequila. Durante três anos os familiares deixam oferendas, pois acreditam que o falecido necessita de algo para perfazer o áspero caminho até atingir a morada definitiva. Em tudo há semelhanças com a crença católica, na qual o morto também faz o seu périplo pra acertar suas contas, antes de chegar ao seu destino. Quero dizer que, por estas bandas, a morte não lhes parece tão trágica, e disto Veríssimo dá outros testemunhos ao associar a figura de caveira em cerimônias de casamento e mesmo na atividade sexual. Lembro uma brincadeira contada sobre Pancho Villa, olhando para uma catrina bem vestida, postada na vitrine bem à minha frente. Vinha ele de refregas,  encontrando um dos amigos de Porfírio Dias, seu inimigo. Preguntó asi no más:

Te gustam las flores?

Mucho!, respondeu seu desafeto.

Maniana trendrás muchas, e disparou sua arma.

Noutro dia encontrou outro desafeto e preguntó:

Te gustam las flores?

No, no me gustam las flores, respondeu seu desafeto.

Murirás por falta de gusto, e disparou sua arma.

Lembrei a seguir das touradas mexicanas da qual contam sobre o fascínio que exercem sobre a população mestiça. A violência, a morte e o sangue faziam parte da história dos sacrifícios astecas: uma violência repetida agora nas arenas.

Como a Solange demorasse, me pus a pensar sobre a razão do sentimento de pesar percebido em tantos olhares mexicanos. Saudades de que? A religiosidade tão carregada de dor, vista em santos e em Cristos. Me reportei então, para a Virgem Morena. Os sacerdotes astecas sacrificavam suas vítimas a Ketzalcoat que havia morrido pelo fogo, se transformando na estrela Dalva. Buscavam o perdão diante das faltas e os benefícios necessários. Semelhante ao sacrifício cruento de Cristo e à repetição do sacrifício incruento nas missas eram os sacrifícios astecas, o que facilitou a devoção dos convertidos, tendo-se ainda, para ajudar o fascínio, os ritos devocionais, os cantos, as tubas dos órgãos, o incenso e o ouro dos altares. A crença em outra vida estava para mais um elemento facilitador das conversões. E a Virgem Morena que prometia proteger a todos, senão nesta, ao menos na outra. Grandiosa e convincente a aparição da Senhora de Guadalupe, talvez o mais significativo evento religioso para união dos índios em torno da Igreja. A aparição se deu a dom Diego exatamente no lugar do templo de uma virgem, Tonantzin, conhecida como mãezinha, assim conhecida pelos astecas . Nada faltava para convencer os corações indígenas a se reunirem em torno dela, ainda mais sendo a mãe de Deus. Dá para se entender, então, que os altares estejam cheios de quem é capaz de proteger diante de tanta devastação. Se as figuras de Cristos traduzem morte, as da Virgem, salvação. De todo jeito que se olhar o mexicano, ele ainda parece assustado, se não tanto ao menos desconfiado, por isso o apego a uma mãe diante de tanto horror. Isso é visto também por Veríssimo: como é possível ser otimista e confiante num país cujos governantes não mantêm suas promessas, e vivem recorrendo à fraude, ao assassinato político, à violência e à autoridade arbitrária?

Parece, pois, preferir, então, a quietude do clássico mexicano, sentado de maneira fetal, junto a um pé de cacto e de agave, buscando consolo na terra que o detém. Por não ter muito que esperar, uma vez que a conquista deixou magoas em sua origem, ele fica quieto, quando não se exalta como que defendendo de possíveis ameaças. Mais uma vez Veríssimo aponta para a angústia mexicana e suas razões escrevendo mais ou menos assim: O México sofreu o trauma da invasão americana: perdeu em favor dos Estados Unidos a maior parte de seu terrritório. Por causa dessas humilhações, o mexicano busca afirmar-se numa mexicanidade exacerbada [4]. Aponta o escritor sobre aa forma agressiva com que é comum ouvir o mexicano saudadr sua pátria: Viva o México, seus....!

No meio de tais reflexões, apareceu Solange com uma bolsa de couro me dizendo ser de artesania indígena. Vendo a marca, fiz que acreditei(não foi bem assim mas que comprou, comprou). Nos dirigimos depois para o local do almoço, conforme horário indicado. Un Bueno almoerço e después Guanajuato, o lugar das montanhas semelhantes às rãs, daí seu nome e de um sol escaldante.

Dormimos no hotel Holiday In, antes de chegar nas tais das montanhas. Põe montanhas naquilo! Guanajuato fica dentro de um vale. Ali viviam os donos das minas de prata e os mineiros. Respira-se uma geografia urbana de ruelas e becos. Há em tudo lembranças de Cervantes. Dizem ser a cidade mais cervantina do mundo. Leo, no adro de uma igreja, revelou-nos que aí se realizam parte dos festivais em honra de Cervantes. Peças são apresentadas e o mundo todo, principalmente, de fala espanhola, vem celebrar Dom Quixote e seu fiel escudeiro. Fomos caminhando, vendo pedras e becos azuis. Leo, pelo caminho, fez questão de me soprar no ouvido: mira Augustino, vês tu el beco de Aquino? Teniase acá una muchacha e su amante que vênia namorarla a la noche.  Quado muy concitada ella diziale: aqui, no!! Donde entonces tenimos em nombre Aquino.

Para melhorar a impressão que sua brincadeira herótica poderia me trazer, nos levou para ver a Igreja de San Cayetano. Esta igreja rósea  é um belo testemunho da arte mourisca. Não bastasse isso tudo, Guanajuato lembra as ruas de uma antiga cidade muçulmana. Aí os espíritos cristãos e mouros se encontram.  Levou-nos depois ao beco de los besos. Leo, então, nos apresentou a um jovem guia. Este contou-nos a comovente história de um pobre mineiro que se enamorara da filha do dono de uma rica mina de prata. Por não concordar com tal humilhação o pai da amante acabou matando aos dois enquanto se beijavam. Para completar a história o jovem mexicano ia narrando as várias posições do corpo dos amantes enquanto se beijavam. História, sexualidade e religião aí se soltam como loucas.

Me comoveu, a seguir, ver uma fortaleza fincada no início da cidade a dita Alhóndiga de Granaditas construída como um monumento no início da Guerra da Independência do México. A Alhóndiga de Granaditas, em Guanajuato, é um edifício histórico, um monumento e um museu de história e arte regional construído entre 1798 e 1809. Alhóndiga significa “armazém de grãos” ou mercado, já que o edifício albergava, originalmente, um grande armazém de grãos e sementes, ou celeiro. Em 1810, a Alhóndiga era uma fortaleza para as tropas espanholas e líderes leais ao regime, e foi o primeiro local da primeira grande vitóriacontra os espanhóis. Sob o comando de Miguel Hidalgo, um mineiro local chamado José de los Reyes Martínez, apelidado El Pípila, atou uma grande pedra sobre as costas para desviar as balas, abrindo uma brecha nas defesas espanholas ao queimar as portas da fortaleza. A mortandade foi cruel e geral, não sobrando nenhum espanhol. Buenas, o Pe. Hidalgo, no domingo anterior, havia convocado o povo não para celebrar uma missa em sua paróquia, Dolores, mas, para animá-la para a liberdade da nação mexicana Na madrugada de 16 de setembro de 1810 começou a luta aí onde estávamos. A mortandade de Guanajuato valeu uma reação imediata dos espanhóis. Começaram perseguições de toda ordem. Damos uma volta na fortaleza. Olhamos para o alto para onde Leo nos apontava ferros cujas pontas estavam retorcidas. Miren! Aca se fijaram las cabeças de los heroes! Olhei com muito respeito ao alto dos quatro cantos do vetusto edifício. Por dies años se fijaram los cráneos! Me fixei no canto de Hidalgo. Solamente con la declaración de la libertad se fue concedido la dignidad de sepultura: 27 de setembro de 1821. Comparei a luta deles pela independência com a maneira pacífica da nossa. Mas não estávamos para chorar os seus mortos e suas conquistas. Tomamos um trenzinho e subimos a um mirador. Despedidas de Guanajuato. Lancei olhos adentro a última visão, tendo por referência a Igreja rosa de San Cayetano... havia, porém, um vendedor de paisagens e otras cositas mas. Me deparei com uma litografia na qual Dom Quixote, recostado sobre um feixe de feno, narrava histórias a Sancho. Não titubiei... guardei a ilustre figura com seu fiel escudeiro e nos fomos a San Miguel de Allende.

Aí, um grande monumento a Reyes recebia os turistas, o herói da pedra às costas. Pra não deixar a minha preciosidade quixotesca na van, levei-a carinhosamente ao Hotel: Imperio de los Angeles. Saímos a ver a cidade. Encontramos índias otomies vendendo bonecas. A Igreja, sim, construída sob as ordens de um simples pedreiro é de se tirar o chapéu. Nada mais nos agradou, pois nossos olhos ainda estavam encantados com Guanajuato. Descansamos pra depois cear algo. Se alguém desejar sofrer com garçom que vá ao restaurante desse hotel. Os três garçons, que nos serviam e à Flor e a Octávio, semelhantes a personagens de um filme em câmara lenta. Os talheres eram trazidos de um a um. Os pratos vinham frios pelo tempo que levavam entre a cozinha e o salão. Cansados pela lentidão, fomos dormir. Outro dia pela manhã nos despedimos de los angeles, encontrados por todos os cantos. Querétaro que nos aguarde. Pela metade do caminho: Solange você guardou a folha de Quixote? Eu Não! Ai que dor! Que merda! Esquecemos o nosso herói! Falei com Leo... mas ele não deu importância ao nosso esquecimento. Pra mim, ao contrário, aí estava retratada parte de minha identidade: contador de histórias. A dor foi passando à medida que visitávamos Querétaro: por tradução, lugar onde rolam as pedras. Visitamos a casa da corregedoria. Enquanto olhávamos apareceu o governador que nos interpelou de onde vínhamos.   Respondemos e a sua trupe foi se retirando. Leo me chamou para perto: esto es um típico PRI! No lo entiendo, que és PRI? Un partido mexicano mentiroso que significa Partido Revolucionário Institucional, pero poco revolucionário. Hai contradicción en el nombre: como puede ser revolucionário e institucional? Por falar baixinho me calei, julgando que não quisesse continuar a conversa. Será que ainda a política ainda lhes mete medo?

Nos encantou a história da dona desta casa durante o movimento da independência: Josefa Ortiz de Dominguez. Ela pertencia ao movimento literário de um grupo de criollos, pessoas nascidas no México, e por esta razão de pouco prestígio e, por tanto, ressentidas. Como o sonho da liberdade atravessava toda a América, este grupo se tornou também insurgente e sonhador de independência. Um traidor do grupo avisou sobre as segundas intenções do pessoal. As autoridades de Querétaro se puseram a caçá-los. O marido de Josefa, Miguel Domínguez, corregedor escondeu sua esposa sob chaves nesta casa. O alcaide passando por debaixo do quarto onde estaba escondida, ouviu dela que avisasse Hidalgo de que o movimiento havia sido descoberto. Por fim, Ignacio Perez, também insurgente, montou em seu cavalo e se foi para Dolores, povoado de Guanajuato, avisar padre Hidalgo. Este recebeu o comunicado e, na missa, em vez de orações, insurgiu-se contra Espanha, convocando a população para a independencia. Era 16 de setembro de 1810. Muitas histórias se contam em torno deste episódio. Moral da história: o ressentimento é sum perigo e monta sobre ideias revolucionárias.

Como despedida de Querétaro, caminhamos até a igreja de São Tiago, o matador de mouros, belíssima, mas de pouca inspiração para a solidariedade e a tolerância. Assim se terminava o caminho de nosso tour, carregando-se no peito a grande senhora María Josefa Crescencia Ortiz Téllez-Girón.


Voltando para a cidade do México


Um sentimento de fim de viagem, mas sem grandes saudades. Retornamos, então, para o mesmo hotel, NH Centro Histórico. A Solange quis visitar um Shoping, mas, para a felicidade minha, nada lhe agradou. Retornamos à catedral para apreciar todas as arquiteturas aí reunidas. Não descansei enquanto não adquiri o DVD A Vida Inútil de Pito Perez. Era 26/04. Por temermos não encontrar mais ingressos para o Ballet Folclórico Mexicano, caminhamos até o Teatro de Belas Artes. Havia ainda algumas cadeiras vagas para o domingo às 9 horas da manhã, voltando depois para o hotel.  

Dia 27: a grande alegria de conhecer Xochimilco, antes, porém, conhecer a Casa Azul de Frida Kahlo. Em seus desenhos e pinturas de qualidade duvidosa é revelada uma mulher que em tudo tem a ver com o México. A sua angústia se mostra por todos os cantos da casa transformada em museu. Suas tragédias particulares expressam uma mulher em sofrimento. Quem deseja saber mais a seu respeito é só assistir o filme Frida Kahlo, 2002 de Paul Leduc.  Acredito que sua fama de artista tem mais a ver com seu marido Diego Rivera e com a bem feita história levada às telas. Depois Xochimilco: ouvi vozes e vi cores de toda ordem dentro daqueles canais de água que traduziam muito mal o que fora a cidade de Tenochtitlan, uma ilha dentro do lago Texcoco. A ilha em que a cidade fora erguida foi alargada com a adição de terra e rocha. Os astecas foram cuidadosos ao manter uma distância adequada do continente, para fins de defesa, em caso de guerra. Devido ao fato de ter poucas terras cultiváveis, Acamapichitli, um dos tantos rei, expandiu o sistema das chinampas que consistiam de ilhas artificias. Elas eram construídas sobre uma teia de tábuas e fibras com uma pilha de juncos por cima. Depois jogavam lodo sobre os juncos. Ao plantarem uma árvore, um pouco de milho e flores, concediam uma visão florida de toda a cidade, fazendo até sete colheitas por ano. A conquista não respeitou nenhuma flor. Vi as raízes fortes das altas árvores, possivelmente herdeiras daquelas dos astecas, mas a distância dos turistas de tudo que fora a origem estava muito longe de nós. Meia tarde sobre as canoas coloridas, não havendo nenhuma distância, porém, entre a morte de quem habitou das cores alegres que se projetavam na paisagem da tarde. Voltamos e ainda, feita na hora, consegui de um talhador a pérola de um índio entre cacto e agave, da qual preparei um quadro que me assiste enquanto escrevo. À noite fomos jantar no Bellini Restaurante Giratório. Pedi um peixe, mas como me parece que no México não sabem fazer comida sem pimenta, pedi que meu peixe assim viesse, sem pimenta. Se pusessem a posta numa água morna e de pois a retirassem, por certo, teria o mesmo sabor. Que lástima. Por fim para passar a última noite assistimos uma apresentação mariachi numa casa de shows na praça Garibaldi. Encantos mil!  Depois nos divertimos aí  por ver e ouvir grupos e mais grupos deles. O guia nos advertiu: estan trabajando! Ele nos disse que estão aí para aceitar convites para festas de toda ordem. Asi ellos se viven! Passamos por barracas e a Solange comprou tantos mimos que desconfiei querer levar o México inteiro como lembrança. Enfim, da beleza e do bem também se cansa: fomos dormir.

Último dia,  28/04, residia em nós uma alegria intensa por ver em seguida o Ballet Mexicano. Às nove horas começou o espetáculo e por mais de hora me torneu um devoto lacrimejante. Uma convulsão silenciosa concorria com as diversas danças. Los hijos del Sol - Antiguos sones de Michoacán - El Cupidito - Fiesta Veracruzana - Los Quetzales - La Danza del Venado - La jarana yucateca - Navidad en Jalisco. Mais de sessenta dançarinos e mariachis  faziam acontecer emoções dos diferentes lugares do México. Acho que os astecas se alimentavam de cores e de movimentos.

Não dá, porém, para esquecer a dança das mulheres que lutaram em 1910 contra o ditador Porfírio Dias. Já não mais me comovia. Havia um desejo de gritar, que a emoção sufocava. Saímos do Teatro e a Solange uma lembrança de prata, coisa pequena, pra não esquecer as suas riquezas, México!

Malas prontas e às três de la tarde, Ketzaltour nos apanha no hotel rumo ao aeroporto. Enquanto íamos por ruas quase vazias naquele domingo de sol, o motorista perguntou se estávamos satisfeitos. Começou uma conversa na qual se revelou o máximo de solidariedade por parte dele. Ao lhe dizer que havia esquecido minha folha de Quixote, vejam só! Sentiu-se responsável por ela. Começou a falar com o responsável pela empresa. Depois me disse que poderia estar tranquilo: No te preocupes Ketzaltour va a comunicarse con el Hotel Imperio de los Angeles. Buenas, encurtando a história. Chequei em Passo Fundo e enviei email para a Ketzaltour. Fizeram de tudo, mas não encontraram nem Quixote nem Sancho. Agradeci o esforço brincando: vai ver que o burro de Sancho comeu a folha.

Três horas de espera: é muito tempo para uma mulher ficar no freeshopp sem ver demais! Para o bem geral gastamos os últimos dólares, que México merece.

Durante o voo fiquei quieto por largo tempo, até que em meu espírito me veio um impulso de tentar compreender mais uma contradição mexicana: a perseguição contra a Igreja foi trágica para um povo tão católico.

Conforme a percepção de Verísssimo, parece estranho que um Estado praticamente ateu tenha submetido a Igreja a leis tão duras. Leo falou: Juarez elimina da Igreja a tarefa da educação; proíbe a Igreja administrar bens ou empresas não destinadas ao culto religioso; impede os sacerdotes de aspirarem a qualquer cargo político; permite ao Governo controlar a prática do culto.

Ao chegar em casa tirei à limpo a história das lutas do Estado contra a igreja e os seus fiéis. Um texto esclarecedor de Gustavo Carrère Cadirant me orientou sobre tais acontecimentos e mais nítidas ficaram ainda as contradições daquela terra. Os litígios fortes foram acalmados somente com o presidente Cárdenas em 1938. Bem como foi dito no início: México não vive com calma, há um sino que se move, estando o badalo sempre nas extremidades. Quando Benito Juarez é eleito presidente se viu forçado pela loja norte-americana de Nova Orleans,  em 1857, a criar as leis da reforma do Estado e entre elas as relações com a Igreja. Os conflitos nem ao menos se suavizaram com Porfírio Dias, mas em razão dos acertos da sociedade rica e da Igreja, as inconformidades se tornaram apenas um pouco abafadas. Salienta o historiador que também no seio da Igreja havia conflitos, alguns inclinados para a realidade popular e outros em defesa de um estado de coisas onde a diferença de classes era insuportável. Retomei o livro de Érico Veríssimo. E ali em seus diálogos com o sociólogo Vasconcelos são destacadas duras opiniões contra a Reforma. Se a purificação da Igreja era necessária, mas não sua destruição. Juarez exagerou enquanto instituição auxiliar da educação e da promoção social. As terras e os tesouros da arte da Igreja foram parar nos Estados Unidos ou nas mãos de milionários deste país. Assim, pois, como consequência das leis da Reforma ficou sendo o México o único país oficialmente ateu da terra.

Com Plutarco Elías Calles,  de 1926-1927, vieram tempos piores. Ele fazia tempo andava mordido e queria finalizar a obra de Juarez. Inventou de baixar uma lei na qual, além re reafirmar o que Juarez havia promulgado, criou uma lei na qual proibia os exercícios religiosos nas igrejas. Era de se esperar: a insurreição iniciou-se no estado de Jalisco.

A revolução conhecida como Cristiada ou revolução de los cristeros, cujo nome se originou pela saudação dos revoltosos: Viva Cristo Rei!, iniciou e terminou com muitas violências  Um movimento inicialmente sem muita força, resultou na formação de um exército de pellados e de outros de maior poder, com mais de 50.000 homens armados. O site www.revistacriterio.com.ar traz um artigo de Jean Meyer. No texto é retratado o seguinte diálogo entre o governador de Jalisco, Barba Gonzáles, e o presidente Calles.

Barba González: "Senhor Presidente, estou muito preocupado com o rumo que está tomando o conflito religioso; as pessoas vão se rebelar".

Calles: "Não, não. Os católicos não se rebelarão. A maioria está formada por mulheres e velhos que acreditam no além por medo da morte".

Barba González: "Não, senhor Presidente, tenho certeza que em Jalisco é diferente; os católicos são bravos".

Calles: "Jalisco é o galinheiro da República".

E Barba González comentará em suas memórias: "Que galos saíram daquele galinheiro!"

Calles: "Se eles se rebelarem, será melhor para nós e pior para eles, nós acabaremos com eles de uma vez por todas".

Depois o presidente se dirige ao general que estava presente, o temível Amaro, secretário da Defesa Nacional.

Calles: "General, nós acabaremos com eles em quanto tempo?"

Amaro: "Em três semanas, general".

E Barba González comenta: " Deus queira que não sejam três anos".

Levaram exatamente três anos, não para esmagá-los, senão para negociar os "acordos".

Toca, por fim, ao presidente Lázaro Cárdenas o papel de pacificador: em 1938, o conflito religioso termina de maneira definitiva( definitiva?). Mais de 80 anos de violências!

Jean escreve ao final de seu artigo:

A Igreja não falava disso em público, nem sequer nos seminários. Na mesma história da Igreja mexicana se evitava o capítulo da Cristiada, ou era abordado com tal prudência que acabava caindo no ridículo histórico. Eu me lembro muito bem da surpresa que tive em 1968 em Ponte Grande, Jalisco. Ali, no estado que foi epicentro da sublevação armada, estava o seminário da Companhia de Jesus, onde eu estava trabalhando porque havia um importante arquivo que os jesuítas me abriram generosamente, diferente do governo, que nesse momento não me permitira conferir nenhum arquivo das instâncias oficiais da Igreja. Um dia alguns jovens estudantes aproximaram-se de mim e me perguntaram por que passava todos os fins de semana fechado, trabalhando com textos, cadernos e documentos. Conversei com eles sobre a minha pesquisa sobre a Cristiada, e percebi que não sabiam absolutamente nada, nada, apesar de viverem numa região que havia sido um dos epicentros da guerra.

Bem certo: uma guerra! Pudemos conferir o que a Reforma pretendeu. Durante o tour da Independência ouvimos, por repetidas vezes, de Leo: Acá teníamos un convento de monjas, acá una escuela de jesuítas, de franciscanos, de agostinianos de clarissas, de... ahora tenemos un museo, una escuela popular, una escuela de ofícios, acá teníamos una universidad... Assim ia falando Leo. Perguntei-lhe. Que te parece la Refoma con la expropriación de todo que tenia la Iglesia? Eso fué um error! Nada mais disse, havendo depois um silêncio temeroso.

Buenas, termino por aqui minhas lembranças e fico ainda mais com a certeza: México um país de contradições parecendo sempre ocultar uma próxima revolução por causa de uma história cujos fantasmas não se calam. E repito No los comprendo pero me gusta verlos muy cerca. Hai que amarlos! Mui queridos, pero muy locos.


Referências

  1. Relato de uma viagem
  2. lhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Michoac%C3%A1n#Arquitetura_religiosa
  3. http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Clemente_Orozco#Suprema_Corte_de_Justicia_de_la_Naci.C3.B3n.
  4. VERÍSSIMO, Érico. México. 3ª edição. Porto Alegre: Editora Globo, 1964.