Um momento de beleza justifica uma vida

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Um momento de beleza justifica uma vida

Em 06/05/2014, por Alice Silva Tocchetto


ALICE SILVA TOCCHETTO


Algo inusitado aconteceu em minha vida, que lembrei hoje por acaso.  É uma lembrança tão antiga que me surpreendeu, até porque foi algo que não me lembro de ter comentado com alguém.

Em uma tarde de verão, eu com 16 ou 17 anos, Uma senhora me pediu água.   Eu a conhecia: era uma velhinha que morava no abrigo da prefeitura na Vila Operária e que passava todos os dias pela nossa rua, geralmente falando sozinha, coberta de trapos, carregando sacolas, pedindo esmolas.  A “velhinha louca” a chamavam.

Ao chegar em casa, na Capitão Araújo, bem próximo ao CENAV, entrei no pátio e quando fui fechar o portão lá estava ela, parada.  Pediu água e me deu um sorriso simpático... Convidei-a para entrar no pátio, ela entrou e sentou-se na sombra, no muro embaixo da varanda e largou suas sacolas, suspirando.   Voltei com a água e ela estava sorrindo, os olhos  azuis doces que surpreendiam pela beleza, quando sorria.  Estava falando sozinha...  Tomou a água e começou a cantarolar uma música italiana antiga que eu não conhecia.

Naquela época as músicas italianas estavam no auge, ouvíamos o dia todo cantores como Pino Donaggio, Rita Pavone, etc. E eu, como qualquer um, conhecia bem o palavreado, mas não conheci a música que ela cantarolava.  Fiquei curiosa, achando estranho e ela me olhou com o olhar maroto e disse em um português misturado a um forte sotaque italiano que não sei repetir, mais ou menos assim: Tive um grande amore. Um grande amore... E calou-se pensativa.  Fiquei em silêncio, aguardando.  Ela levantou a cabeça e me disse sempre com sotaque, que ele lhe servia vinho tinto e lhe dizia amore mio, que ele era um bom homem, carinhoso, tão lindo...

Ah, uma boa história de amor sempre me encantou e imediatamente minha imaginação começou a correr mundo tentando saber mais, fui dando trela, ela falava, falava, mas logo começou a falar italiano mesmo e passei a não entender mais nada.  Seu olhar ficou brilhante, meigo, o sorriso tão significativo enquanto fazia gestos com as mãos, de enlevo, de carinho e eu sem conseguir entender, sentindo apenas a importância que aquilo tinha para ela.  Era tão grande meu esforço que sentia vontade de chorar, percebendo sua emoção, tentando entender seus sentimentos - o que ela resumia ali, porque certamente estava rasgando seu coração, bem na minha frente.  Algo muito importante acontecera em sua vida, não sei se ela não sabia dizer em português ou se as lembranças se misturavam em seu palavrório.  Mas, sem dúvida, havia forte emoção em seus olhos, em seu sorriso, em seus gestos...

Por alguns instantes ela pareceu ter quinze anos, seu corpo delicado e miúdo parecia ganhar vida, os olhos azuis cintilavam... estava muito emocionada. Deixou de ser a velhinha louca e passou a ser rainha, a mocinha, com uma loucura plena de paixão e de sentimentos.  Uma riqueza incrível de emoções em sua voz...

Depois, suspirando, ela não disse mais uma palavra que eu entendesse e parou de falar, ficou momentos em silêncio baixou os olhos e a voz, me entregou o copo, pegando suas sacolas.  Ainda perguntei: Onde ele está? E entendi seu gesto triste de ombros, apontando a mão para o céu.  Quem era ele?  Perguntei, diga seu nome.

Ela me olhou séria e disse o nome de uma personalidade histórica de Passo Fundo, nome de rua, de escola.  Eu ri, era a velhinha louca novamente. Ela se virou parecendo entristecida e partiu. Nunca mais a vi...  

Meu coração se inquieta ainda hoje ao lembrar-me dela, da emoção que vivia ao tentar me contar sua história de amor, algo tão forte e significativo para ela...  Seu olhar brilhante, travestido de paixão e o sorriso maroto revivendo e repetindo as palavras dele a ela...

Na angústia frustrante de não conseguir entender as palavras naquele triste dialeto italiano, nunca pude saber se aquela tinha sido uma relação duradoura ou um acontecimento isolado, se ela fora a esposa, a amante, ou se foi coisa de apenas um instante, mas que representou a sua vida, só isto eu entendia.  Como diz Rubem Alves: “cada momento vivido e amado, por efêmero que seja, está destinado à eternidade. Um único momento de beleza justifica uma vida”.

Fico triste ainda ao lembrar minha incredulidade ao ouvir o nome de tal pessoa, um médico importante na cidade e hoje, bem mais vivida penso com meus botões, por que não? Até fui procurar na internet e soube que o tal sujeito morrera há apenas alguns anos quando isso aconteceu, havia uma possibilidade histórica e era a mesma cidade, por que não?   O que esta mulher poderia ter representado a este homem?

Então penso comigo mesma, que ela poderia viver ali e passar por aquele lugar todos os dias pela proximidade da escola que levava o nome de seu amado e que talvez isso fosse tudo o que restara de bom ou de concreto na sua vida... Mas é só um pensamento... Só um pensamento...