Memórias sobre meu pai: Astrogildo de Azevedo

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Memórias sobre meu pai: Astrogildo de Azevedo

Em 30/11/2012, por Luiz Juarez Nogueira de Azevedo


LUIZ JUAREZ NOGUEIRA DE AZEVEDO[1]


Meu pai, cujo nome era Astrogildo Palmeiro de Azevedo, por ele simplificado para Astrogildo de Azevedo, era de origem portuguesa pelos quatro costados. Em suas raízes mais remotas aparecem outras etnias, como castelhanos, galegos, italianos, ingleses, normandos, flamengos, germânicos, francos e visigodos, celtas, escoceses, franceses, árabes e judeus, havendo otomanos e romanos, e até indígenas do Brasil.[2]

Para falar nos ascendentes mais recentes, em linha reta, eles eram portugueses do Reino, forçados a emigrar para o Rio Grande, no último quartel do século XVIII, devido à ocupação da Colônia do Sacramento pelos castelhanos.

Eles vieram a unir-se por casamentos, geração após geração, a descendentes de ilhéus da Madeira, e a netas de tropeiros e bandeirantes paulistas e vicentinos, de outros sacramentinos e de lagunistas. É possível dizer que nele se concentravam todos os sangues das etnias que fundaram o Rio Grande. Com efeito, entre seus avoengos mais recentes aparecem os povoadores mais importantes, que até o fim do século XVIII vieram se estabelecer neste Continente de São Pedro, como Francisco Pinto Bandeira, Jerônimo de Ornellas, Antônio de Sousa Fernando, João Carneiro da Fontoura, José Leite de Oliveira, João José Palmeiro e os dois José de Azevedo e Souza (pai e filho), entre outros.

O pai era tímido e introvertido, mas em família muito alegre e de convívio ameno, muito divertido. Sua presença inspirava alegria e paz. Extremamente preocupado com os filhos, especialmente com a saúde e o bem-estar de cada um, com eles geralmente usava de discreta e afetuosa autoridade, que era o modo pelo qual se fazia, permanentemente, respeitar.

Lamento não ter mantido com ele conversações mais demoradas e proveitosas. Nem sei se as permitiria. Embora tivéssemos sempre estado juntos, pois em verdade jamais me afastei de seu convívio cotidiano, gostaria de tê-lo feito falar mais, contar-me sobre sua vida, suas experiências, seus gostos, suas leituras e seus sonhos. Era difícil colher dele uma opinião. Preferia mais ouvir do que falar. Como era de poucas palavras, raramente externava seus sentimentos, ou pouco exprimia sobre suas vivências e anseios. A relação filial, respeitosa e quase distante, dificultava expansões. Na época, não era usual os pais fazerem confidências aos filhos. O que pude saber dele foi por narrações de minha mãe e por relatos de terceiros. Um pouco por minha própria observação, superficial à época, porque, quando jovens, fechados em nosso círculo de experiências e emoções próprias da idade e em nossos interesses imediatos, não costumamos prestar muita atenção a nossos pais e a outras pessoas mais velhas, que encaramos como seres de outra dimensão.

A mim legou, além do biotipo, a mesma tendência à introversão, o temperamento retraído e um incurável ceticismo com relação aos seres humanos. Muito mais do que eu, era pouco dado a intimidades de família.

Dos poucos amigos que teve, havia seus colegas tabeliães, os cunhados Honorino Malheiros e Rui Vergueiro, e o ajudante Jerônimo Marques Sobrinho. Ia quase todos os dias aos dois cartórios, onde trabalhavam seus fraternais amigos. Ali se demorava em conversas descontraídas com eles, tratando de assuntos de trabalho, invariavelmente entremeados por brincadeiras, chistes e histórias jocosas de que Honorino era exímio contador.

Não havia, porém, entre ele, e esses seus únicos amigos, o hábito de visitas ou convívio familiar. Nossa casa era frequentada — antes que a ela começassem a vir os amigos dos filhos — unicamente pelos irmãos e irmãs de minha mãe e por seus inumeráveis sobrinhos. Não ia a festas ou a bailes. Os eventos de sociedade a que comparecia limitavam-se a algum banquete de homenagem a juízes ou desembargadores, e a visitas aos parentes de minha mãe. Não faltava a velórios e enterros de pessoas importantes da cidade. Só depois de casados os filhos é que começou a receber e a comparecer a festas, desfrutando com visível agrado do convívio da família, que chegou a ver incrementada pela chegada dos primeiros netos.

Depois da sesta, ia todos os dias aos bancos e antes ao Café Elite, para o cafezinho a que não podia faltar. Nas quartas e sábados, ia ao barbeiro, pois não tinha o hábito de fazer a barba em casa. Vestia-se formalmente, sempre de terno e gravata, e o chapéu, que só abandonou nos últimos anos. Jamais o vi, mesmo no verão, sair de casa em mangas de camisa.

Era extremamente benévolo e generoso com todos os tipos de necessitados. Distribuía, às escondidas de minha mãe, todo tipo de auxílio e esmola, emprestando dinheiro, que não cobrava, até para conhecidos achacadores, o que me deixava muito irritado. Conquanto fosse o oficial de protestos, com o antipático encargo de protestar as dívidas dos devedores recalcitrantes, com estes mostrava uma extraordinária benevolência.

Sempre que sabia das dificuldades de alguém, relutava e demorava o mais que podia em lavrar o protesto, que, muito mais do que hoje, na época era um labéu infamante contra quem por ele fosse atingido. Desconfio que, por vezes, chegava a pagar de seu bolso dívidas de algum devedor mais chegado ou necessitado.

De poucas diversões, e, ao contrário da maioria de seus contemporâneos, não costumava, ir a bares e clubes, a não ser ao Café Elite, ou frequentar mesas de jogo ou reuniões políticas. Nunca vi ou soube que fosse a alguma partida de futebol, embora gostasse de todo tipo de loterias, rifas e apostas. Tinha interesse e acompanhava a política da época, chegando a ir a comícios, especialmente aos de Getúlio Vargas, quando estes começaram a acontecer, depois do fim do Estado Novo. Essa indiferença com relação à vida de sociedade — com exceção da participação que cheguei a ter na política partidária e do gosto por encontros com amigos que aprecio, regados a bons vinhos e manjares bem elaborados — devo ter herdado dele.

Era um verdadeiro cavalheiro, de requintada polidez e refinada educação. Filho e neto de professores, se criara em Porto Alegre, educado nas melhores escolas, aprendendo com os educadores mais conceituados do seu tempo.

Convivera com seus parentes Azevedo e Palmeiro, com intelectuais como os irmãos Aquiles e Apeles Porto Alegre, e com muitas famílias tradicionais e de fino trato da pequena e aristocrática sociedade da capital. Mas, depois de vir viver em Passo Fundo, seus interesses exclusivos passaram a ser o trabalho e os cuidados com a família.

Apenas em seus últimos anos de vida retomou as viagens, principalmente para a capital, onde vivia a maioria de seus irmãos e sobrinhos. Durante muitos anos, o contato com sua mãe — que vivia na capital e lá se conservou até morrer — e com os irmãos Victor, Crespo, Monsenhor Dagoberto e Olmiro, era feito somente por cartas, escritas na velha máquina Continental, até hoje em meu poder. Jamais o vi escrever a seu irmão predileto — o tio Armando —, embora deste falasse constantemente, sonhasse com ele e até distraidamente se dirigisse aos filhos, como se falasse com o irmão.

É certo que tenha tido boas leituras. Mantinha uma excelente biblioteca de clássicos portugueses e brasileiros, além dos principais autores franceses, em volumes bem encadernados, que conservei em parte. Tinha redação fácil e espontânea. Evitava falar em público, mas uma vez me surpreendi com uma excelente intervenção sua, numa reunião de juízes com os tabeliães e escrivães do Fórum, quando se expressou de modo articulado e preciso, em voz alta e firme, de modo categórico, com opinião original e bem definida, proporcionando-me, além da surpresa, a emoção e o orgulho de ser seu filho.

Dizia-se muito modesto, mas tinha em alto conceito suas origens familiares — que descobri depois serem da nobreza mais autêntica e castiça, com antepassados que vão até os reis de Portugal e Castela e, por estes, ao Imperador Carlos Magno e a Guilherme, o Conquistador.

Jactava-se de sua elegância natural e agradável aparência, e das vitórias alcançadas pelos filhos. Sempre dizia que queria ter sido advogado como seu irmão Olmiro — o que não conseguiu por haver perdido o pai muito cedo, ficando com poucos recursos e saúde precária. Para ser o que ele não foi, formei-me em Direito, fui procurador do Estado e realizei-me plenamente na profissão de advogado. O pai chegou a assistir meus primeiros êxitos no tribunal do júri, e tomou conhecimento das vitórias que comecei a conquistar no cível, nos primórdios de minha experiência profissional. Depois de anos de advocacia, para repetir em parte sua trajetória, amarrando as duas pontas da minha vida, retomei a profissão que foi a sua e que ele amava: a de oficial de Cartório de Registro.

Ele nascera em Cruz Alta, no ano de 1900, filho de um agrimensor, professor, juiz distrital e fazendeiro local. Lá deve ter feito seus primeiros estudos, até que a família se transferiu para Porto Alegre, onde o avô fora nomeado tabelião. Isso lá pelo ano de 1912, quando tinha apenas 12 anos incompletos.

Como permitiam os usos da época, com o produto da venda da fazenda Boa Esperança, localizada no Cadeado, proximidades de Cruz Alta, o avô adquiriu o 1º Cartório de Notas de Porto Alegre.

Contou para tanto com o beneplácito do chamado chefe unipessoal do Partido Republicano Rio-Grandense, Borges de Medeiros, o eterno presidente (governador) do estado, amado por muitos e execrado por outros tantos. Embora este não fosse, na ocasião, o presidente nominal, pois cedera temporariamente o posto a Carlos Barbosa Gonçalves, é certo que terá interferido na nomeação do avô. Este era destacado prócer maçônico, membro proeminente do Partido Republicano Rio-Grandense, tenente-coronel da Guarda Nacional e fortemente vinculado ao chefe político da região de Cruz Alta, Gen. Firmino de Paula, de quem era amigo e compadre.

Contava o pai que, nessa fazenda, sendo de tenra idade, certa feita ele e seu irmão Armando foram deixados sozinhos para pernoitar na casa da sede. Deu-se que, no cair da noite, foram surpreendidos pela presença de uma cobra coral enrolada no pé de uma mesa. Não havia como pedir socorro ao capataz, pois a noite chegava e a casa do empregado ficava distante algumas dezenas de metros. Permaneceram os dois meninos a noite inteira na companhia da cobra, insones e aterrorizados, temendo o seu ataque — que, felizmente, não aconteceu — até que só de manhãzinha viesse o capataz socorrê-los e matar ou afugentar o nojento réptil.

Conquanto tivesse a vida rural apenas em suas reminiscências da infância, relembrava-a nitidamente. Falava sempre no petiço que tivera quando criança: o inesquecível Cascarrilha. Não apresentava dificuldade alguma em cavalgar. Para surpresa minha, quando não havia transporte coletivo em Passo Fundo, e os carros de praça (como eram chamados os táxis, antigamente) eram escassos e caros, cheguei a vê-lo, algumas vezes, utilizar montarias para pequenos deslocamentos entre o Boqueirão e o centro, na própria cidade de Passo Fundo.

De Cruz Alta guardava poucas lembranças: uma delas foi a surra de chicote que seu pai dera no barbeiro local, por haver maltratado seu filho Crespo. Parece que este esbofeteara meu tio, então adolescente. Tomando conhecimento do fato, o velho Azevedo foi à barbearia armado de um relho, e justiçou o agressor, desfechando-lhe dois ou três laçaços pelo lombo. Em seguida, sentou-se à cadeira do barbeiro e determinou que este lhe fizesse a barba. A ordem foi imediatamente cumprida pelo arrenegado fígaro, que se remordia de medo e de ódio.

Fazia parte do repertório do pai a história da jornada da família para Porto Alegre, em trem da Viação Férrea. Para poderem viajar, confortavelmente, tiveram que alugar um vagão inteiro, onde se alojou a prole numerosa do avô, o casal e mais 11 filhos, além da indispensável criadagem. O primogênito Victor Hugo, já casado, foi o único que permaneceu em Cruz Alta. Terá sido uma viagem memorável para um menino de pouco mais de 10 anos, saindo da pacata Cruz Alta para ir viver na capital. Porto Alegre já era quase uma metrópole, cujas dimensões e atrações fascinavam as mentes ingênuas de todos os interioranos.

A chegada à pequena, mas orgulhosa metrópole — que progressivamente se transformara de um vilarejo açoriano em um altivo burgo germânico, com suas casas em enxaimel e os pretensiosos prédios de Rudolf Ahrons e outros arquitetos de proa — com mudança radical de vida, fascinou o pequeno Astrogildo.

Contava ele que foi lá que ele e os outros meninos da família começaram a usar pijamas, invenção muito moderna para a época. Até então os varões utilizavam somente camisolões para dormir. Também foi na capital que conheceram os bondes, lentos e ruidosos, e começaram a utilizá-los para ir de um bairro para outro, naqueles tempos em que Porto Alegre, com sua prosápia de cidade grande, não conseguia ainda disfarçar bem a rusticidade e a modéstia de suas origens açorianas.

Lá a família habitou casas sucessivas. Acredito que a mais duradoura foi a do centro, na Rua da Ladeira (hoje Gen. Câmara), onde tinham como moradia os altos do prédio, em cujo piso térreo sempre funcionou o cartório. Esse prédio eu cheguei a conhecer. Ficava no local onde foi erguido, mais recentemente, o edifício ocupado, em vários andares, pelo Cartório de Protestos. Era um sobrado imponente, pintado em tonalidades de cinza. Nele meu pai terá passado o fim de sua infância e toda a sua juventude, dividido entre o cartório, no térreo, e a moradia, no piso superior.

A família viveu também em outras casas, na Rua Duque de Caxias e na Rua Arlindo, no Menino Deus, entre outras. Contava-se na família que minha avó tinha verdadeira obsessão por mudanças e troca de casas, mobiliário e decorações.

Sua última residência, onde faleceu, era uma elegante mansão, em estilo art nouveau, alugada às freiras carmelitas por meu tio, Monsenhor Dagoberto, na Rua Lima e Silva, 203, onde estive em seus últimos dias de vida. Ali viveu ela alguns anos, cercada por filhos, netos, criadas e agregados, além de vizinhos e muitos parentes, como gostava, até transferir-se para sua última morada, no cemitério da Santa Casa.

Em vida de meu avô, também foi adquirido um sítio de lazer na Tristeza, à época um bairro distante e praiano.

Para lá a numerosa família se deslocava inteira, nos fins de semana e nas férias de verão, viajando pelo famoso trenzinho da Tristeza. Com efeito, havia uma linha férrea que transportava os veranistas do centro da capital para o balneário. Embarcavam todos na pequena estação, localizada na antiga Praça 15, hoje Largo Glênio Peres, desembarcando uma hora depois na antiga estação da Tristeza.

O pai estudou com os melhores professores da época e cursou preparatórios[3] no antigo Ginásio Nossa Senhora do Rosário. Deveria ter-se encaminhado para a Faculdade de Direito, como fizera seu irmão Olmiro.

A exemplo de todos os seus irmãos, tão logo completou a idade de 21 anos, alcançando a maioridade, foi admitido na função de ajudante no cartório de notas de seu pai. Ali aprendeu o ofício de cartorário, no qual era exímio, e foi sua atividade exclusiva durante toda a vida.

Essa sua experiência inicial ele a relembrava com saudade, falando das figuras pitorescas dos clientes, dos colegas e dos famosos advogados da época, cujas lições e exemplos cuidadosamente recolhia.

Citava sempre o primeiro-ajudante (substituto), um certo Tito Lívio da Cunha Matos, que o iniciou na arte de ser tabelião, atividade que, ao contrário do que muitos pensam, apaixona todos os que nela se envolvem.

Dos grandes advogados da época — lembrava sempre o Dr. Plínio Casado, gaúcho que chegou a ser Ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal, e o Dr. Adroaldo Mesquita da Costa, que foi Deputado Federal, também Ministro da Justiça e consultor-geral da República – Ele compilava minutas, petições e arrazoados, que transcrevia num precioso caderno. Este foi trazido para Passo Fundo, e nele o pai chegou a se iniciar nas lides da advocacia, como provisionado, mas desistiu depois, quando isso se mostrou incompatível com a função de titular de cartório.

Queixava-se sempre de que um seu companheiro de pensão — que depois veio a advogar na praça — o qual tomara emprestado o precioso caderno e jamais o devolvera a seu dono.

Permaneceu ele em Porto Alegre até 1927. O avô havia falecido em 1924, assumindo o cartório de notas, em seu lugar, o tio Olmiro, o único com diploma em nível superior, pois se tornara advogado em 1920, graduando-se pela antiga Faculdade Livre de Direito. Preferindo a advocacia, na qual veio a ser muito bem sucedido, resolveu afastar-se do cargo de tabelião. O cartório poderia ter sido mantido na família, mas nenhum dos outros irmãos foi considerado suficientemente apto para sucedê-lo. Dagoberto, já padre, instado a tanto, recusou-se peremptoriamente, afirmando que preferia se matar a deixar de ser sacerdote. Para o pai não assumir, alegaram que sua saúde era precária e que teria pouco tempo de vida, previsão que não se confirmou, pois faleceu com quase 76 anos. Por isso, o cartório foi vendido ao bacharel Zeferino Ribeiro que, por muitos anos, o manteve na esquina das ruas da Ladeira e Gen. Andrade Neves.

Assim, o pai teve que fazer as malas e vir para o interior. Primeiro para a pequena cidade de Erechim, onde, por algum tempo, permaneceu como ajudante do notário José Maria de Amorim, de quem continuou amigo ao longo de toda a vida.

Em Passo Fundo, havia-se operado uma grande transformação na vida política e social. Depois de anos de predomínio da família Annes, o médico Nicolau de Araújo Vergueiro, primo dos Annes, mas seu impenitente adversário, assumira a prefeitura do grande município e, ao mesmo tempo, passara a chefiar, na região, o poderoso Partido Republicano Rio-Grandense. O PRR era uma espécie de partido único, confundindo-se com o próprio Estado e aparelhando-o com seus correligionários. Sem ser filiado ao partido, ninguém poderia ter acesso a nenhum cargo político ou função pública.

Nenhuma semelhança com o que está a acontecer atualmente, com um partido político muito importante. Simultaneamente, com a morte do tabelião Joaquim Pedro Daudt, ficaram vagos os cartórios que aquele acumulava em Passo Fundo (imóveis, registro especial e notariado). Vergueiro não teve dúvida: Obteve a imediata nomeação de seu filho Rui — que era formado em farmácia e farmacêutico — para o cargo de notário.

Em seguida, tendo que contemplar, do mesmo modo, seu futuro genro, obteve o desdobramento do cartório em dois.

Assim foi criado o segundo cartório de notas, com o qual foi aquinhoado Honorino Malheiros, que viera do Rio de Janeiro para Passo Fundo, como atleta contratado do Gaúcho, à época o nosso mais importante clube de futebol.

Havia um problema, entretanto. Os dois flamantes notários não entendiam patavina do serviço que tinham que desempenhar: um era farmacêutico e o outro apenas jogador de futebol.

Isso foi resolvido com a opção de aproveitar Astrogildo, que tinha grande experiência na área, para ensinar-lhes a profissão, assessorá-los e fazer as suas vezes, quando fosse preciso. Assim, o pai, vindo para Passo Fundo, depois de trabalhar algum tempo na intendência (prefeitura), sob as ordens de Vergueiro, tornou-se ajudante de Rui Vergueiro e, logo depois, de Honorino Malheiros.

Nisso se desempenhava magistralmente, pois essa era realmente a sua vocação profissional. Durante dois anos ele, conforme os humores e vaivens dos dois jovens tabeliães, trabalhava ora com um, ora com outro, mas sempre em harmonia com os dois, que foram seus amigos de toda a vida.

Sucedeu que, em 1929, Honorino achou justo que o pai tivesse o seu próprio cartório. A solução foi vender-lhe uma parte do 2º Tabelionato, que acumulava os serviços de protestos e registros especiais. Como isso era possível à época, o pai, que tinha algumas economias, pagou a Malheiros, pelo Cartório, quatro contos de réis (R$ 4:000$000), que era uma soma importante para a época.

Assim, foi nomeado por Getúlio Vargas, então presidente (governador) do Estado, e passou a ser o titular desse cartório, de pouco movimento até a década de 1960, mas que assegurou, durante todo esse tempo, a manutenção da família e a educação dos filhos que vieram.

Pouco sei de sua vida durante o decênio seguinte. Em 1930, quis alistarse, para integrar as forças da Aliança Liberal que se deslocaram para São Paulo, a fim de enfrentar o governo de Washington Luís, no que foi impedido pelo Dr. Vergueiro, que não aceitou deixasse ele acéfalo o cartório. Pouco tempo depois, contraiu osteomielite na perna esquerda, o que o obrigou a longo e doloroso tratamento que deixam sequelas, e o obrigaram a manquejar por todo o resto de sua vida.

Em 1937, noivou com minha mãe, Dalva, e em 7 de maio de 1938, deu-se o casamento. Este foi na casa do irmão de minha mãe, o tenente do Exército Alceu Nogueira de Andrade, um bonito chalé de madeira, ao lado da velha casa dos Nogueiras, onde acabavam a cidade e o Boqueirão. A mãe conta detalhes do casamento, que foi na residência, como se usava na época. Quem presidiu a cerimônia civil foi o juiz municipal, Simplício Inácio Jacques, e serviram de testemunhas, além do tio Alceu e outros, o advogado Aquelino Translatti e D. Clotilde Sandri, ainda solteira, que veio a ser mãe de um de meus grandes amigos — Paulo Roberto Pires. Foram viver numa pequena casa, de porta e janela, na Avenida Brasil, no paredão, mudando-se, antes que eu nascesse, para a casa da Avenida Brasil, 483, onde viemos à luz eu e os outros irmãos, exceto o último, Astrogildo, já nascido na casa nº. 731 da mesma avenida.

Assim se passaram os anos. Vieram os filhos, em número de seis: primeiro um grupo de quatro (sendo eu o mais velho), nascidos num período de cinco anos.

Depois os dois temporões, Beatriz e Astrogildo. Eram anos difíceis: a guerra, dificultando os negócios e impedindo o desenvolvimento; a ditadura do Estado

Novo, tolhendo todas as liberdades. Mas, graças ao denodo e cuidados do pai, a seu senso de organização e estrita honestidade, a pequena arrecadação do cartório permitiu-nos sobreviver modestamente, mas com muita dignidade e orgulho, até chegarmos onde estamos.

Referências

  1. Luiz Juarez Nogueira de Azevedo é Mestre em Direito e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.
  2. 1 - Consiste em equívoco muito frequente supor que nós, brasileiros de cepas ibéricas, descendemos exclusivamente de portugueses e espanhóis. Se formos investigar cuidadosamente, verificaremos que, nas próprias linhagens ibéricas, aparecem, frequentemente, açorianos e madeirenses, muitos deles de origem germânica, oriundos dos Países Baixos (hoje Holanda e Bélgica), alem de italianos; e, mais remotamente, provindos outras etnias, como acontece em minha família: germanos-visigodos, bretões, francos, celtas da Escócia, italianos, árabes e judeus, e até mesmo romanos, armênios e gregos bizantinos.
  3. 2 – Chamavam-se “preparatórios” os cursos que antecediam o ingresso nas faculdades. Os preparatórios eram para a área jurídica, para a área da engenharia e para a área médica: pré-jurídico, pré-técnico e prémédico. O pai desejava, mas não conseguiu, cursar os preparatórios, a fim de ingressar na Faculdade de Direito.