Um dos primeiros romances passo-fundenses

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Um dos primeiros romances passo-fundenses

Em 22/11/2014, por Paulo Domingos da Silva Monteiro


IRAPUÃ: Um dos primeiros romances passo-fundenses

Jorge Edeth Cafruni é outro passo-fundense por adoção que legou uma obra mais vasta e multiforme. Poeta, historiador e romancista, nasceu em Porto Alegre, no dia 8 de agosto de 1913. Exerceu diversas profissões: mascate, auxiliar de farmácia, barbeiro, representante comercial,jornalista e bancário.

Seu romance "IRAPUÃ" teve duas edições. A primeira, em 1955 (Tipo-Lito-Fabril, Passo Fundo); e a segunda, em 1962 (Edições Dispal, Passo Fundo) . Foi o primeiro romance que li na minha vida, assim que aprendi a ler. Cafruni soube usar a mídia da época, especialmente o jornal O Nacional e as rádios Passo Fundo e Municipal, para divulgar seu livro. Lembro-me que, levado por essa propaganda, meu pai comprou e leu o livro que foi lido e relido por mim.

A história se passa entre 1612 e 1651, durante a ocupação francesa do Nordeste brasileiro, narrando as lutas entre os tabajaras, moradores do interior, na Chapada de Ibiapaba, na divisa do Ceará com o Piauí, e os potiguaras, indígenas litorâneos, aliados dos invasores franceses.

Irapuã era filho de Ubiratã, líder da nação tabajara. Era para chamar-se Tupàcininga, o raio, mas Juruetê, o pajé, profetizou que o menino traria grandes desgraças. Por isso, passou a chamar-se Irapuã, abelha que produz mel ruim; e foi criado junto às mulheres, para não ser guerreiro.

Por esse fato, sua mãe, Aracati, era humilhada. Aos quinze anos, o filho foi mandado por ela para a tribo de seu tio Acangatu, onde aprendeu a arte de usar as armas de guerra, com seu primo Itamiri.

Mais tarde retornou a sua taba, onde continuou acompanhando as mulheres em seus trabalhos domésticos e de lavoura.

Certa feita, antes que os guerreiros conseguissem caçar uma temível canguçu, ele abateu a fera, e acabou matando o filho do cacique dos Juris, uma tribo tabajara. Foi condenado à morte. Solto por sua mãe, fugiu, mas retomou trazendo como prisioneiro Ataguer, irmão de Camaragibe, o tuxaua potiguar que, com seus aliados brancos, ia atacar os tabajaras para tomar as esmeraldas que eles costumavam usar como botoques.

Voltou à aldeia com o prisioneiro, sendo julgado e absolvido. Os Tabajaras foram atacados. E Ataguer foi solto pela índia Coema. Tentando matar Irapuã, que permaneceu perto das mulheres, feriu Aracati. Indignado, Irapuã empunhou o tacape e destacou-se na batalha que termina com a fuga dos atacantes.

Ferido por um tiro disparado pelo comandante francês, Ubiratan renuncia e Irapuã prepara o revide aos inimigos. Descem para o litoral reforçados por outras tribos e atacam os Potiguaras e seus aliados brancos. Apaixona-se por Maniú, irmã de Camaragibe, que é orientada pelo pajé de sua nação a atraí-lo a uma emboscada. É preso e conduzido à taba litorânea. Maniú é indicada para executá-lo, mas não consegue. Deixa cair a clava, revelando sua paixão e, incontinenti, é morta por seu próprio irmão.

Os Tabajaras atacam. Na confusão, Caititi, que é apaixonada por ele, sem a devida correspondência, entra na taba inimiga e o liberta. Na fuga, para protegê-lo, é morta. A batalha é terrível. Ao final restam vivos apenas o chefe branco e outro soldado francês, além dos tabajaras Irapuã, Japiaçu e Ubiratã. Na perseguição aos Maires (soldados brancos), o herói para diante da rede mortuária de Maniú. É flechado pelo próprio pai indignado com a atitude do filho.

Japiaçu abate o soldado francês e é posto fora de combate pelo chefe Maire. Este, mata Ubiratã e tenta fugir para uma embarcação com uma carga de esmeraldas.

Japiaçu sobrevive para contar a história, que termina assim:

"Abatinga, o estrangeiro, soltou convulsa gargalhada. Era o único Iidador, entre a infinidade de Maires, Potiguaras e Tabajaras que ainda se mantinham de pé, depois da duradoura peleja.

"Tomou, então, do fardo do outro, contido numa rede, e, com esforço, levou às costas.

"Japiaçu tinha o ombro quebrado e as suas forças esvaíam-se com o sangue que borbotava, ruidoso, do ferimento. Viu o Maire afastar-se, dobrado ao peso da carga, rum ando para a igaraçu, à margem do rio.

"Japiaçu tentou soerguer-se, mas resvalou no próprio sangue; chorou então, como se fora mulher e não guerreiro.

"Nisto, Irapuã, prostrado em terra, alçou vagaroso a fronte empoeirada.

"Seus olhos eram dois brasidos, quase extintos, que reavivavam. Os dedos tacteantes procuraram o rijo arco e a dura seta.

"Ajoelhou-se: um fio sangrento escorria-lhe do peito, sob a haste encravada. Seus membros musculosos tremiam e sua boca, entreaberta, resfolegava, quando, com esforço, se aprumou nos pés.

"E cambaleava, quando dirigiu suas armas para o estrangeiro, que já transpunha a passagem da caiçara que olhava para a alva praia.

"- Jurupari, empresta-me a tua força! clamou.

"Estirou, arquejante, a fina corda. A flecha sibilou por sobre ruínas e cadáveres, espetando, com estalo, no crânio do Maire que, lançado para diante, foi estatelar-se no pó, à saída da aldeia.

"A carga tombou, a rede soltou-se, e as pedras verdes de Jurupari esparramaram-se, cascalhantes, sobre as nódoas de sangue de Tabajaras e Potiguaras.

"Irapuã sorriu.

"Apoiou-se, então, no grande arco de braúna, mas logo rodou caindo em terra.

"Assim, morreu Irapuã, o guardião dos Tabajaras." (sic).

Sabino Santos, em seu livro, "Os Imortais de Passo Fundo" (Instituto Social Padre Berthier, s/d, 1963), conta que o primeiro livro que Cafruni leu, "aos 13 anos de idade, foi 'Iracema', de José de Alencar, que lhe causou profunda impressão". Como se vê, a impressão foi tamanha a ponto de situar seu romance indianista no estado natal de Alencar.

"Assim como Walter Scott fascinou a imaginação da Europa com seus castelos e cavaleiros - escreveu Antônio Cândido, no ano de 1964, em sua Formação da Literatura Brasileira, 2°. volume, 5 ed., Editora Itatiaia, da Universidade de São Paulo, 1975, p. 224 -, Alencar fixou um dos mais caros modelos da sensibilidade brasileira: o do índio ideal, elaborado por Gonçalves Dias, mas lançado por ele na própria vida quotidiana. As Iracemas, Jacis, Ubiratãs, Ubirajaras, Aracis, Peris, que todos os anos, há quase um século, vão semeando em batistérios e registros civis a "mentira gentil" do indianismo, traduzem a vontade profunda do brasileiro de perpetuar a convenção, que dá a um país de mestiços o álibi duma raça heroica e, a uma nação de história curta, a profundidade do tempo lendário". (sic).

Jorge Edeth Cafruni, escrevendo na década de 1950, literariamente falando, pertence a um século antes. Continua o Indianismo, à maneira do José de Alencar de 1857, seguindo a trilha aberta anos antes por Walter Scott e Chateaubriand. E é exatamente esse atraso literário o maior responsável para que os romancistas passo-fundenses, como Cafruni e Jurandyr Algarve, autor de "Marta" não alcançassem repercussão fora do município. Eram homens do século XX, escrevendo no estilo do século XIX. Se o autor de "Irapuã", é um indianista retardatário, Jurandyr Algarve reproduz o folhetim, difundido por Eugêne Sue, Scribe, Féval e Alexandre Dumas (pai), por volta de 1830.

Apesar de suas limitações, tanto "Irapuã" quanto "Marta" merecem ser lidos e estudados, porque representam o que foi realmente produzido em Passo Fundo, naquele período. Cabe aos escritores pósteros, escreverem trabalhos melhores, superarem os escritores do passado, produzindo obras que insiram as letras passo-fundenses nas literaturas gaúcha e brasileira.