A Dama da Literatura

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A Dama da Literatura

Em 31/12/2003, por Gilberto Rocca da Cunha e Paulo Domingos da Silva Monteiro


A Dama da Literatura

Entrevista: Tania Rösing

         

Durante quatro horas, a professora Tania Rösing  conversou com os acadêmicos Paulo Monteiro, Gilbeno R. Cunha, Santina Dal Paz, Helena Rona de Camargo, Jurema Carpes do Valle e Santo Verzeleti, na sede da Academia Passo-Fundense de Letras (APL). A doutora e educadora emérita da Universidade de Passo Fundo (UPF) contou a história e os bastidores do maior evento latino-americano (e um dos maiores do mundo), no campo da literatura.

Tania Rösing, a menina que cresceu num lar metodista e se formou no interior do Instituto Educacional de Passo Fundo (IE), iniciou no magistério antes de concluir o curso Científico. O amor pela cultura começou dentro da casa paterna, com aulas de piano aos cinco anos, e a leitura de Monteiro Lobato (emprestado por um colega de escola), aos 10 anos. Naquele tradicional educandário, aprendeu a conviver com a grandiosidade dos eventos e a participar da sua realização.

Ela atribui à formação familiar, religiosa e educacional, a impetuosidade com que se lança ao trabalho. Para Tania, um bom evento precisa ter multidões. A 10ª Jornada Nacional de Literatura, realizada neste ano, recebeu, nos cinco dias do encontro, mais de 18 mil pessoas, entre adultos e crianças da 2ª Jornadinha, ouvindo e interagindo, diretamente, com 229 escritores presentes em Passo Fundo, no Circo da Cultura.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing (55 anos) é Mestre e Doutora em Teoria Literária pela PUC-RS (1987 e 1994, respectivamente). Com graduação em Letras (1969) e em Pedagogia (1974), Tania leciona Língua Portuguesa e Literatura há 32 anos, na Universidade de Passo Fundo (UPF). Criadora e coordenadora das Jornadas de Literatura, é uma mulher acostumada com o sucesso. Tem recebido muitas homenagens. Como exemplo: em 2003, foi homenageada pela Academia Brasileira de Letras. Também foi condecorada com a Medalha do Mérito Farroupilha, concedida pela Assembléia Legislativa do RS para personalidades que, com o seu trabalho, contribuem para o desenvolvimento do estado. E, neste momento, ela é a vencedora do Prêmio Cláudia 2003, conferido às mulheres que fazem a diferença, no Brasil. A escolha é feita por votação na Internet e Tania é uma forte candidata na área de cultura.

Apesar de ser uma celebridade da cultura brasileira, Tania Rosing não se deixou contagiar negativamente pelo sucesso. Como ela mesma faz questão de destacar, é uma mulher extremamente religiosa e generosa com os outros. A sua maior alegria é dar e doar-se. Não é por nada que ela costuma creditar o seu sucesso pessoal aos méritos da sua equipe de trabalho na UPF.

APL - Quem nasceu primeiro, a professora Tania ou a Tania amante da literatura?

Tania - Venho de uma família bastante religiosa. Cresci ouvindo minha mãe contar histórias bíblicas. Comecei lendo a revista Bem-Te-Vi (da Igreja Metodista); aos oito anos, li o Pequeno Príncipe (de Saint-Exupéry) e aos nove já estava lendo Poliana e Poliana Moça. Eu estudava no IE e os professores de lá davam muito incentivo à leitura. Aos 10 anos, li toda a coleção de Monteiro Lobato, emprestada por meu colega, Jaques Bacaltchuk.

APL - Então a familia desempenha um papel importante na formação cultural das pessoas?

Tania - Acredito que sim. Mesmo sendo um alfaiate, meu pai dava muita importância à formação cultural de seus filhos. Tanto que, aos cinco anos, antes mesmo de entrar para a escola, comecei a estudar piano. Duas coisas marcaram minha infância: a religiosidade e o amor à cultura. E me acompanham até hoje.

APL - Como a senhora liga essa formação familiar e educacional às Jornadas de Literatura?

Tania - Realizei toda a minha formação, antes de ingressar na universidade, no Instituto Educacional de Passo Fundo (IE), única escola particular mista das décadas de 1950 e 1960. O IE incentivava as atividades culturais e esportivas. Eram atividades que atraíam multidões. Chegamos a realizar uma festa sobre a evolução do maiô (do século 19 até o monoquíni, com manequins vivos), no Clube Náutico Capingüí, que contou com a presença de milhares de pessoas. No dia da festa formou-se uma enorme fila de veículos dirigindo-se ao parque náutico situado às margens da represa do Capingüí. Ainda hoje encontro pessoas que se lembram daquela atividade. Essas vivências, como criança e adolescente, me ensinaram a pensar grande. Pode ser um "defeito" meu, mas tudo o que eu organizo precisa ter multidão. Até pode estar aí a origem onírica das jornadas e suas multidões.

APL - As crianças de hoje lêem mais do que as crianças do passado?

Tania - Hoje há múltiplas linguagens (a começar pela televisão e a internet), o que estabelece outras "formas de leitura". Devemos considerar também a maior liberdade de informação, pois na minha infância havia livros que não podíamos ler. É evidente, porém, que as crianças lêem bastante. Seja na Jornada Nacional de Literatura, seja na Feira do Livro, as crianças procuram adquirir livros e o que temos notado, nos últimos anos, é que os pais incentivam os filhos a ad¬quirirem obras de literatura infantil. E uma vez leitor na infância, vai continuar leitor pela vida toda.

APL - Quais eram os livros proibidos? Tania - Lembro-me de A Carne, de Júlio Ribeiro, e Bom Dia, Tristezas, de Françoise Sagan. E é claro que muitos "adultos" não gostavam que as "crianças" lessem certos autores, especialmente os naturalistas.

APL - Muitos dizem que brasileiro lê pouco, porque o livro é caro. A senhora concorda com isso?

Tania - Sim, livro é caríssimo. Na minha opinião, um livro deveria custar uns US$ 3,00 (ao redor de R$ 9,00). Mesmo os professores não lêem o suficiente, pois o livro é visto como um artigo de luxo. Livro é para ser lido, consumido como qualquer alimento. Afinal, cultura é vida. E é por essa falta de leitura que não se pode confundir titulação acadêmica com nível cultural. Há doutores que são analfabetos, culturalmente falando.

APL - Por falar em livros, como é feita a seleção dos vencedores, no Prêmio Nacional de Literatura?

Tania - Começa por uma triagem iniciaI, pela comissão julgadora, pois muitos livros inscritos não são romances. É como naquela história do "este sim, este não, este come requeijão". Muitos já são descartados, de início. Cerca de uns 40% dos livros inscritos não preenchem os pré-requisitos: não são romances. Depois os jurados vão selecionando aqueles que consideram os melhores. Até que se chega ao grande vencedor.

APL - Voltando à questão da leitura, uma pessoa que não lê pode ser considerada suficientemente alfabetizada?

Tania - Infelizmente, neste aspecto, parte dos professores, mesmo universitários, podem ser considerados analfabetos culturais, pois não se sentem motivados a prestigiar um balé, ouvir uma boa música, apreciar uma obra arquitetônica, visitar exposições fotográficas e de pintura. Nada justifica o afastamento dos bens culturais. Quem tem dinheiro e não viaja é um analfabeto cultural. Eu, por exemplo, fui entender o que significa mesmo uma chaleira, em Moscou, quando um russo veio me servir o chá numa chaleira. O que pareceria óbvio, até então, não o era para mim.

APL - A população e as autoridades passo-fundenses apreciam iniciativas culturais?

Tania - Passo Fundo, durante muitos anos, viveu um período de intensa atividade cultural, com a Cultura Artística e o Grupo Teatral Delorges Caminha, que eram amadores, mas montavam grandes peças. Hoje temos o Viramundos, da UPF, como um dos nossos destaques.

Quanto ao Circo da Cultura, o público é formado especialmente por professores e por pessoas das classes C e D, tal qual no Festival Internacional de Folclore. A jornada deste ano foi transmitida pela TV, com isso a classe mais abastada pôde ver que o Circo da Cultura é um lugar do mais elevado nível cultural. Não é lugar para baderneiros e sim para quem quer crescer culturalmente.

APL - Alguns pesquisadores afir¬mam que, no Brasil, há mais de 40 mil escritores. A maioria deles não é conhecida além de suas cidades. O que a Jornada pode fazer por essa literatura local?

Tania - Não há discussão sobre essa literatura local, pois fica difícil fazer uma crítica sobre o que se produz aqui. À medida que necessitamos de verbas públicas e de grandes empresas, também precisamos de autores nacionais. Um tipo de gente que precisa existir para o mercado. Não há sentido em colocar escritores locais, que sequer extrapolam os limites de Passo Fundo. Até Porto Alegre já reclamou disso. Para contemplar esse tipo de reivindicação, as Jornadas devem abrigar outros eventos paralelos. Aliás, como fizemos neste ano, com negros, cegos e índios. Poderemos, futuramente, quem sabe, contemplar um evento que trate, exclusivamente, da literatura local, estimulado, inclusive, com algum concurso literário específico.

APL - Como a senhora vê a dificuldade para a circulação de livros?

Tania - Em se tratando de Brasil, se não for uma grande obra, os editores não vão publicar. As editoras estaduais estão quebradas. Temos coisas de nossa região que precisam ser valorizadas, mas não conseguem ocupar o seu devido espaço. Eu, por exemplo, aonde vou levo malas com os livros da Editora da Universidade de Passo Fundo. Não é uma coisa fácil vender livros.Um exemplo no meio da crise: nas Bienais de São Paulo e do Rio de Janeiro, as pequenas editoras juntaram-se e fizeram a Feira da Primavera. Graças a essa união, acabaram vendendo milhões. Com isso ganharam projeção no mercado editorial brasileiro. Editar é fácil, o grande problema é fazer o livro circular, e vender. Neste aspecto, a mídia é super-importante para que os livros sejam lidos.

APL - Já passaram centenas de escritores pelas Jornadas. Foram muitos os autores que a surpreenderam positivamente?

Tania - Tivemos muitas surpresas positivas e algumas negativas também. Tivemos um jovem escritor que fez a apologia do consumo de drogas, num momento em que realizávamos uma campanha de combate ao consumo delas; outro que era um cleptomaníaco, para usar um eufemismo, pois chegou a querer levar, com a maior cara-de-pau do mundo, o pala de meu marido que nós lhe emprestamos porque estava com frio, e um outro que era um verdadeiro tarado sexual, assediando todas as moças e mulheres que dele se aproximavam. Mas eu prefiro nem lembrar dessas decepções. Eu destacaria o Sérgio Caparelli, que foi uma indicação do Josué Guimarães. Era um jovem desconhecido e se revelou um brilhante escritor. Nesse sentido, estou escrevendo um livro sobre os bastidores das Jornadas, mas não tenho tido muito tempo, pois, para mim, elas representam um projeto de vida e me absorvem quase que integralmente.

APL - As Jornadas sobreviveriam sem a Tania?

Tania - No momento, ainda faz falta o meu "jeito". Se não for do jeito que faço, é difícil vender a idéia de literatura. Espero a construção do Portal das Línguagens. Este projeto, uma vez concretizado, vai dar condições de sobrevivência às Jornadas, independentemente da Tania Rõsing.

APL - Passo Fundo tem muitos locais dispersos: o Ginásio Poliesportivo num extremo e o Portal das Linguagens no outro. A Efrica num canto da cidade e o Parque da Roselândia no outro extremo. E sem contar, agora, o autódromo para os lados de Marau. Isso não parece mais uma disputa de beleza entre grupos locais?

Tania - Passo Fundo é uma terra de passagem. A maioria das pessoas não têm compromisso com esta cidade. Têm compromisso consigo mesmas e com seus projetos pessoais. Por isso, não se unem; por isso se dividem. Entendo que todo esforço, nessa área, deveria ser centrado na UPF, que é um centro gerador de conhecimentos na região. Isso merece ser reconhecido pelas pessoas. O Portal das Linguagens está no lugar certo (na UPF). As pessoas é que inventam coisas sem um planejamento adequado. Por exemplo, muitos não têm a menor idéia do que seja um parque temático. Para eles, um parque temático se resume a uma chaleira e uma cuia de chimarrão. As pessoas deveriam viajar mais,

se enriquecer culturalmente e conhecer parques temáticos de verdade, como o de Estocolmo.

APL - Quando a senhora se deu conta que a Jornada Nacional de Literatura era um evento grandioso?

Tania - Foi em 1991, quando vi que precisávamos de mais dinheiro do que era possível ser arrecadado apenas com os valores pagos pelas inscrições dos professores. Então, procurei o prefeito Airton Dipp, que assegurou o apoio da Prefeitura. A partir de então, aproveitamos a idéia do circo, do Festival Internacional de Folclore, e as Jornadas cresceram ainda mais. Em 1997, o prefeito Júlio Teixeira nos surpreendeu com o anúncio de que o município estava instituindo o Prêmio Nacional de Literatura, no valor de R$ 100 mil. O prêmio foi uma evolução de uma idéia do Ziraldo, que havia sugerido a criação de um prêmio para o escritor mais popular das Jornadas. Para que o prêmio aparecesse, numa cidade como Passo Fundo, precisava ser grande. E, apesar da lei municipal ainda em vigor, o prêmio está sendo bancado pela iniciativa privada, que tem obtido um excelente retorno de mídia.