Maria Queixuda

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Maria Queixuda

Em 09/12/2014, por Sueli Gehlen Frosi


MARIA QUEIXUDA

Sueli Frosi

Hoje acordei cedo, recolhi minhas coisas, esquentei café na lata. O fogareiro sempre me salva. Ontem perdi a tampinha dele, não sei como. Acho que uma hora dessas a encontro pelo meio da roupa atirada por aí. Hoje minha cabeça roda como um pião de tanta cachaça que bebi. O fogareiro de ferro tão pequeno, sustentado por três pés, já tem álcool até o gargalo. Acendo e a chama azul aquece o café de ontem e minhas mãos. Mas é difícil apagar o álcool que restou, por falta da tampa. Ela apaga o fogo na hora.

Pego o caco do espelho e olho pra mim. Meu cabelo está enorme, maior do que de costume. Acho que o garoto puxou muito forte, por que, além de grande, o couro dói. Nos cantos da boca brilha o líquido daquele moço tão bonito. Ele visitou meu canto com os amigos. Ouvi as risadas e depois peguei a garrafa que ele alcançou. Bebi com gosto! Minhas mãos pararam de tremer e deixei de ouvir os gritos da meninada que gritava enquanto um deles me agarrava.

Ser chamada de Maria Queixuda é coisa antiga. Desde criança ouvi que era um monstro. Feia, baixinha, negra, miserável e queixuda, isso sempre fui! Mas não fui burra sempre. Aprendi a ler e recolhi muito jornal e livro por aí. E li de tudo. E vi fotos de alguns meninos que passaram pelo meu canto pra rir junto com os amigos, pra se aliviar, até pra mijar em mim. Um dia consegui uma coleção inteira de romances, todos de capa vermelha. Lindos!

Passei alguns meses lendo devagar, mas com prática, matei todos. E daí em diante li o que me caía nas mãos. Li de tudo o que presta e o que não presta. O que gostava e o que não gostava. Agora, pela falta de tempo, leio só do que gosto e isso às vezes.

Estou sofrendo de uma falta de sossego. Os bebês que tive eu dei e elas choram dentro da minha cabeça. Vi alguns, outros não quis ver e outros não quiseram mostrar. Eu sabia que estavam mortos. O choro de bebês me enlouquece. A cola ajuda e a cachaça também. Mas preciso garantir os dois.

A rua do Grazziotin é meu lugar de trabalho. Lavador de carro que não me ajuda, no dia seguinte leva uma lata de mijo no carro lavado. De madrugada passo pelo buraco dele e pego o que posso, passo a faca nele de qualquer jeito. Se matar, ótimo! Se não matar, ninguém me viu. A ponte é escura, o rio faz barulho e a madrugada fria segura pessoas em casa. Sei que meto medo!

Tem uma turma na Cruzeiro que sabe de tudo, então a gente se ajuda. Dividir a cola em saquinhos não é difícil e um pouquinho chega. Mas cachaça tem que comprar e não é barata. Essa não divido com ninguém, ou morro de frio, ou do choro dentro da cabeça. Alguma coisa tem que calar as criancinhas. Só uma não chora e que foi minha. Essa eu conheço! Dei e sei pra quem. Passo na frente da casa, lá no Boqueirão e fico olhando. A menina é bonita, parecida com o filho do vereador. Ah! Um dia conto pra ele, aos gritos, quando ela passar fazendo campanha.

Me juraram de morte, por que pego o que preciso. Mas não tenho medo. Eu gostaria de dormir e não acordar neste buraco imundo. Gostaria de acordar na casa da moreninha do livro. Queria andar de charrete por Paquetá, sentindo um ventinho na cara. Queria ter queixo pequeno, cabelo pequeno, pele macia, roupa cheirosa. Queria ter filhos e filhas e brincar com eles como aquela mulher da Chicuta. A casa dela tão bonita, com um gramado e uma laranjeira. Vejo muitas crianças brincando ali e a mãe trazendo bolachas, limonada, bananas.

Hoje acordei mais rápida. Tenho vontade de caminhar, apesar do barrigão. Acho que hoje nasce. Precisando, sento na frente do Hospital Municipal e espero que façam alguma coisa. Se não fizerem nada, de alguma forma a criança tem que sair. E eu largo em algum lugar. Se nascer no hospital, finjo não saber ler e escrever e carimbo meu dedão no papel, dando esse nenê também.

Essa criança sei de quem é. Vez em quando o guri aparece, se escondendo. Eu sei o que ele quer, mas me finjo de morta. E ele pede e chora. Se acha um miserável por gostar de trepar comigo, tão suja, tão feia, tão mulambenta. E eu gosto! E ele vem, espera que eu levante o vestido, entra em mim. Fica assim, de olhos fechados, chorando e faz o vai e vem de tantas vezes, até que arregala os olhos e sai do meio dos meus panos. Atira uns trocos que eu agarro, enxerga meu sorriso de satisfação e vai embora correndo. Ouço os soluços do menino, até que chega à esquina. E eu durmo sabendo que talvez venha mais uma criança. Eu fico ali, imaginando aquilo tudo se eu usasse sedas, perfumes e morasse num castelo e ele viesse a cavalo. Mas romances só existem naquele canto com cheiro de mofo, mas que eu adoro.

Dei de ler jornais, mesmo que atrasados. Vez em quando leio sobre mortes, nascimentos. Um dia soube do nascimento de um bebê nascido no mesmo dia de um dos meus. Esperei uns dias e fui verificar. Procurei pelo sobrenome na lista telefônica. Todos os sobrenomes iguais ao anúncio eu procurei e encontrei um casa linda. Uma mulher de chambre azul clarinho carregava uma criança. Ela olhou pra mim desconfiada! Acho que minha cara feia grudada na grade a assustou. Mas eu consegui ver a cara do meu milico naquela carinha tão pequena. E eu soube que era da minha barriga que havia saído aquele bebê. A mulher correu pra dentro de casa e eu nunca mais voltei.

Desço pela Quinze e sinto a primeira pontada nas costas. Pelas pernas desce um líquido morno, fazendo um rastro pela rua. Faz frio e eu começo a sentir dores. Calculo as distâncias e resolvo andar até o São Vicente. Chego devagar! Sento no pátio e alguém me vê. A enfermeira levanta minha saia e fala qualquer coisa sobre sangue. Chama por ajuda e me carregam para dentro, colocam-me no chuveiro. Sinto as escovadas nas costas, nas solas dos pés. Minha pele arde de tanto ser esfregada com panos brancos. Meu cabelo é cortado rente e lavado várias vezes. Enxugam-me e furam minha mão onde colocam uma borboleta com soro.

Acordo tremendo e não consigo me mexer. Não me importo com nada e, pela primeira vez não olho para os lados para procurar por uma criancinha. Isso não me importa. Olho para cima e vejo um saco de sangue. Uma dor no braço me faz olhar pra ele e vejo uma mancha escura embaixo da pele. A dor aumenta e minha indiferença também. Tenho a sensação de estar me enterrando na cama. Sinto-me cada vez mais afundada naqueles panos azuis. Tento chamar alguém, mas não consigo.

As últimas coisas de que me lembro são figuras arrancando aquela borboleta, colocando de novo e eu quero falar. Quero dizer que, desta vez, não carimbo o papel, mas assino. Quero falar que deixo meus livros vermelhos e os outros todos enfileirados no meu buraco, para uma amiga que ensinei a ler. Para isso preciso falar com alguém, preciso assinar a doação. Sinto-me afundar, afundar! Ouço um piiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!! Caio no vazio, onde há uma luzinha bem pequena e que quero agarrar com a força que me resta.