A solidão e o santo
A solidão e o santo - Isabel sabia que a espera era longa demais para a fragilidade de Artêmio. Deixou de lado qualquer outra preocupação, buscando ser a melhor cuidadora. Bernadete veio visitar o pai, que estava debilitado, queixando-se de falta de ar. Coragem eu tenho, brincava, a exemplo de Bento Gonçalves, o que me falta é ar, filha. O geriatra, humano e estudioso, avaliou o silêncio artêmico como desligamento voluntário. Os exames de sangue indicavam um declínio galopante da saúde. A serenidade quase alegre do doente mostrava o conhecimento do que lhe acontecia. Hora dessas falou: a viagem chega ao fim. Nada de novo em desembarcar... afinal, outros passageiros podem começar seu caminho. Veio o senhor bispo, que ficou por diversas horas de mãos dadas com o frustrado amigo. Apertando a mão de Artêmio, revelou seu encanto pela vida do amigo. Brincou soprando ao ouvido do santo: acho que a santa madre Igreja anda meio devagar. E surda, retrucou Artêmio, num sopro. Um sorriso maroto foi um bom sinal de vida. De tudo o que mais consolava era quando Isabel se reclinava sobre ele, aproximando a cabeça velha em seu peito e as mãos nas mãos um do outro.
Livro escrito por Agostinho Both, publicado em 2012
Apresentação
do Primeiro Capítulo, pelo Autor
Transtornos do Padre Artêmio
Pode haver quem pense: os santos devem ficar quietos como melões. Repletos da graça de Deus, podem estremecer de alegria por todo o sempre. Fogem dos ruídos, tendo o silêncio em grande consideração. Perguntados se o silêncio é confortante, dizem que é uma graça e se, ainda no silêncio, puderem ouvir a Deus, ele se torna divino. A contemplação silenciosa pode fazer o tempo ir e vir. Nela todas as coisas visíveis e invisíveis, reais ou imaginadas têm seu esplendor e profusão, revelando-se a essência sem as destoantes palavras. Se a velocidade do corpo perde a mobilidade, pode a mente ser rápida como um beija-flor. Tem a oportunidade de recolher os significados revelados e os não revelados. Padre Artêmio, ao contrário, está perdendo a graça do silêncio e corre angustiado para a casa paroquial, tendo a sensação de estar sendo devorado. O sistema nervoso está prestes a entrar em colapso. Nada melhor que sair do desamparo das inúmeras e ruidosas palavras e se atirar para dentro de uma toca ou nas mãos grandes de Deus. Poderá se confortar para muito além das nuvens e para muito além das pessoas. Todas as coisas animadas e inanimadas não mais se apresentam humildes à sua atenção. Nada mais é suficiente porque nem mesmo no silêncio consegue retirar mais um sentido em tudo que faz. Quis, então, saber quais motivações poderiam impulsioná-lo para além. Deus surgiu-lhe como solução, mas a salvação que tanto pedira andava minguada e a paz se dissolvia como pó. A comunhão solene com Deus estava de poucos liames, porquanto a boca estava azeda e morria o seu ânimo, como um peixe se debatendo na grama. O vigário comia o pão que o diabo amassou e agora os ruídos aumentavam em torno de si. O inferno constituía-se até de seus melhores fiéis, tão mal andava o santo homem. Privara-se de todas as carícias e Nossa Senhora sabia de quantas promessas compunham-se as horas para que se preservasse a pureza do corpo e da alma. Aí, puro como um São Luiz. Na verdade, o cansaço deixara-o sem as antigas vontades de salvar, de consolar os velhos, as viúvas e os jovens. O seu silêncio, por mais profundo e divino que fosse, compunha-se de solidão. Padre Artêmio sabia da angústia com que a vida se traduz. Sobrevinha-lhe um estado que se caracterizava como perigo, desconhecendo o motivo e a origem. Percebia-se submergido e transtornado, preso a um lado que não esperava. Tinha tudo em Deus e, agora, como uma nave à deriva. Habitara com as estrelas, sentindo, por vezes, um sopro de Deus. Disso poderia até jurar. Não contava, então, com o sistemático deserto. Perdera a bússola, quando antes sabia de todas as direções a serem tomadas. As decisões aristotélicas tidas como inspiração do divino faziam sucesso e muito bem. Tinha certezas absolutas: uma lógica que ia do primeiro motor de tudo até a suavidade sobre o bem a ser feito. Congratulava-se com sua mãe por saber que ela ouvia fartos elogios a seu respeito. As falas da mãe e a sua satisfação, uma vez, alimentavam a autoestima do vigário, que já ia pelos sessenta. Nada mais o movia a não ser as coisas que entendia serem da vontade de Deus. Estava inteiro e não havia conhecido mulher alguma. Vinha-lhe até uma divertida observação: que coisa é essa de desejar, justo em meus sessenta, estar com uma mulher se meu corpo já não deveria solicitar tanto assim. Sonhos antigos começaram a povoar seu sono. E que realidade estranha essa de num deles ver sua mãe deitada, serena, com cara de santa, ser transportada por ele, sendo ele um pássaro que a carregava no bico sobre as matas da infância. Quase morreu de susto quando um amigo psicólogo, baseado numa explicação freudiana, mostrou-lhe o significado libidinoso. Que explicação mais doida pensou, mas em razão de outro sonho teve de, rindo, pedir desculpas a São José. Que barbaridade é essa! Acho que estou de surto libidinoso, ou retorna em mim a adolescência reprimida?