Os primórdios do Espiritismo em Passo Fundo

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Os primórdios do Espiritismo em Passo Fundo

Em 31/10/2019, por Chaline de Souza


OS PRIMÓRDIOS DO ESPIRITISMO EM PASSO FUNDO

Chaline de Souza[1]


Resumo: Mesmo com o controle e a perseguição advindos da Igreja Católica, o Espiritismo estabeleceu-se firmemente no Brasil ainda no século XIX. Formaram-se grupos de estudos destinados à apreensão do conteúdo doutrinário, religioso e filosófico kardecista, como também se estabeleceram as práticas de caridade e de caráter assistencialista. Em Passo Fundo, nas primeiras décadas do século XX, já estavam formados grupos espíritas. Nesse sentido, esse trabalho tem como objetivo discorrer sobre os primeiros grupos e centros espíritas de Passo Fundo, por meio do periódico espírita Orientador (1948-1958).


Palavras-chave: Espiritismo em Passo Fundo. Imprensa espírita. Centros espíritas.


Introdução


No século XIX, o espiritismo estabeleceu-se como crença de que a conversão às modernas ideias excluía a possibilidade de aceitação do sobrenatural, sendo ele em suas inúmeras formas. Os fiéis da doutrina espírita, nesse período, tentavam adequar seus estudos acerca dos fenômenos, até então considerados sobrenaturais, ao campo científico. Salienta-se que a afirmação do saber científico materialista do século XIX foi o resultado de um processo longo e descontínuo de separação entre conhecimento de base experimental e a metafísica (Damazio, 1994, p. 33).

A crença na multiplicidade de existências não foi uma inovação da doutrina espírita kardecista. A crença reencarnacionista remonta a vários povos da Antiguidade, desde os primeiros povos da África e das Américas até o subcontinente asiático. Na Grécia Clássica, Pitágoras e Sócrates, alguns dos maiores pensadores gregos, já acreditavam na reencarnação (Damazio, 1994, p. 33).

Fora então, no século XIX, em meio a um contexto em que a ciência e o materialismo se entrelaçavam na Europa, que surgiram e propagaram-se os ideais do desenvolvimento moral, intelectual e técnico. Na França, na segunda metade do século XIX, desenvolve-se a sistematização do que viria a se tornar a doutrina espírita, organizada por Hippolyte Léon Denizard Rivail[2] a partir do lançamento do Livro dos Espíritos, em 1857, compilação extensa baseada em pretensas 1.019 respostas obtidas por meio do contato com espíritos (Aureliano, 2011, p. 31).

De acordo com José Roberto de Lima Dias, naquele contexto, Rivail procurou

[...] associar as ideias ao pensamento científico da sua época, adotando procedimentos científicos rigorosos como forma de dar validade à nascente doutrina, junto à sociedade francesa. Preocupado em estabelecer parâmetros que configurassem uma presumível verdade espírita no âmbito do cientificismo, afirma que o verdadeiro caráter da ideia é o de uma ciência (Dias, 2011, p. 45).

Como os demais intelectuais de sua época, Rivail também se interessou pelos fenômenos do mesmerismo[3], dedicando-se a estudar o magnetismo. Através desses estudos, teve contato com os eventos envolvendo as mesas girantes em Paris, entre os anos de 1853 e 1857. Esses fenômenos consistiam em formar uma cadeia magnética em torno de uma mesa, fazendo-a girar, ao passo que os espíritos respondiam às perguntas dos assistentes através de pancadas. Esses eventos tornaram-se objeto não só de curiosidade, como também de diversão nos salões parisienses.

Rivail convenceu-se de que os fenômenos das mesas girantes eram produzidos por espíritos. Então, pela primeira vez, o codificador do espiritismo se utiliza das noções previamente desenvolvidas pelo mesmerismo e que acabam, em grande parte, sendo incorporadas ao corpo doutrinário do Espiritismo[4]. Nessas sessões, Rivail acaba por descobrir, através do contato com os espíritos, que seu nome em outra encarnação teria sido Allan Kardec. Desse modo, justifica a adoção desse pseudônimo como forma de externar que a nova obra doutrinária não era sua, e sim dos espíritos, sendo Kardec apenas o seu organizador (Aubrée; Laplantine, 1990, p. 42).

Allan Kardec elaborou mais outros quatro livros e uma série de artigos, estes publicados pela Revue Spirite (Revista Espírita), fundada por ele em 1858. De acordo com Waleska Araújo Aureliano (2011, p. 33), nesses escritos Kardec viria a formular as bases da doutrina espírita, abordando diversos temas:

[...] dos elementos gerais do universo às categorias de espíritos, do suicídio às leis do trabalho, da caridade aos períodos geológicos da Terra. Não escaparia à obra espírita de Kardec qualquer elemento, seja de ordem material, espiritual, social, moral ou política.

Por muitos anos Kardec defendeu a ideia de ter sido o compilador de uma doutrina filosófica e moral de cunho religioso, como qualquer outra filosofia espiritualista[5], negando o caráter convencional de religião que o espiritismo viesse a ter na época. Para Kardec o conceito de religião era inseparável do conceito de culto (Damazio, 1994, p. 48). Nesse mesmo sentido, Célia da Graça Arribas (2011) diz que

desde seus começos, essa doutrina nunca foi tratada como sendo especificamente uma religião. Ela propunha entender o mundo e suas relações com o além de uma forma bastante inusitada, já que se definia como sendo, ao mesmo tempo, uma doutrina filosófica, científica e religiosa. E foi justamente essa definição que acabou provocando polêmicas por onde quer que o Espiritismo tenha passado. Nem propriamente filosofia, nem ciência, nem propriamente religião, ele não só foi interpretado de diversas maneiras por seus diferentes adeptos, como também recebeu ataques de todas as partes, principalmente dos campos científico e religioso (Arribas, 2011, p. 15).

Ressalta-se que apesar de o Espiritismo ter se desenvolvido e disseminado pelo continente europeu a partir da metade do século XIX, com o intuito de definir-se e alcançar o patamar de ciência, filosofia e religião, deve-se destacar que suas proporções não limitaram-se apenas à Europa, alcançando, em especial, o continente americano, onde passaria a assumir novas características.


Espiritismo à brasileira


O século XIX trouxe modificações após a ocupação de Portugal pelas tropas napoleônicas, fato esse que ocasionou a transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808. Com a abertura dos portos, permitiu-se o contato com a França, centro cultural procurado pelas novas gerações da elite brasileira em busca de diploma. Tal contato possibilitou a consciência dessas elites da desarmonia em que o Brasil vivia em relação à Europa (Damazio, 1994, p. 54).

Ressalta-se que o Brasil ainda em seu período colonial recebeu de forma gradativa influxos das ideias iluministas, que se limitaram a atingir os poucos grupos mais intelectualizados da época. Torna-se compreensível, segundo Sylvia Damazio (1994), que tal acanhamento se explique tanto pelo fato da distância geográfica entre o Brasil e a Europa quanto pelo estatuto da colônia, que não só dificultava, como também inibia o entrosamento com o restante do ocidente.

Assim, com o alinhamento do Estado e da Igreja, houve a radicalização da posição católica quanto aos demais cultos e crenças, bem como a exclusão e a condenação de tudo que ia de encontro aos preceitos pregados pela Igreja Católica.

Segundo Marcelo Gil (2008),

a Igreja Católica procurou reagir a toda essa ordem de fatores. No entanto, ao invés de assimilar a noção de progresso em seu arcabouço teórico-doutrinário, mostrou-se intransigente condenando o liberalismo, o evolucionismo, afirmando a infalibilidade papal em meio a todo esse contexto de efervescência intelectual, o que contribuiu decisivamente para o descrédito em meio a uma sociedade cada vez mais intelectualizada (Gil, 2008, p. 43).

Apesar de todo o empenho da Igreja Católica e dos poderes do Estado, grande parte da elite intelectual e política, assim como o povo, continuaram a manter as doutrinas e práticas combatidas. No entanto, deve-se ressaltar que para a manutenção dessas crenças fora necessário o não afrontamento direto às determinações da Igreja Católica, que prezava por manter o catolicismo sob status de religião oficial (Gil, 2008, p. 54).

Conforme Gil (2008, p. 71), a crença na possibilidade de haver comunicação com os espíritos não era nenhuma novidade no Brasil. A fé em seres sobrenaturais, em assombrações e no poder da magia já fazia parte da cultura popular brasileira quando aqui chegou a então doutrina sistematizada por Kardec. No mesmo sentido, para Ubiratan Machado (1983, p. 165), o brasileiro seria um “homem místico” que “não se contentava com a frieza da razão” e por isso “abrasileirando-se, o espiritismo perdia o caráter rigidamente experimentalista e científico de sua origem”.

O Espiritismo no Brasil se adaptou à realidade, criando maneiras de lidar com a cultura local e a censura. Desse modo, com a absorção e a intelectualização dos preceitos da doutrina kardecista pela elite brasileira, criaram-se favoráveis condições para a sua difusão e inserção no Brasil (DIAS, 2011, p. 95). De acordo com as palavras de Dias (2011),

o Espiritismo brasileiro, filiado ao Espiritismo francês propagado nos meados do século XIX, implantou-se no país na época em que se iniciava a secularização em favor de um sistema político republicano. Essa modificação foi acompanhada pela introdução de uma lógica cientificista resultante, principalmente, da atuação e da educação de militares, engenheiros e de alguns intelectuais que queriam manter um vínculo com a espiritualidade. Em razão da situação vigente, podemos entender o momento histórico do surgimento do Espiritismo no Brasil como propício para a formação de uma ideia conciliadora, que procurou superar os limites entre corpo e espírito, entre racionalidade materialista e espiritualidade (Dias, 2011, p. 98).

Referindo-se a exemplos de ambiguidade ideológica entre ciência e razão no Brasil, para a elite letrada tem-se o discurso de Rui Barbosa em que este afirma: “Pus a ciência acima de todas as coisas; mas não afirmei jamais que a ciência não possa abranger as coisas divinas” (Dias apud Damazio, 1994, p. 56). Entretanto, tal movimentação ideológica se restringia a um pequeno grupo de intelectuais e políticos, como Silvio Romero, Tavares Bastos, Rio Branco e outros; a população ficava à margem do debate. Para mais, ressalta-se que mesmo esse grupo professando ideias e crenças divergentes da religião oficial, os membros continuavam a se declararem católicos, ao menos para fins censitários (Damazio, 1994, p. 56).

No ano de 1860, as obras do codificador Allan Kardec começaram a chegar no país. Afinal, através das polêmicas geradas por Kardec nas principais revistas e jornais franceses e em outros locais do mundo, iniciou-se no Brasil a leitura do Livro dos Espíritos. Para Maria Cavalcanti (1983), a comunicação espiritual ergueu-se com evidência dos sentidos, ganhando então o estatuto de prova científica. O Espiritismo, na codificação, apresentar-se-ia não apenas como uma religião, mas também como ciência e uma filosofia. A tríade desse aspecto do Espiritismo e sua ênfase racional estão no âmago desta doutrina. Contudo, de acordo com Cavalcanti, no Brasil o Espiritismo teria adquirido um caráter essencialmente “místico”, “religioso”. Renshaw dá ênfase à noção de cura espiritual e à ação fluídica de forças espirituais como fatores determinantes do rumo que o Espiritismo tomou no Brasil, destacando a “caridade mística e a cura mágica e espiritual”. O referido autor ainda afirma que “para a maioria dos espíritas brasileiros, a fé não baseia-se na razão, mas na interpretação de curas como milagres” (Renshaw apud Cavalcanti, 1983, p. 57). É importante destacar que para as demais classes sociais brasileiras o espiritismo não era algo que precisava ser naturalizado, tendo em vista que as práticas espiritualistas já eram corriqueiras no dia a dia de muitos grupos menos letrados e favorecidos. Enquanto na Europa o Espiritismo se apresentava como uma doutrina da elite e para elite, no Brasil, mesmo que tivera sido aceito e difundido por figuras da intelectualidade, o espiritismo brasileiro desenvolvera-se diferentemente dos demais. No período de fins do século XIX, em que a doutrina já se encontrava em estado de consolidação, a população brasileira, em geral, não possuia escolarização e tinha dificuldades de entender o espiritismo nos moldes científico-filosóficos. Como mencionado anteriormente, à época, existia, quanto ao sobrenatural, uma concepção de que este era inerente à sociedade, portanto, natural. Segundo Paulo César da Conceição Fernandes (2008, p. 19), o estranhamento com tal doutrina não fora significativo, o que facilitou o seu florescimento no país, diferente da concebida na Europa.

Depois de certo tempo, o Espiritismo acabou por atingir todos os grupos da sociedade brasileira. Conforme Fernandes (2008), a razão disso está

[...] na mentalidade (ainda presente) dos setores privilegiados e desprivilegiados de nosso pais em seu primeiro contato com essa doutrina. As elites buscavam o espiritismo como amuleto contra mau-olhado, a azaração, e outras magias, o que acabou por transformá-lo em ‘coisa sua’ versus os setores que os ameaçavam (no caso, os escravos e outros desprovidos), na ‘guerra mágica’ que era reflexo do conflito social explícito ou implícito. Todavia, sabemos também que os setores menos favorecidos tentavam mimetizar os costumes dos ricos, na busca por se parecer com eles, o que é fruto da “cultura de aparências” brasileira (Fernandes, 2008, p. 20).

É importante destacar que Luiz Olimpio Teles de Menezes[6] fora o criador do primeiro Centro Espírita brasileiro, em meados da década de 1860. De acordo com Fernandes (2008),

Teles quis tirar o espiritismo da alta roda que circulava e aproximá-lo de todos. Mais que uma curiosidade, para esse ‘apostolo baiano’ o espiritismo deveria ser encarado de outra maneira. E devido a isso, depois de cinco anos de contato, estudo e um pouco de propaganda da doutrina, às 22h30min do dia 17 de setembro de 1865, realizava-se em Salvador, na Bahia, a primeira sessão espírita do Brasil, sob a direção de Luiz Olímpio. Ainda nesse mesmo ano, Teles irá fundar, também em Salvador, o primeiro centro espírita brasileiro: Grupo Familiar do Espiritismo. Em1866, lança ele o opúsculo O Espiritismo - Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, que seria um apanhado de páginas traduzidas por Teles de Menezes da 13ª edição do Livro dos Espíritos (Fernandes, 2008, p. 20).

Assim, apesar do controle e da perseguição advindos da Igreja Católica, o Espiritismo estabeleceu-se firmemente no Brasil. Formaram-se grupos de estudos destinados à apreensão do conteúdo doutrinário, religioso e filosófico kardecista, e logo se estabeleceram as práticas de caridade, de maneira assistencialista. O ideal de ajuda aos oprimidos não se limitou apenas às práticas de caridade, estendendo-se às sessões de efeitos físicos para comprovação dos espíritos e do consolo às pessoas que perderam entes queridos. Para a narrativa espírita, a doutrina, portanto, também acabou por adentrar à luta política e, em especial, à causa abolicionista.

O ideário abolicionista, segundo Dias (2011), favoreceu a união da intelectualidade carioca no estudo do Espiritismo. Havia, de fato, o interesse permanente pela questão do fim do regime escravista; então, a participação em movimentos favoráveis à libertação dos negros fora frequente entre parte da elite intelectual brasileira. Bezerra de Menezes – nome de maior prestígio do espiritismo brasileiro – fora um grande defensor da causa abolicionista, tendo ao seu lado Francisco Raimundo Ewerton Quadros – presidente da Federação Espírita Brasileira e editor-chefe do jornal Reformador.

Já na década de 1870, o Rio de Janeiro tornou-se o principal núcleo onde o espiritismo se consolidou e se disseminou para o restante do Brasil. Não diferentemente da Europa, no Brasil o Espiritismo fora interpretado de variadas formas por diferentes grupos. Na década seguinte, surgiram as primeiras iniciativas com objetivo de formar uma unidade doutrinária e reunir institucionalmente a crescente população dispersa de adeptos à doutrina. Nesse contexto, passaram a ser conformadas instituições agremiadoras dos numerosos núcleos espíritas já existentes. Assim, em 1884, fundou-se a Federação Espírita Brasileira (FEB), que nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do século XX atuou na efetivação de uma organização do movimento espírita nacional (Weber, 2012, p. 23). Contudo, somente por volta de 1950 a FEB assumiria a liderança do movimento espírita brasileiro.


A Doutrina espírita chega ao Rio Grande do Sul


O cenário político sul-rio-grandense no final do século XIX e início do século XX foi basilar para a inserção do espiritismo no Rio Grande do Sul. Mesmo que houvesse as proibições determinadas pelo Código Penal de 1890, dado que seus artigos 156 e 157 vinculavam o espiritismo com magia e com práticas de curandeirismo, no estado do Rio Grande do Sul, devido à política positivista da época, fora assegurada a liberdade religiosa. A doutrina pôde, então, fruir de maior liberdade, não só de prática, como também de difusão por todo o estado (Gil, 2008, p. 94).

Júlio de Castilhos, em julho de 1891, outorgou a Constituição que consagraria não somente a liberdade profissional, mas também o irrestrito respeito a todas religiões, eliminando um culto oficial e assegurando a independência entre o poder temporal e o espiritual (Gil, 2008, p. 93). No entanto, o processo de ascensão da nova doutrina não se deu sem percalços, estes advindos, sobretudo, de lideranças católicas e dos saberes médicos da época. Entretanto, em razão da legalidade da liberdade de culto, provida pelo estado, tais embates se deram de maneira mais amena do que no restante do país (Sherer, 2013, p. 34).

De acordo com Dias (2011, p. 144), a chegada da doutrina espírita no Rio Grande do Sul tivera início na cidade de Rio Grande, resultado de um trabalho pioneiro de alguns intelectuais que incorporaram as ideias da doutrina espírita. No ano de 1887, foi fundada a Sociedade Espírita Rio-Grandense, considerada a primeira do estado. Em seguida, foram criadas a Sociedade Espírita Allan Kardec, em Porto Alegre, no ano de 1898, e a Sociedade União Espírita, na cidade de Pelotas, em 1901. Então, já no ano de 1921, a Sociedade Espírita Allan Kardec de Porto Alegre juntamente com outras entidades articularam a Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS) (Sherer, 2013, p. 23). Nessa mesma ocasião de articulação da FERGS, fora realizado o I Congresso Espírita do Rio Grande do Sul, que contou com 18 grupos organizados de várias cidades sul-rio-grandenses.

No processo de ocupação da região norte do Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX, desenvolveu-se, através da abertura de novas rotas de passagem e de comércio à Província, o início da ocupação luso-brasileira na região. Propiciou-se, assim, o início da formação de fazendas pastoris e de um núcleo populacional estável, o que resultou na convivência entre diferentes grupos: a população cabocla e indígena, como também tropeiros e militares de passagem (Batistella, 2011).

Emancipado em 1857, o município de Passo Fundo mostrou, a partir de então, um crescimento demográfico contínuo, tendo como atores principais do incremento populacional negros escravizados – que em 1859 já compunham 20% da população total da localidade – e imigrantes/migrantes – sobretudo alemães e italianos –, entre outros grupos que ainda constituem a base étnica do município.

Os primeiros registros históricos redigidos sobre o município de Passo Fundo dão ênfase ao catolicismo como a base religiosa, sobre a qual os passo-fundenses se apoiaram desde o início do núcleo urbano. Contudo, mesmo que a historiografia apresente a diversidade étnica dos munícipes, percebe-se a carência no que tange a diversidade religiosa nas narrativas sobre o município, considerando esse elemento de diversidade fundamental, pois tais discursos silenciam a multiplicidade advinda de tamanha mescla étnica e cultural (Souza, 2016).

O “manto católico” está presente – não somente na cidade de Passo Fundo, mas em todo Brasil – desde os tempos coloniais, encobrindo assim as demais crenças, práticas, ritos e rituais de outras matrizes religiosas que, com toda certeza, coexistiram, atrelando-se ao catolicismo e à dinamicidade sócio-histórica brasileira, sul-rio-grandense e, por conseguinte, em Passo Fundo e região (Zanotto; Silva; Gastaldon, 2013).


Das casas aos centros: o espiritismo em Passo Fundo


As pesquisas sobre o Espiritismo na cidade de Passo Fundo são atuais, mas remotas são as provas de um Espiritismo já consolidado no município. Contudo, sabe-se que entre os anos de 1902 e 1903 houve o registro da fundação do primeiro núcleo espírita local:

deve ao venerado conterrâneo e confrade sr. Francisco Antonino Xavier e Oliveira, as informações sobre os dois mais antigos grupos espíritas desta cidade. Eis que conta êle, na colaboração publicada em Dezembro de 1950, edição nº 33, dêste órgão, sob o pseudônimo de AVILER:[7].

Gastão Marques - Fig 01

Figura 01. Gastão Marques, membro da Diretoria do Centro Espírita de Amor e Caridade Cristã. Fonte: O Orientador. AHR.

O segundo núcleo chamou-se Grupo Espírita Concórdia e Caridade, fundado em 29 de junho de 1905, cuja diretoria era constituída por Eduardo Manoel de Araújo, Francisco Antonino Xavier e Oliveira, João de Deus Goulart, João Brandizio de Almeida, Alfredo Pereira da Silva e Carlos Leopoldo Reichmann. Porém destaca-se que o núcleo não teve longa duração.

Já o primeiro centro espírita do município de Passo Fundo foi o Centro Espírita de Amor e Caridade Cristã (CEACC), criado no início da década de 1920, possivelmente entre os anos de 1923 e 1924; nesse mesmo período também se originou o Grupo Espírita Camilo Flamarion, que se fundiu com o CEACC poucos anos depois. O centro foi fundado por Gastão Marques e na ocasião de fundação consta nas atas a presença de 80 pessoas, externando que mesmo em época de pouco conhecimento da doutrina o número de presentes reflete em seu crescimento na cidade. Juntamente com Gastão Marques, faziam parte da diretoria do centro Herminia Chicuta e Antônio Cruz Rosado, tendo como médiuns Carmem Rosado e Antonina F. Martins. O CEACC durou, segundo a narrativa espírita, em torno de um ou dois anos (Souza, 2016).

Ainda no ano de 1924 há registros de atividades do denominado Grupo Sr. Manuel Peres, que teria atuado apenas por três anos. Após sua extinção, seus membros reuniram-se ao CEACC, fundando, em 25 de dezembro de 1935, o Centro Espírita de Caridade Dias da Cruz, que no ano de 1943 se filiou a FERGS (Zanotto; Silva; Gastaldon, 2013, p. 50). Conforme o jornal Orientador:

C.E. DE CARIDADE- Em seguida, estando adquirido o prédio pelo Grupo, foi êste ali instalado, tomando a denominação de Centro Espírita de Caridade , fundado a 25 de Dezembro de 1935. A presidência foi assumida pelo irmão Pedro Cogo, que exerceu tal cargo durante 20 anos, com grande compreensão e dedicação. Desencarnando em 1955, foi substituído pelo atual presidente irmão Ernesto Formighieri que vem prestando excelentes serviços. O C.E. possúi magnífica sede, tendo anexo, um hospital para doentes mentais, o qual tem sido de grande eficiência, inclusive para doentes de fóra. Possui departamento da juventude e infância, sob direção de duas evangelizadoras que fizeram curso especial em P. Alegre. No serviço de assistência, possui o Roupeirinho do Pequenino, que vem prestando bons serviços[7].

As inúmeras instituições espíritas, sejam nacionais ou sul-rio-grandenses, estiveram imbuídas das perspectivas gerais do movimento espírita, codificadas por Allan Kardec e, mais tarde, sistematizadas pela FEB. Tais concepções baseavam-se na noção da caridade, em que a doutrina enfatizava o auxílio material aos necessitados. Desse modo, os núcleos e centros espíritas promoveram a organização de instituições de caráter assistencial (Souza, 2016, p. 29). De acordo com Souza (2016),

a caridade, portanto, seria o alicerce para expansão da ação espírita, seria através dessa prática social que o Espiritismo superaria os preconceitos e incompreensões religiosas da sociedade. Para a historiografia acerca da prática assistencialista do Espiritismo, fica claro que a caridade não se limita a uma visão de senso comum, de distribuição de esmolas, mas sim que se trata de uma virtude maior, mais representativa, vinculada a ajuda moral e espiritual (não somente material, portanto) (Souza, 2016, p. 26).

Foi nesse sentido que o C.E.C. Dias da Cruz assimilou claramente essa noção, visto o trabalho assistencial em benefício de crianças – Cidade dos Menores Desamparados e Fundação Allan Kardec –, a oferta de ensino escolar – Escola Assistencial Municipal Manuel Peres –, uma atividade de assistência social, responsável pela distribuição de roupas, alimentos e remédios – Roupeirinho dos Pequeninos –, bem como o tratamento de doentes mentais no chamado Hospitalzinho, que funcionava no andar térreo do C.E.C. Dias da Cruz[7]. A dimensão das práticas assistencialistas não se limitou apenas a essas atividades mencionadas, incluía-se também estudos desde a infância sobre o Espiritismo, além de passes e de auxílio a espíritos “desencarnados” através de sessões mediúnicas.

Hermínia de Oliveira Chicuta Fig. 02

Figura 02. Hermínia de Oliveira Chicuta. Fonte: O Orientador. AHR.

Para mais, é preciso ponderar sobre a perceptível presença de mulheres durante as organizações dos núcleos e centros da doutrina na cidade, exteriorizando a permeabilidade do espiritismo por entre a elite intelectual e, inclusive, em meio a figuras femininas que se destacaram em âmbito regional, apesar de serem sempre consideradas coadjuvantes no cenário político, social e religioso da época (SOUZA, 2016). Na imagem a seguir (Figura 1), tem-se como primeiro exemplo retratado na imprensa espírita passo-fundense, Herminia de Oliveira Chicuta, pioneira na participação e representatividade feminina no meio espírita da cidade, o que acaba por remeter aos papéis fundamentais tidos por mulheres na organização, inserção e divulgação da doutrina em Passo Fundo e região.

Destaca-se que os diversos meios de assistencialismo aos setores desassistidos, não só possibilitou a divulgação da doutrina, como aumentou o número de adeptos e simpatizantes. Isso agrega-se, então, à proposta de praticar a caridade com a intenção de evangelizar seus adeptos. Nesse sentido, o C.E.C Dias da Cruz passou a utilizar como veículo de difusão um periódico, intitulado Orientador. Assim, a criação de um órgão de imprensa pelos membros do C.E.C Dias da Cruz visou a introdução na sociedade passo-fundense dos princípios ético-morais da crença e mostrou-se fundamental, não só para intensificar a divulgação, como também para consolidar o Espiritismo em Passo Fundo.

Referências

  1. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). É membro do projeto de pesquisa Religiões e Religiosidades: Possibilidades de Pesquisa, vinculado ao Laboratório do Estudo das Crenças (LEC).
  2. Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869) nasceu em Lyon na França, estudou no Instituto de Educação de Pestalozzy. Dedicou-se ao magistério, à tradução de livros e à preparação de livros didáticos. Também prestou trabalhos de contabilidade, além de contribuir na área do ensino, onde seus livros foram adotados em estabelecimentos de ensino público francês. A partir de 1855, empenhou-se a estudar os fenômenos e as crenças relacionadas a uma vida após a morte. Ver mais em: Damazio, 1994, p. 45
  3. Movimento tido a partir das ideias do alemão Franz Anton Mesmer (1733-1815). Segundo Mesmer existiria no ser humano e em toda natureza uma energia magnética capaz de ser manipulada pela vontade e pelo uso das mãos e de ser posta a serviço da medicina. Ver mais em: GIL, Marcelo de Freitas. O movimento espírita pelotense e suas raízes sócio-históricas e culturais. 2008. 184 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2008, p. 57.
  4. O termo “Espiritismo” surgiu como um neologismo, criado pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail para nomear especificamente o conjunto de ideias codificadas por ele, após a publicação de seus livros. Desse modo, nesse trabalho adotar-se-á tal termo.
  5. Usar-se-á desse termo “espiritualista” para denominar as crenças que se baseiam na reencarnação, comunicação com espíritos e mediunidade, porém que se diferem do Espiritismo, pois não se fundamentam nas obras básicas da doutrina kardecista.
  6. Luiz Olympio Telles de Menezes (1825-1893) fora um intelectual baiano, com passagens em conselhos artísticos imperiais e fundador de um jornal literário. Após ter contato com a obra de Allan Kardec, deu o pontapé inicial do espiritismo em solo brasileiro, traduzindo as obras, publicando em jornais laicos e mais tarde fundando o primeiro periódico espírita brasileiro.
  7. 7.0 7.1 7.2 ORIENTADOR. Passo Fundo, nº 109, abr. 1957, p. 4.