O que é isso, Canabarro?

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O que é isso, Canabarro?

Em 21/08/2012, por Ânderson Marcelo Schmitt


O Viés da Liberdade - ou O que é isso, Canabarro? [1]

Ânderson Marcelo Schmitt[2]


Parte I

Durante a guerra civil de 1835-1845, os rebeldes farroupilhas enfrentaram uma grande escassez de recursos. Estiveram impossibilitados de comercializar com a região de Pelotas e Rio Grande, que permaneceu fiel aos legalistas – apesar da ironia desta última cidade guardar os restos mortais de Bento Gonçalves. Não obstante as situações esporádicas em que os inimigos negociaram, a venda dos artigos da campanha rio-grandense esteve voltada à fronteira platina, uma vez que também a tentativa de acesso ao porto de Laguna foi impossibilitada perante a falta de apoio da população catarinense. O gado era exportado em pé para o Uruguai e lá charqueado, e os lucros eram voltados a satisfazer as despesas da guerra. Este gado era retirado, principalmente, das fazendas dos cidadãos que permaneceram do lado legalista. Estas estâncias deveriam ser arrendadas a farroupilhas pelo seu governo, publicamente, e estiveram submetidas a séries de abusos por parte dos rebeldes. Cavalos, bovinos e escravos eram retirados das propriedades; estes últimos saíam para as fileiras do Exército. De um desses arrendamentos surgiu um curioso caso envolvendo um oficial farrapo do decênio.

Em 1841, Leocádio Silveira Gomes escrevia a Domingos José de Almeida, Ministro da República Rio-grandense, relatando um descomedimento ocasionado em razão de outro abuso: havia seu irmão arrendado a fazenda de Manuel José Machado, tendo cedido um escravo chamado Duarte, que pertencia à fazenda – e também estava arrendado - para acompanhar Leocádio em uma de suas viagens. Logo, Duarte foi seduzido pelas promessas farroupilhas de liberdade para os escravos que se apresentassem para lutar em suas fileiras, e acabou fugindo, indo dar no acampamento do General David Canabarro (logo o futuro carrasco de Porongos! Que escravo azarado!), para sentar praça.

Ao procurar o General Canabarro, Leocádio pediu a ele que passasse um documento para que seu irmão não saísse no prejuízo com o negro, sendo pago por uma das coletorias do Estado farroupilha. O General, porém, negou-se a passar um documento comprobatório, dizendo para Leocádio que Duarte estava garantindo que não havia entrado no acordo do arrendamento, podendo servir sem necessidade de pagamento aos arrendatários (seria o relato real ou resultado do medo de Duarte de ser devolvido e voltar a ser mero escravo desesperançado?).

Há muito não é mais novidade que os farroupilhas, em nenhum momento, objetivaram uma reforma social em seu Estado. Os negros que lutaram em suas fileiras ou eram retirados diretamente das estâncias legalistas; ou eram de farroupilhas que vendiam estes escravos para o Estado; ou ainda, negociados com os arrendatários, quando os escravos entravam no contrato como mais um bem.

Neste caso, Canabarro pedia que Leocádio justificasse sua pretensão de pagamento. O irmão do arrendatário escreveu, então, para o Inspetor do Tesouro da República Rio-Grandense, pedindo para que lhe fosse enviado o termo do arrendamento, o qual declararia o nome de todos os escravos que entraram no negócio como bens. Assim, o irmão de Leocádio seria ressarcido do valor de um escravo que não era seu e que pertencia a uma estância que não era sua, Canabarro teria mais um bravo combatente em suas hostes, e Duarte teria sua liberdade de soldado-escravo. Ou seja, todos ficariam surpreendentemente felizes.

A atenção de Leocádio mudava, então, de objeto. Por alguma razão, Canabarro ordenou que ele se preparasse para segui-lo até o acampamento das tropas. Contrariado, seguiu o chefe farrapo, percebendo que o General estava pretendendo arregimentá-lo. Nesse momento, enfim, surgia a preocupação com a sua liberdade, mesmo que Leocádio apenas fosse se tornar temporariamente um cidadão-soldado de Guarda Nacional, mesmo não sendo um escravo negro fugido, como Duarte...

Parte II

Seguimos com o relato sobre um curioso acontecimento da guerra civil de 1835-1845, especificamente do momento em que o cidadão Leocádio, em 1841, se dava conta de que talvez a liberdade até fosse algo interessante...

Após ter rogado a Canabarro que não poderia servir em razão dos seus afazeres pessoais, Leocádio foi mantido sob os cuidados de um certo Tenente Sousa, e deveria marchar em alguma movimentação dentro de poucos dias. O fato de Leocádio sempre ter sido afeto à causa farroupilha não era suficiente para que Canabarro o liberasse de suas fileiras (a frase está correta, por maior que pareça o paradoxo). O espanto do cidadão aumentava com o fato de que jamais havia sido recrutado!

Em seu relato desesperado a Domingos José de Almeida, Leocádio achava estranho que nenhuma força inimiga se apresentasse nas imediações, e até mesmo estivessem se licenciando as tropas de Guardas Nacionais, mas ele, tendo tantos afazeres, fora recrutado sem mais explicações. Seria a pouco provável necessidade imediata de soldados? Seria vingança pelo infortúnio de levar Canabarro a ouvir uma reclamação relativa a um negro? Mais segredos do nosso General.

Leocádio pedia para que o Ministro Domingos lhe enviasse uma portaria que pudesse apresentar a Canabarro para deixar a tropa. Enfim, sua boa relação com Almeida lhe possibilitou o recebimento da portaria – as mesmas relações que possibilitavam arrendamentos mais que suspeitos. Há que se ressaltar que, relativo ao escravo, o Ministro farroupilha não discordava da entrada de Duarte para o Exército, concordando com a postura do General Canabarro. Isso por que seu proprietário legítimo era realmente mal quisto pelos rebeldes.

Menos de um mês depois, Leocádio entrava em comunicação novamente com o Ministro. O General não havia aceitado a portaria, indignando-se com a petulância de ser enviada reclamação ao Ministro sem sua licença. Canabarro ficou com o requerimento, dizendo que assim era necessário, e prendeu o cidadão no piquete do Exército. Quando Leocádio escreveu o segundo ofício pedindo ajuda para o Ministro Almeida, com quem mantinha ótimas relações, já há três dias estava preso, não dando importância o General para suas explicações. Para tirá-lo das vistas de Canabarro, Almeida lhe ofereceu um emprego na sua jurisdição, o que foi, obviamente, aceito por Leocádio. A situação foi resolvida, pois no mês seguinte há relatos de Leocádio negociando gado em outra região, juntamente com um amigo.

Quanto ao escravo Duarte, nada mais sabemos. Possivelmente tenha se mantido nas tropas farroupilhas, ocorrendo o pagamento de seu valor aos seus arrendatários ou não. É um grande candidato a ter presenciado a traição de Porongos, quando os negros lanceiros foram desarmados por ordem do General Canabarro, sendo massacrados por Chico Pedro, o Moringue, para acelerar as tratativas de pacificação. Triste madrugada de 14 de novembro de 1844. Esperamos que Duarte não tenha trocado uma vida de escravidão por sorte ainda pior, por uma liberdade totalmente controversa.

“O que é isso, Canabarro?” não foi uma frase escrita por Leocádio em seus ofícios enviados a Almeida, nem nada nos leva a supor que ela tenha sido dita por ele, até porque a falta de respeito ao não lembrar o cargo de General de Canabarro, seria uma falta grave. Mas não importa, muita coisa sobre a Guerra dos Farrapos também não foi dita, o que não elimina a existência de situações contraditórias e instigantes naqueles anos de guerra civil.

Referências

  1. Fonte: Acervo AHR - Os artigos expressam a opinião de seus autores.
  2. Mestrando em História na UPF