As duas mortes da primeira santinha de Passo Fundo

From ProjetoPF
Revision as of 07:56, 22 December 2021 by Projetopf (talk | contribs) (Novo artigo)
(diff) ← Older revision | Latest revision (diff) | Newer revision → (diff)
Jump to navigation Jump to search

As duas mortes da primeira santinha de Passo Fundo

Em 2014, por Gizele Zanotto


As duas mortes da primeira santinha de Passo Fundo

Gizele Zanotto[1]


Passo Fundo tem tido ampla repercussão local, regional e mesmo nacional através da divulgação da devoção a menina Maria Elizabeth de Oliveira, falecida em 28 de novembro de 1965 quando, juntamente com amigas, brincada pelas ruas quando fora atropelada e, em razão dos ferimentos, perdeu a vida. Desde então a chamada “santinha de Passo Fundo” tem recebido honras, pedidos, homenagens e, segundo os fiéis, tem amparado e realizado milagres. Esta devoção, todavia, não fora a primeira na cidade. Décadas antes do falecimento e início das crenças na intermediação de Maria Elizabeth, era Maria Pequena que impulsionava fiéis que buscavam consolo, realizações, pediam proteção e demandavam milagres e ajuda.

Maria Pequena –Maria Meireles Trindade -, segundo os parcos registros a que temos hoje acesso para contar parte de sua história, era filha de Nicanor Trindade e de Marcelina Coema, “formosa bugrinha das selvas de Nonoai” (Gomercindo dos Reis, O Nacional, 01/06/1955). Casada com o tenente Marciano Angelino, vivia em Passo Fundo próximo ao Arroio Raquel, na atual Vila Carmem. Segundo Gomercindo dos Reis, Maria tinha fama de falar com Nossa Senhora e ser vidente, o que lhe consagrava ainda em vida como alguém com poder simbólico expressivo ante a comunidade.

Durante a Revolução Federalista seu marido e filho participaram do conflito apoiando os denominados legalistas, defensores da causa castilhista. A cidade foi agitada durante os conflitos com sua população apoiando o legalismo ou o federalismo, evidenciando uma polarização expressiva entre os moradores e mesmo em toda a região, palco de batalhas ao longo da contenda. Envolvidos os homens nas batalhas e campanhas, para as mulheres, em geral, mantinha-se o cotidiano de organização do lar e manutenção familiar em meio ao cenário de disputas políticas que se tornaram militares. Fora numa busca dos inimigos por Marciano e seu filho que o destino de Maria Meireles foi traçado. Segundo os registros, federalistas os procuraram na casa da família e não os encontrando foram em busca de Maria que estaria no Arroio Raquel lavando roupas. Às margens do riacho inquiriram a esposa e mãe que, ante as negativas em identificar onde estariam Marciano e o filho, sofreu duras consequências: “Maria Pequena, foi barbaramente assassinada, com três punhaladas e uma degola, a 28 de novembro de 1894, por um piquete revolucionário” (Gomercindo dos Reis, O Nacional, 01/06/1955).

Sua morte teria causado comoção imediata na população que providenciou seu enterro no próprio local de morte, espaço este que ficou conhecido como Cemitério da Cruzinha e que recebeu, posteriormente, restos mortais de crianças falecidas. Também no Cemitério começou a devoção à “santinha popular”, considerada milagrosa. A veneração a Maria Pequena iniciara de modo voluntário, acreditamos, muito em função da consideração anterior da mesma como vidente e próxima a Nossa Senhora. Da mesma forma, sua morte violenta em defesa da família legou à Maria outro fator de devoção em nada desprezível, o amor maternal, que foi responsável pelos enterros das crianças à sua volta.

Morta em 1894, mobilizou devoções até a década de 1950 quando em função de obras de modernização e urbanização citadina, teve seu túmulo removido e seus ossos recolhidos a então Igreja Catedral em construção. De lá seus restos mortais seriam acomodados em uma capela em honra a santinha. Todavia, - e eis aí a “segunda e derradeira morte de Maria Pequena” –, o espaço nunca foi construído e sua devoção arrefeceu até o esquecimento da milagrosa pela população.

Morta duplamente, Maria Pequena foi esquecida, todavia, anos depois, outro evento traumático ocorrido no mesmo dia do assassinato de Maria Meireles seria registrado na cidade e mobilizaria uma nova devoção – o atropelamento da menina Maria Elizabeth. 28 de novembro mantêm-se como data devocional para milhares de fiéis que prestam suas homenagens agora à menina santa. Altera-se o objeto do crer, transformam-se as demandas e as manifestações de fé, mas persiste o investimento simbólico no poder mediador de uma santinha local. Morrer para viver foi o destino das santas, uma com dupla morte, a segunda com um falecimento trágico e ainda extremamente mobilizador.

Referências

  1. Profa. Gizele Zanotto (PPGH/UPF)