Rumor nas fronteiras
Rumor nas fronteiras Agostinho Both narra a história de oito gerações. A complexidade humana com suas tragédias é o motor de inspiração. Rumor nas fronteiras revela diversos conflitos dos personagens: desde os geográficos até os sexuais. O rumor anda nas coxilhas e dentro da cidade. Dentro e fora dos personagens. Os limites das fronteiras são, muitas vezes, tênues e, outras, rumorosas. Doem na maioria dos personagens: as angústias chegam ao desespero. Como suportar a ambivalência afetiva. Entre o passado e o futuro se mostram cargas pesadas. As famílias se multiplicam entre ásperas dificuldades, superações e dores. Mudam-se os tempos e os costumes. Conclui-se no rio Uruguai a solução para a fome e o destino de ribeirinhos. Sonhos se alternam com o duro cotidiano. O campo se transforma e a cidade oferece seu espaço, multiplicando a austeridade. Cada família compõe sortes tensas, outras alegres. Enfim, nada como ler para vibrar com o tumultuado destino humano.
Livro escrito por Agostinho Both, publicado em 2018
Apresentação
do Primeiro Capítulo, pelo Autor
UMA FAMÍLIA
Eu, Francisco Oliveira, consegui aprendizado precoce da língua. Pudera! Filho de Amanda, exímia professora de Língua Portuguesa e do hábil mestre de obras Gilberto de Oliveira. Este, de tanto ouvir a esposa, caprichava, embora se desculpasse:
–– Minha fala é precária.
Amanda ia produzindo efeitos na alma dos dois homens da casa, tendo especial atenção no menino. Ele crescia vendo o mundo cada vez melhor.
Dizia ela:
––O mundo se vê com palavras. As ideias dão o sentido, as pa- lavras alimentam.
Eu, chateado, reclamava do dia.
–– Se existe tristeza, guri, o jeito é fazê-lo melhor. Te fiz debaixo de mau tempo. Sofri horrores pra ter você, piá. Olhe pra você como se fosse o artista ou repórter do teu dia.
–– Vai sair um filme de Frankstein.
–– Não seja pessimista, filho.
–– Sei que não sou.
–– Para, então, de dizer bobagens!
–– Aceito, vou ver de perto os meus dias.
–– Vai firme. Acredite em mim. Se o diabo sabe porque é velho, eu digo: mais sábias que os diabos são as mães.
–– Sinto medo e um vazio como se nem mãe eu tivesse.
–– É natural, é o vazio pra caber ainda mais.
–– Vou acreditar! Valeu, mãe! Tô um pouco melhor.
Nada mais foi dito. Iniciei com as tentativas de observar o co- tidiano. Muitos foram os dias em que nada via de grandes fortunas. Cheguei-me mais uma vez até a minha senhora:
–– Acho que estou cego. Nada tenho a dizer e nada vejo de in- teressante.
––Eu não te deixei uma camisa nova sobre a cama, questionou
a mãe?
–– Sim e daí? Camisa é camisa!
–– Nada, filho. Aí tem amor, piá.
Fim de mais um mês:
–– Viste algo, filho?
–– Umas gramas verdes de manhã.
–– Que bom! Para alguns a terra é apenas terra, para outros é
visto um mundo nas gramas. É assim: a gente espia com os olhos, mas quem vê é a alma. Faça conforme a história de um treinador. A lenda narra: Ele pediu ao aprendiz de arqueiro para que atirasse numa aranha distante.
–– Não vejo nada, instou o aprendiz.
–– Ela está lá, disse o arqueiro. Olhe bem se quiser ser um bom arqueiro.
O aprendiz começou a olhar com um olho de cada vez. Com
mais dias de exercício, distinguiu a aranha distante.
–– Então minha alma vê pouco. Por isso os olhos pouco vêem.
–– É possível.
–– Vou me confessar pra ver se Deus limpa meu ser de toda a maldade.
–– Peça, de carona, a ternura.
Mais três anos se passaram: dos treze pros dezesseis. Iniciara com a mãe a arte de ser professor de si mesmo. Por mais que estivesse crescendo, aumentavam os afetos voltados para mamãe. Até demais.