A solidão e o santo

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Capa: Silvana Oliveira
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File:A solidão e o santoEbk.pdf
Autor Agostinho Both
Título A solidão e o santo
Assunto Romance
Formato E-book (formato PDF)
Editora Projeto Passo Fundo
Data da publicação 2012
Número de páginas 94
ISBN 978-85-64997-71-4

A solidão e o santo - Isabel sabia que a espera era longa demais para a fragilidade de Artêmio. Deixou de lado qualquer outra preocupação, buscando ser a melhor cuidadora. Bernadete veio visitar o pai, que estava debilitado, queixando-se de falta de ar. Coragem eu tenho, brincava, a exemplo de Bento Gonçalves, o que me falta é ar, filha. O geriatra, humano e estudioso, avaliou o silêncio artêmico como desligamento voluntário. Os exames de sangue indicavam um declínio galopante da saúde. A serenidade quase alegre do doente mostrava o conhecimento do que lhe acontecia. Hora dessas falou: a viagem chega ao fim. Nada de novo em desembarcar... afinal, outros passageiros podem começar seu caminho. Veio o senhor bispo, que ficou por diversas horas de mãos dadas com o frustrado amigo. Apertando a mão de Artêmio, revelou seu encanto pela vida do amigo. Brincou soprando ao ouvido do santo: acho que a santa madre Igreja anda meio devagar. E surda, retrucou Artêmio, num sopro. Um sorriso maroto foi um bom sinal de vida. De tudo o que mais consolava era quando Isabel se reclinava sobre ele, aproximando a cabeça velha em seu peito e as mãos nas mãos um do outro.

Livro escrito por Agostinho Both, publicado em 2012

Apresentação

do Primeiro Capítulo, pelo Autor

Transtornos do Padre Artêmio

Pode  haver  quem  pense:  os  santos  devem  ficar  quietos  como  melões. Repletos da graça de Deus, podem estremecer de alegria por todo o  sempre.  Fogem  dos  ruídos,  tendo  o  silêncio  em  grande  consideração.  Perguntados  se  o  silêncio  é  confortante,  dizem  que  é  uma  graça  e  se,  ainda   no   silêncio,   puderem   ouvir   a   Deus,   ele   se   torna   divino.   A   contemplação silenciosa pode fazer o tempo ir e vir. Nela todas as coisas visíveis  e  invisíveis,  reais  ou  imaginadas  têm  seu  esplendor  e  profusão,  revelando-se  a  essência  sem  as  destoantes  palavras.  Se  a  velocidade  do  corpo  perde  a  mobilidade,  pode  a  mente  ser  rápida  como  um  beija-flor. Tem  a  oportunidade  de  recolher  os  significados  revelados  e  os  não  revelados. Padre Artêmio, ao contrário, está perdendo a graça do silêncio e  corre  angustiado  para  a  casa  paroquial,  tendo  a  sensação  de  estar  sendo  devorado.  O  sistema  nervoso  está prestes  a  entrar  em  colapso.  Nada  melhor  que  sair  do  desamparo  das  inúmeras  e  ruidosas  palavras  e  se atirar para dentro de uma toca ou nas mãos grandes de Deus. Poderá se confortar para muito além das nuvens e para muito além das pessoas. Todas   as   coisas   animadas   e   inanimadas   não   mais   se   apresentam   humildes  à  sua  atenção.      Nada  mais  é  suficiente  porque  nem  mesmo  no  silêncio  consegue  retirar  mais  um  sentido  em  tudo  que  faz.  Quis,  então,  saber quais motivações poderiam impulsioná-lo para além. Deus surgiu-lhe como solução, mas a salvação que tanto pedira andava minguada e a paz se  dissolvia  como  pó.  A  comunhão  solene  com  Deus  estava  de  poucos  liames,  porquanto  a  boca  estava  azeda  e  morria  o  seu  ânimo,  como  um  peixe se debatendo na grama. O vigário comia o pão que o diabo amassou e agora os ruídos aumentavam em torno de si. O inferno constituía-se até de  seus  melhores  fiéis,  tão  mal  andava  o  santo  homem.  Privara-se  de  todas   as   carícias   e   Nossa   Senhora   sabia   de   quantas   promessas   compunham-se as horas para que se preservasse a pureza do corpo e da alma.  Aí,  puro  como  um  São  Luiz.  Na  verdade,  o  cansaço  deixara-o  sem  as  antigas  vontades  de  salvar,  de  consolar  os  velhos,  as  viúvas  e  os  jovens. O seu silêncio, por mais profundo e divino que fosse, compunha-se de solidão. Padre  Artêmio  sabia  da  angústia  com  que  a  vida  se  traduz.  Sobrevinha-lhe    um    estado    que    se    caracterizava    como    perigo,    desconhecendo   o   motivo   e   a   origem.   Percebia-se   submergido   e   transtornado,  preso  a  um  lado  que  não  esperava.  Tinha  tudo  em  Deus  e,  agora,  como  uma  nave  à  deriva.  Habitara  com  as  estrelas,  sentindo,  por  vezes,  um  sopro  de  Deus.  Disso  poderia  até  jurar.  Não  contava,  então,  com  o  sistemático  deserto.  Perdera  a  bússola,  quando  antes  sabia  de  todas  as  direções  a  serem  tomadas.  As  decisões  aristotélicas  tidas  como  inspiração   do   divino   faziam   sucesso   e   muito   bem.   Tinha   certezas   absolutas:  uma  lógica  que  ia  do  primeiro  motor  de  tudo  até  a  suavidade  sobre o bem a ser feito. Congratulava-se com sua mãe por saber que ela ouvia  fartos  elogios  a  seu  respeito.  As  falas  da  mãe  e  a  sua  satisfação,  uma  vez,  alimentavam  a  autoestima  do  vigário,  que  já  ia  pelos  sessenta.  Nada mais o movia a não ser as coisas que entendia serem da vontade de Deus.  Estava  inteiro  e  não  havia  conhecido  mulher  alguma.  Vinha-lhe  até uma  divertida  observação:  que  coisa  é  essa  de  desejar,  justo  em  meus  sessenta,  estar  com  uma  mulher  se  meu  corpo  já  não  deveria  solicitar  tanto assim.   Sonhos  antigos  começaram  a  povoar  seu  sono.  E  que  realidade  estranha  essa  de  num  deles  ver  sua  mãe  deitada,  serena,  com  cara  de  santa, ser transportada por ele, sendo ele um pássaro que a carregava no bico sobre as matas da infância. Quase morreu de susto quando um amigo psicólogo,  baseado  numa  explicação  freudiana,  mostrou-lhe  o  significado  libidinoso. Que  explicação  mais  doida  pensou,  mas  em  razão  de  outro  sonho  teve  de,  rindo,  pedir  desculpas  a  São  José.  Que  barbaridade  é  essa!   Acho   que   estou   de   surto   libidinoso,   ou   retorna   em   mim  a  adolescência reprimida?

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