Imigrantes africanos - Sua história, cultura e tradições

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Imigrantes africanos - Sua história, cultura e tradições

Em 1999, por Edy Isaias


Imigrantes africanos - Sua história, cultura e tradições [1]

EDY ISAIAS[2]


Em abril de 1916, mais precisamente no dia 23 (dia de São Jorge ou de Ogum), foi fundado o Clube Recreativo Visconde do Rio Branco, na casa do meu avô, Cândido Bernardo da Cruz.

Lá estavam presentes, Claro Severo, o idealizador do nome do clube, Bento Isaias, meu outro avô, Osório Severo, João Bernardes da Cruz, Dona Madalena Gorda, que veio a ser presidente do clube, e outras pessoas.

A união da raça negra deve-se aos sacrifícios impostos pelos espanhóis e portugueses, que retiraram os negros de suas origens para o trabalho duro e fora do seu "habitat". A dança, o canto, seus ideais e sua religião agregaram suas forças em tomo de sociedades.

A primeira sede do Clube Recreativo Visconde do Rio Branco ficava uma quadra e meia distante do local onde é hoje, na Rua Moram. Era uma casa enorme. de madeira, toda coberta de zinco.

Mas, como os choques de opinião eram comuns, passado algum tempo da fundação do Visconde, o pessoal se desentendeu e um grupo resolveu fundar outro clube, com o nome de José do Patrocínio. Entretanto, a idéia não vingou e o novo clube teve curta duração. Todos se reuniram e voltaram a trabalhar novamente para o primeiro.

O Visconde do Rio Branco não tem só 83 anos de fundação como se comemorou em 1999. Os nossos antepassados, que aqui chegaram por volta de 1682, já desenvolviam, nessa época, atividades associativas, com músicas para os seus senhores e depois eram eles que dançavam. Assim sendo, o Visconde como sociedade conta mais de trezentos anos.

O ponto alto das atividades sociais se manifestou a partir do século XVIII. De 1840 até 1912, eram comuns as danças de rua, os autos populares como Bumba-rneu-boi, maçambiques, congadas, terno de reis, maculelê e outras danças, uma mistura de religião e divertimento.

Os negros mais dançavam nas festas da igreja. Nas senzalas, não dançavam. As diversões eram ao ar livre, nos pátios.

Mas eles já possuíam a tendência para formar sociedades.

Quando chegou a Passo Fundo, em 1916, um circo de "borlantim" (assim e chamava na época), veio com ele o Claro Severo, que atuava no circo como palhaço. Coisa muito rara, já que era negro. E foi ele quem sugeriu o nome de Visconde do Rio Branco.


Uma passagem cômica


A Dona Clemência, que era viúva e mãe do Carlos, de apelido "Bocha", era também grande incentivadora do Visconde.

Certa vez comentou que, no dia seguinte, no início da tarde, iria levar flores no cemitério municipal pra colocá-las no túmulo do seu falecido marido. Meu tio-avô Eduardo Theodoro de Almeida, também fundador do Visconde, ouviu a conversa. Ele era ferroviário e, naquela tarde, estava de folga. Pois bem cedo foi ele lá para o campo santo e se escondeu atrás de uma sepultura, perto de onde iria Dona Clemência. Quando ela chegou e começou a rezar, ele fez uma voz tremida e lamurienta, chamando pelo nome dela. Dizia pausadamente: "Que-Ie-rnên-ci-a!" E repetiu o chamado várias vezes. Ela não quis saber de mais nada. Saiu correndo do cemitério e voltou para casa. Apavorada, contou o fato às amigas e vizinhos. Toda a comunidade do Visconde ficou sabendo e rindo da história. Por muito tempo, a Dona Clemência rompeu relações com meu tio.


Dona Chiquinha


Foi outra mulher inesquecível do clube. Era mãe de vários filhos e filhas que ali se criaram. Entre os filhos, destacamos o sargento Montauri Camilo, policial militar que marcou época na cidade de Passo Fundo, mais a Cororvita, fundadora da Escola de Samba Quatro de Outubro, que se agregou depois ao Visconde e se transformou na Escola de Samba Visconde do Rio Branco, pelos idos de 1960. Dona Chiquinha foi ainda avó materna do político negro, ex-candidato a vereador, Leônidas Camilo, conhecido como "Diamante Negro", líder do PDT no município e policial militar aposentado.

Dona Chiquinha sempre participou de todas as atividades sociais do Visconde e os filhos junto com ela. Entre eles, podemos listar: o Brasil, o Lar, a Gracely, a Doroty e a mais nova, Laurecy, já falecida.


Desentendimentos


Enquanto os mais novos se divertiam, dançando, os mais velhos discutiam as maneiras de conduzir o clube. Num dado momento se desentenderam. E meu avô materno, Cândido Bernardo da Cruz, conhecido como tio Candinho, em cuja casa foi fundado o Clube Visconde do Rio Branco, não teve dúvidas, levantou-se da mesa dos debates e disse bem alto para todos ouvirem: "Isto aqui é um quilombo e eu vou embora com a minha gente." E chamou os filhos e parentes. Todos juntaram-se a ele, que ainda completou: "Uma boa retirada é uma ação ganha!". Minha mãe contou que saiu a contragosto, pois o baile estava muito bom, mas saiu. Só depois de muito tempo é que voltaram a freqüentar o clube novamente.

Outros fundadores do clube tomaram atitude assim, como a família da Dona Romana. Um dos chefes da família não gostou de uma atitude tomada pelo então presidente, sentiu-se ofendido e retirou todos os "Romanos". Mas eles também, passados alguns meses, foram voltando até a coisa se normalizar.


O Trinta e Três da Pontinha

Trinta e Três da Pontinha Foto: 1930 Desconhecido Arquivo Edy Isaias

Foi o bloco mais famoso do Visconde, levado à rua em 1933, o ano no qual nasceu este que lhes relata. Justamente durante aquele carnaval, entre fantasias, confetes e serpentinas, Edy Isaias foi concebido. Daí o grande bloco Trinta e Três da Pontinha.

Montaram carros alegóricos que, até hoje, nenhuma escola de samba conseguiu superar. Carros com mais de quatro metros de altura, e ... iluminados. As fantasias todas confeccionadas em cetim e lamê importados. Essas fantasias não eram custeadas pelo clube, pelo contrário, cada participante pagava a sua.

A prefeitura (intendência, na época) não ajudava com nada. E o folião ainda pagava uma taxa para participar do bloco. Tudo por amor e dedicação ao clube do coração. À frente do bloco saíam dois destaques, o remelexo, hoje chamado de passista, e a rainha com o estandarte.

O remelexo, naquele tempo, era o Fumaça (um negrão corneteiro do 8° RI). A rainha e porta-estandarte foi a Hironda, de vestido comprido, branco, capa azul, sapatos brancos, muito brilho na roupa, coroa de pérolas e pedrarias na cabeça. Hironda era filha da Dona Neca, irmã da minha avó paterna, a vó Júlia. A tia Neca também foi uma das fundadoras do Visconde.

O Trinta e Três da Pontinha, cantando a marchinha "Na virada, o Trinta e Três encosta o Tigre na Estrada", encantou as ruas de Passo Fundo. O tigre era o símbolo do bloco concorrente.


Amizades e compadrios


Os velhos troncos dos Bianchini não faziam muito afago nos negros, não gostavam mesmo, apesar de morarem no Boqueirão, reduto passo-fundense dos crioulos. Entretanto, havia duas grandes famílias de negros que moravam no outro do da cidade. Eram os "Romanos", na Rua Independência, proximidade do rio Passo Fundo; e os Lima, avós e pais da professora Apelonice, ex-miss Passo Fundo que, por ser negra, não recebeu a coroa na década de setenta. Mas os negros de todos os recantos da cidade se encontravam no Clube Visconde. Encontravam-se, acompadravam-se, os filhos e netos se namoravam e casavam. Foi o caso deste jornalista que casou com uma neta da Dona Romana.

Voltando aos Bianchini que não gostavam de negro, coisa comum entre os descendentes de italianos, um dia, sempre há um dia ... um dos filhos pequenos daquela família estava brincando em frente à bodega de meu avô, ali na Rua Morom. Foi quando apareceu um tropeiro a galope, gritando para que todo mundo saísse da rua, pois havia escapado um boi brabo. Todos correram pra dentro de casa, deixando o garotinho sentado na rua. Meu avô, Bento Isaias, não pensou duas vezes. Saiu correndo em direção ao guri. O pessoal gritou para que não fosse. Mas o meu avô já tinha ido. Deu de mão no guri, quando o touro vinha bufando perto. Correu até um poste duplo e, num pulo subiu nele com a criança, segura. O boi esbarrou no poste, mas não atingiu ninguém. Ambos estavam salvos. E os tropeiros chegaram e laçaram o boi. Quando Seu Bento entregou o menino aos Bianchini, eles o abraçaram chorando e, na mesma hora, convidaram-no para ser padrinho do Gerinho (era esse o apelido do piá). O pai dele era o Seu Joãozinho, mestre sapateiro.

O resultado foi que, daquela data em diante, a família dos gringos passou a adorar e, mais que isso, idolatrar os negros.

Meu avô Bento Isaias, que era pai do meu pai e um dos fundadores do Visconde, sempre foi comerciante, proprietário de uma bodega ali na Morom, onde ele vendia frutas colhidas no próprio quintal. Era do tempo em que se pendurava na porta da venda a laranja mais graúda ou o cacho de uva mais viçoso para chamar a atenção dos passantes. Minha avó Júlia, esposa dele, fazia pastel e saía a vender nas casas de seus clientes. Ela também tinha um costume. Quando as uvas amadureciam, a primeira cesta colhida levava de presente para os presos do presídio municipal. Quando fazia pão, também doava um dos maiores para os prisioneiros. Até o início dos anos quarenta, todo pastel vendido no Visconde era ela quem fazia. Antes de levar para o clube, trazia algum pra mim, de modo que aprendi a gostar de pastel que se tomou uma tradição da família.


Apreço pelos parentes


A vó Júlia morreu como queria, em pleno baile, dentro do Visconde, trabalhando pelo clube. Ainda nova, já casada com meu avô Bento Isaias, foi reconhecida por seu pai, Comélius Denantes, primeiro cirurgião-dentista a chegar a Passo Fundo, vindo da França. Os descendentes conservam uma fotografia dele com toda a família, filhas, filhos, esposa e a vó Júlia. Depois ele foi embora para Curitiba. Minha avó teve vários irmãos e irmãs. Um dos irmãos se chamava Honorato; e as irmãs, Eugênia, Sulica (que era deficiente), Guilhermina, mãe da prima Herondina, cuja filha, a Maria das Neves, casou com um rapaz de Palmeira das Missões, onde a Neves teve filhos e morreu. A Herondina, que viveu a maior parte do tempo em São Paulo, não era gorda, mas robusta, troncuda e muito vaidosa. Ia nos bailes do clube e pintava o rosto com papel de seda cor-de-rosa. Todas as moças da época eram doentiamente ligadas ao Visconde do Rio Branco.

Das primas da vó Júlia, uma tinha o nome de Engrácia. Mas todas tinham ares de chique, usavam "tailleur", chapéu e boá (de pele de raposa) no pescoço, e falavam com sofisticação. Moravam no Boqueirão e gostavam muito do clube. Participavam de todas as festas da sociedade. Tinham também uma propriedade rural. Dizia-se que essas parentes da minha vó eram muito ricas, mas muito miseráveis, só abriam a mão, e um pouquinho, para o clube que sempre teve um poder mágico sobre os seus associados.

As parentes da minha vó Júlia tinham nomes esquisitos, quando não eram chamadas por apelidos - Inharica, Lazinha, Amantina. Dessa são conhecidos os descendentes. O Adão, artífice da prefeitura municipal, a irmã dele, professora aposentada, o sobrinho André é professor nos municípios de Sertão e Pontão. Fez curso de pós-graduação em História, na Universidade de Passo Fundo. Atualmente, reside em Sertão.

Outros parentes, mais especificamente a família da Dona Romana, não residiam no Boqueirão e sim na zona leste de Passo Fundo. Nem ela nem seu esposo, o Seu Pedro Dionísio Navarro, eram naturais daqui. Mas era passo-fundense a totalidade dos filhos. Dos troncos, somente as tias Pidoca e Marica estão vivas. Os netos da tia Pidoca não conseguiram aproveitar tanto o Visconde como os filhos da Hilda (que foi até rainha do Clube) e o Mílton Luiz (que participou da diretoria). Por sua vez, o pai deles, o tio Mílton Montenegro, natural de Júlio de Castilhos, veio trabalhar aqui como pintor, deu a maior força para o progresso da Casa das Tintas e nunca mais voltou para sua terra natal. Foi várias vezes presidente do Visconde.

A tia Marica, esposa do tio Antônio (natural de Alegrete), ferroviário aposentado, operador de locomotiva, trabalhou muito pelo Visconde, sendo um dos pedreiros que ajudou a edificar a atual sede. Os filhos e filhas, netos e netas, sempre participaram ativamente da sociedade.

O único filho homem da Dona Romana e Seu Pedro, o tio Adão, trabalhou muito, mas muito mesmo pelo Visconde. A esposa dele, a Mariazinha, foi uma criatura espetacular, muito humana e humilde. Criaram um filho, o MIlton, apelidado de Careca.

O tio Adão mantinha uma amizade muito grande com meu pai e meus tios. Principalmente com o tio Antenor, com quem participou das diretorias do clube e ajudou a construir a sociedade.

Num baile, um meio amigo do tio Adão e do tio Antenor se desentendeu com eles. Nomeio da discussão, deu um tapa no rosto do tio Antenor, conseguindo escapar do recinto e sumindo por muito tempo. Certo dia, o tio Adão encontrou com ele. Não teve dúvidas, pegou o sujeito pelo pescoço e aplicou-lhe vários socos, avisando: "Isto é pra você aprender a não dar tapa de traição no meu amigo Antenor". E foi contar pro meu tio que já tinha acertado as contas com O tal fulano. O tio Adão era um negrão forte, alto, classificador de madeira do Benincá. Na juventude, foi charqueador, nas charqueadas de São Miguel, de onde contava histórias das boas.


Dirigentes destacados


O primeiro sistema administrativo do Clube Visconde do Rio Branco foi o presidencialismo, e o primeiro presidente, Claro Severo. Houve um revezamento entre eles, os fundadores: o vô Candinho, o tio-avô Titão (tio João Bernardo), o vô Bento Isaias, o Osório Severo, a tia Madalena Gorda, o tio Salomé (funcionário do estado, na antiga Comissão de Terras); o tio Domingos, o tio Eduardo, o Seu Salustiano (compadre dos meus pais e construtor da maioria das casas de alvenaria de Passo Fundo, por isso chamado de mestre-pedreiro ou pedreiro de colher inteira); e o pai aqui deste editor, tenente Eduardo Isaias (do Exército Nacional), que foi por muitos anos presidente da entidade; o tio Augusto Isaias (porteiro dos cinemas Coliseu, Imperial e Real, oficial de torrefador de café, da firma Max Á vila).

Tio Augusto foi o primeiro negro eleito vereador em Passo Fundo, pelo PTB. Como era o primeiro suplente, foi convocado e assumiu uma cadeira na Câmara, embora a fotografia dele não conste na galeria dos vereadores.

Também foram presidentes do clube o Antenor Isaias (primeiro sargento do Exército Nacional, depois escriturário da Viação Férrea do Rio Grande do Sul); o tio Celso Theodoro de Almeida (funcionário do Banco da Província, hoje Meridional, no qual se aposentou); o Altivo (esposo da Margarida, filha do seu Conrado, que era dono daqueles terrenos onde hoje se localiza a 7º DE; metade da quadra era dele, aquilo tudo por ali era propriedade do negro); o seu Valdomiro (ferroviário); o Pinheiro (funcionário da CEEE que, mais tarde, perdeu uma filha no incêndio das Lojas Renner, em Porto Alegre); o Elmo Pereira (bancário do Banco do Comércio); o João Paulo da Silva (sargento da FEB e ferroviário aposentado); o Olinto Lima (ferroviário aposentado, genro do tio Antônio Machado, pai do João Paulo da Silva, e construtor da sede do Visconde); o Eulião Francisco da Silva (o Calião, funcionário da Corsan e músico, pai da primeira negra que se elegeu rainha do Carnaval de Passo Fundo).

Edy Isaias foi eleito por diversas vezes presidente do Clube Visconde, em cuja diretoria permanece, alternando cargos há 47 anos. O dr. Adyl da Cruz também foi presidente, o dr, Rudirnar Machado, a dra. Zilca Machado, o dr. Reinaldo Rodrigues e Rivadávia Marcondes de Oliveira (pai do Meca, contabilista e famoso craque de futebol do Gaúcho).

Foi também o Visconde um dos poucos clubes de Passo Fundo, talvez o primeiro, a optar pela forma representativa de administrar, ou seja, o sistema parlamentarista moderno. Elege um Conselho de Sócios e esse um Conselho Administrativo que, por sua vez, escolhe um Secretário Executivo que indica seus auxiliares para comandar a entidade por três anos. O último Secretário Executivo foi Leonel Custódio. Atualmente, o clube está parado, e o presidente do Conselho, Ismar Machado (militar do Corpo de Bombeiros), junto com os sócios remidos, organizou uma comissão co-gestora da sociedade, a qual está buscando restaurar a sede, semi-destruída.

Toda a comunidade negra de Passo Fundo é co-responsável pela situação do seu velho clube. Pois o que causou seu descalabro foi, exatamente, uma disputa tribal. Um sentimento que veio do continente africano. A luta de reinos querendo se sobrepor aos mais prósperos. Negros que pensavam ter sentimento pelo clube, mas não tinham. Queriam apenas gozar das glórias de uma sociedade organizada.


A realeza de alguns dirigentes


Foi num domingo, quando uma animada matinê movimentava o Visconde. Era pelos anos de 1939. O clube estava cheio de gente, associados e filhos de associados. Nós, crianças, estávamos brincando logo adiante, na casa do compadre Salustiano e da comadre Soca. O presidente era o tio João do Caroço, meu tio-avô. Houve uma desconfiança entre os membros da diretoria, e o tio Eduardo, irmão do tio João, foi até o meio do salão e gritou: "Pára a gaita!" A música parou. Então, lá outro lado, o Miquimba, disfarçando a voz, gritou também: "Segue a gaita!" Os músicos quiseram continuar, mas os velhos fundadores, enfurecidos, não deixaram. Foi a gota dágua. O descontentamento, que fez o tio Eduardo gritar, mudou de rumo. Todos saíram à cata de quem e com que autoridade tinha mandado a música prosseguir, O rolo iniciou no fim da tarde e entrou noite adentro. Meu pai, que estava e oficial-de-dia no 8°, veio acalmar a velha guarda do clube. Com muito custo deixaram a matinê continuar, Os velhos eram assim, permaneciam sempre na diretoria e mandavam mesmo. A diretoria era uma espécie de nobreza, tinha o rei, os condes, os barões e os príncipes, com uma escala de mando, uma hierarquia igual à das congadas. Mesmo sem os fardões das danças, eles exerciam seus papéis fora e dentro do clube.


Festival de arte


Ainda na década de vinte, o Visconde programou um grande festival artístico no cinema Coliseu. Hoje esse tipo de evento é chamado de "show". Como artistas, participavam a Dona Soca, a mãe de Edy Isaias, Dona Jandira Isaias, a tia Madalena Iaias, esposa do tio Augusto (na época moça ainda e muito bonita). Ela era filha do tio  Calixto, proprietário de fazenda em Água Santa e Tapejara, homem respeitado como sendo um dos revolucionários mais temíveis por volta de 1893. Era mulatão forte, de grandes bigodes e melenas fartas, que vinha sempre visitar a tia montado um lindo cavalo baio. Só de olhar pra ele metia medo. Um homem que falava pouco e nunca o vimos dar risada. Outra artista era a tia Tereza, esposa do tio Celso, filho do tio-avô João do Caroço, várias vezes presidente da nossa agremiação. Havia ainda muitas outras senhoras e senhores no palco. A fantasia básica da turma era a roupa de marinheiro. Os negros e negras mais antigos gostavam de vestir-se de marinheiro. Dizem que passaram um dia inteiro carregando coisas pro cinema e, afinal, o espetáculo saiu. Julgo que não foram muito bem, pois nunca mais tentaram realizar outro "show". Mas a sociedade passo-fundense da época se deliciou. Só os negros que não.


Crioulo excêntrico


Nos intervalos dos bailes e matinês, a turma se reunia, ora na casa de um, ora na casa de outro (fazer filó), principalmente à noite, para jogar víspora, um jogo muito interessante que depois foi proibido. As pessoas pegam três cartelas com números que vão de 1 a 90 ou 99. Num saquinho de pano são colocadas as pedras que, na verdade, são taquinhos de madeira enumerados de um lado. O cantador tira as pedras do saco e, em voz alta, diz o número para que todos ouçam. Os jogadores, com grãos de milho ou feijão, vão marcando, nos cartões, as pedras cantadas. Esse jogo era apenas um dos motivos dos encontros sociais da comunidade negra.

Numa noite, na casa de não lembro quem, apareceu um visitante. Homem de gestos refinados, muito bem vestido, inclusive de camisa de colarinho duro. E, num dado momento, as moças, principalmente as moças, olhavam para o colarinho dele e riam. O homem foi ficando incomodado. Negro não fica vermelho, fica cinzento. Num repente, ele puxou de uma adaga que trazia na cinta, assustando todo mundo, arrancou o colarinho bruscamente e, na frente de todos os presentes, fez picadinho daquela peça do seu vestuário chique. Passado o incidente, o jogo continuou calmo como havia começado.


O castelhano açougueiro


Foi na década de trinta que o Dom José chegou a Passo Fundo, indo morar próximo à rua Uruguai. Ele era um caso estranho, porque, embora negro, falava castelhano. Falava só, não, ele era castelhano, mas nunca soubemos se de nacionalidade uruguaia ou argentina. Usava um linguajar todo atrapalhado e tinha uma profissão muito nobre: era açougueiro e dos bons.

Dom José ficou logo conhecido pelo apelido de José Costela. O pessoal ia comprar esse corte do boi e o açougueiro indagava: "Entonces usted vai ajevar una cotiela?" Até ele se chamava pelo apelido. Quando aqui chegou, era solteiro. Provocou alvoroço no meio da moçada casadoura. Também porque se vestia diferente, até para trabalhar no açougue, que ficava ao lado do IE, onde hoje funciona 1ª Delegacia. Seu traje era um culote, botas, camisa xadrez, colete e lenço no pescoço. As botas sempre impecavelmente lustradas. O estrangeiro tornou-se uma figura muito destacada no Visconde. Já era um homem de mais de 30 anos quando aportou por aqui. Dizem que veio para trabalhar uma temporada, mas acabou se casando, constituindo família, teve uma filha e ficou pra sempre. Tempos mais tarde, já nos anos cinqüenta, montou uma bailanta na sua própria casa. Foram bailes famosos, onde a comunidade negra, da então Vila Sapo, festejava todos os sábados e domingos. Moços e moças do Visconde, de vez em quando, também apareciam por lá. Só que, as vezes, armava-se uma pauleira danada e um ou outro negro acabava expulso. Dom José Cotiela acabou morrendo de velho em Passo Fundo.


Músicos famosos


Dois músicos marcaram presença na história do clube. Um deles foi o Barão, fiho da Dona Acíbia, proprietária de uma casa que fornecia comida, pouco adiante do  Visconde. O Barão, como sempre foi conhecido, além de excelente zagueiro do Gaúcho, foi um dos melhores gaiteiros de Passo Fundo. Ele sozinho valia por um time do Gaúcho e sozinho animava os bailes importantes do clube, bastava um baterista acompanhá-lo.

O outro músico foi o maestro Alfredinho. Numa determinada ocasião, o pessoal do Visconde realizou uma promoção para comprar uma gaita nova para o maestro. Ele foi famoso nos programas de auditório da Rádio Passo Fundo, programas Maurício Sirotski, do Lamaison Porto, do Titio Valadares. Mais famosa ainda foi dupla Orlando e Alfredinho que, quando o Lalau Miranda esteve no Rio de Janeiro, comandado pelo jornalista Múcio de Castro, no programa do Renato Murce, eles foram convidados a ficar na Rádio Nacional, mas recusaram. A dupla era boa mesmo. Se fosse nos dias de hoje, estariam à frente de Leandro e Leonardo e outros. Além e cantores e gaiteiros, eram também excelentes compositores.


A primeira miss negra de Passo Fundo

Foi no ano de 1973. O Visconde entrou no concurso "Miss Passo Fundo", para depois concorrer a Miss Rio Grande do Sul, Miss Brasil e Miss Universo A candidata era uma negra muito linda, alta, charmosa, de proporções impecáveis. Seu nome, Maria Ely Xavier, e concorria com mais três candidata brancas.

O coordenador do evento era o jornalista Cezar Romero, representante do Diário de Notícias, órgão dos Diários e Emissoras Associados. Em vários locais da cidade aconteceram coquetéis. O Visconde também organizou o seu, segundo as opiniões, o melhor de todos. E chegou o dia do esperado concurso. Foi no Cine Teatro Pampa. Tudo indicava que o Visconde ganharia a disputa. E ganhou. A sede do clube foi pequena para acomodar o público que pra lá se dirigiu, a fim de festejar a escolha da sua candidata. A Maria Ely fez bonito na passarela. Também desfilou em Caxias, onde foi muito aplaudida.

Foi uma glória para o nosso clube a primeira negra passo-fundense eleger-se Miss da cidade.

Atualmente, a Maria Ely é proprietária de um atelier de alta costura e viaja pelas principais capitais do Brasil.


Carnaval alternado com outros clubes


Era tradição entre o Visconde do Rio Branco e o Clube Comercial alternar as noites de carnaval nos dois locais. Uma noite o pessoal do Comercial ia dançar no Visconde e, na seguinte, era selecionada uma turma do Visconde para dançar uns minutos no Comercial.

Para os negros, a presença dos doutores no seu clube era uma glória. Eles traziam as esposas e os filhos, e ainda faziam mais. Mandavam abrir dois ou três engradados de cerveja para a moçada. No dia seguinte, o comentário corria de boca em boca, alardeando a presença e a companhia dos grã-finos.

Depois o Juvenil começou a fazer o mesmo e também o Caixeiral. Até que aconteceu uma reviravolta social: os negros se associaram nos clubes e CTGs da cidade.

O Visconde sentiu a perda, já que muitos negros passaram a ausentar-se do seu clube. Na atualidade, com as casas noturnas e os bailões, as sociedades tradicionais precisam buscar alternativas, principalmente nas áreas cultural e folclórica, por uma questão de sobrevivência.

Referências

  1. Publicado no livro: A contribuição e a importância das correntes migratórias no desenvolvimento de Passo Fundo, em 1999
  2. Professor e Jornalista
  3. SILVA, Geraldo C, COSTAMILAN Selma. (2001). Passo Fundo Nome Próprio Feminino. Passo Fundo: Tittos Arte Gráfica. 276 páginas. 175 p