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'''Literatura é escrever conforme o Belo'''


'''Jorge Edeth Cafruni(*)'''   
'''Literatura é escrever conforme o Belo'''<ref>Discurso de posse no Grêmio Passofundense de Letras, hoje Academia, no dia 14 de junho de 1957</ref>
 
'''Jorge Edeth Cafruni'''<ref>Jorge Edeth Cafruni foi jornalista, poeta, historiador</ref>  


'''Exmo. Sr. Dr. Celso da Cunha Fiori'''
'''Exmo. Sr. Dr. Celso da Cunha Fiori'''

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Literatura é escrever conforme o Belo

Em 14/06/1957, por Jorge Edeth Cafruni


Literatura é escrever conforme o Belo[1]

Jorge Edeth Cafruni[2]

Exmo. Sr. Dr. Celso da Cunha Fiori

DD. Presidente do Grêmio Passofundense de Letras,

Caros gremistas, Exmos. srs. e exmas. Sras.

É, sem dúvida, grande honra para mim, simples rabiscador de letras, ser cogitado pelo benemérito e ilustre Grêmio de Letras, ser proposto e aceito para integrá-lo, proporcionando-me o ensejo de um convívio estreito, amigo, distinto com elementos exponenciais da cultura passo-fundense.

Quero, inicialmente, agradecer às expressões amigas do vosso orador, notável homem de letras, sr. Arthur Sussenbach, meu dileto companheiro de imprensa e do Instituto Histórico de Passo Fundo, expressões essas que me sensibilizam, distinguem, me elevam, ao mesmo tempo que me acanham, me fazem ensombrecer a mente, me atordoam, porque me lembram que fugaz é toda distinção, todo desvanecimento, todo título de fachada, diante do sublime desconhecido, imperante além-túmulo; diante do mistério imenso e majestoso, que faz os pequenos grandes e os grandes pequenos e perante o qual se abatem e se esboroam as vaidades e as grandezas humanas.

Estou ingressando num grêmio de letras, conduzido pelo Dr. Fiori, templo em que se cultura a arte da palavra, mãe de todas as artes, porque é o veículo do pensamento imaginoso e abstrato, enquanto todas as demais apenas nos falam à imaginação.

E por ser a literatura esse refinamento da arte, na multiplicidade dos seus aspectos, é que foi colocada na cúpula de todas, tendo como expressão máxima a poesia, que vibra, como a lira, numa ode de Píndaro ou de Anacreonte; que enlanguesce a alma, nas nênias e epicédios de Propércio; que enternece e exalta, num madrigal renascentista; ou que arrebata, até a exaltação clangorosa, numa epopéia de Homero; ou que, ainda, finalmente, nos transporta ao sublime da Verdade, do Bem e da Justiça, através dos vôos filosóficos e líricos de Platão.

Eis, pois, o que se cultua neste recinto augusto.

A literatura tem por objeto o homem e a natureza, como as demais artes e a própria ciência.

E, como a arte em geral, é ela a expressão ideal do sentimento. A melhor literatura possui forte conteúdo emotivo. Só podemos dizer que uma obra literária é boa, quando ela nos prende e arrebata, quando nos faz palpitar de interesse, quando nos faz vibrar de emoção.

Daí ser ela profundamente humana.

A literatura, aliás, é a mais humana de todas as artes. Joga com a palavra, em peregrinas combinações, falando-nos à alma, e sabemos todos que a palavra é genuinamente do homem.

A música pode interessar, igualmente, aos animais; as experiências e insignes psicólogos, como Pavlov, descobriram que os sons melodiosos não são indiferentes aos irracionais.

As letras são do homem para o homem.

Aqui, neste Grêmio de Letras, não cultivaremos outra coisa. Seremos todos dedicados à arte literária. E jamais esqueceremos que a boa norma do escrever bem é dar vida àquilo que se escreve.

A palavra é algo animado e vibrátil.

Quem escreve dá alguma coisa de si mesmo, razão por que se diz com muita propriedade, com Buffon, que o estilo é o homem. Somos denunciados, em nosso íntimo, por aquilo que escrevemos e que dizemos.

Mas nem sempre aquele que escreve bem é um “bom homem”. Infelizmente, a regra da moral não pode ser aplicada à literatura, como norma do escrever excelentemente.

É que literatura não é escrever conforme o Bem, mas conforme o Belo, e o Belo pode ser também terrífico e apavorante, como as produções de Edgar Poe, de Hoffmann ou mesmo do divino Dante.

Mas, somos daqueles que recomendam a conformidade do Belo com o Bem, porque a literatura, meio ideal de comunicação entre os homens, deve estar a serviço da civilização e da felicidade humana.

O escritor não pode argüir consoante aquele personagem de Walter Scott, em “Rob Roy”, que afirmou: - “Feliz aquele, cujas boas intenções deram frutos e cujos maus pensamentos morreram em flor”.

Não, um escritor não pode valer-se de um tal subterfúgio, porquanto suas palavras perduram, gravadas indelevelmente no papel, e se tais palavras são más, ficam para sempre, espalhando seu fel, contaminando os corações e pervertendo as consciências.

Em literatura, como em tudo o mais, cada um dá o que tem.

Eça de Queiroz e Augusto dos Anjos são dois valores incontestes das letras luso-brasileiras.

O primeiro encanta pelo estilo e o segundo pelo sabor selvagem de suas invectivas. Ambos, porém, pessimista e apresentando a vida por um prisma postiço e deformado, intentam impingir seus escritos como verdades inconcussas, e tivemos uma visão desalentadora e, por vezes, repelente do homem e da sociedade.

Não são verdadeiros senão pela metade, pois que desconhecem a linguagem da afeição verdadeira ed pura, os lances de abnegação e heroísmo, os assomos da coragem e da virtude, fatos que, pelo seu número incontável, enriquecem e glorificam páginas imortais da história da humanidade.

Platão, Milton, Camões, Shakespeare, Olavo Bilac, Euclides da Cunha tiveram visões bem mais grandiosas e verdadeiras.

Souberam compreender o Homem em sua integridade, com seus defeitos e seus méritos. Fizeram mais: aferiram os valores humanos, exaltando a virtude e condenando o vício e o crime.

Bocage e Gregório de Matos, com toda a sua veia satírica, estiveram a serviço do bem e da virtude.

Suas verrinas, sem dúvida, não vergastavam senão aos maus, aos egoístas, aos avarentos, aos viciosos e aos prepotentes.

Não menosprezaram o Bem, visto que jamais esqueceram de o encarecer e lisonjear.

Gregório de Matos, satirizando sua época, a sociedade balofa, convencional e estreita, assim diz em magníficos versos:

             “Dei por besta em mais valer,

             Um me serve, outro me presta;

             Não sou eu de todo besta,

             Pois tratei de o parecer:

             Assim, vim a merecer

             Favores e aplausos tantos

             Pelos meus néscios encantos

             Que enfim e por derradeiro

             Fui galo do seu poleiro

             E lhes dava os dias santos.”

Esse linguajar solto, despegado e mordaz atingia bem ao alvo, maldizendo a fatuidade e o falso colorido de uma sociedade viciosa. E, na verdade, não há por que sejamos condescendentes com os erros e prejuízos de nossa época, pois que, zurzindo e condenando com veemência, é, muitas vezes o meio único de atingirmos o império do equilíbrio, da tolerância e da equanimidade.

E tanto não foi de maldade a literatura daquele notável poeta baiano, que nos legou este final de soneto inspirado, transbordante de fé e de espiritualidade:

            “Se uma ovelha perdida, já cobrada,

           Glória tal, e prazer tão repentino

           Vos deu, como afirmais, na sacra história,

           Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada,

           Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,

           Perder na vossa ovelha a vossa glória!”

Eis um poeta que deu o que tinha, como, aliás, todo verdadeiro poeta.

E a arte literária nada mais é do que escrevermos intelegivelmente, com clareza, precisão, simplicidade e sinceridade.

Devemos escrever com a consciência a iluminar cada palavra, cada sentença, cada período. A literatura insincera não convence e torna árido e tedioso o estilo.

Divagando pelas letras estrangeiras, encontramos exemplos interessantes, como estas quadrinhas japonesas, traduzidas por Wenceslau de Morais, escritor português, em que a malícia não chega a ferir, tão leve, espontânea e simples nos chegam;

            “Batendo co’as mãos na esteira,

            Diz ela ao bom do marido:

            - Eu cá não sou ciumenta,

            Mas não hei compreendido

            Como, abrindo o guarda-chuva,

            Quando a chuva em força vinha,

            Encharcaste uma das mangas,

            Ficando a outra enxutinha!...”

Tirai a simplicidade a estes versos, e nada vos restará.

A literatura não impressiona tanto pelo estilo rebuscado e cheio de ouropéis, quanto pela singeleza e amenidades. Mas eis o paradoxo da literatura: a maior dificuldade está não em escrevermos pomposamente, mas no fazê-lo de modo simples e natural.

É bom que se diga, neste passo, que a simplicidade do escrever depende, muitas vezes, de árduo trabalho.

Só depois de muito cortar e emendar é que um escritor atinge a naturalidade de expressão.

Depois, com o tempo e tirocínio, consegue o beletrista a simplicidade espontânea, como, por exemplo, a de um René Chateaubriand, de um Camilo Castelo Branco ou de um Eduardo Prado.

O escritor, sobretudo, deve possuir, sem dúvida, certa cultura.

Não deve desconhecer a psicologia e a sociologia.

Ter uma visão geral e firme da História, da Filosofia e de várias ciências, aquelas que mais interessam às relações humanas.

Não se exige do escritor profundidade em todas as coisas.

O que se deve reclamar dele é a solidez do seu edifício cultural, base de seus conhecimentos e de suas convicções, e, o que é mais importante, substância de suas produções literárias.

Observando-se as sociedades primitivas, verificamos que as possibilidades de sua sobrevivência dependiam, sobretudo, de um progressivo conhecimento da natureza e da utilização das matérias-primas por ela fornecida.

Dessa forma, conseguiram proteger-se contra acidentes e catástrofes.

Depois, com a segurança alcançada, chegou também a possibilidade da expressão, através do canto e da dança, do desenho e da forma; os primeiros vinculados aos ritos religiosos e os segundo relacionados com os ídolos e utilidades domésticas.

Quando as comunidades cresceram em número e complexidade, a linguagem também se ampliou, como conseqüência de um esforço para expressar a experiência recolhida.

Novas exigências práticas, novos conhecimentos e novas teorias implicavam um aumento e um uso mais especializado dos vocábulos.

Com a invenção da escrita, a sociedade deu um novo salto, iniciado com símbolos e sinais, em pedras, na argila, no pergaminho e no papel, manifestando o nascimento do simbolismo na expressão da idéia, pensamento, sentimento, fato ou notícia.

A escrita permite a possibilidade de fixar a idéia ou as idéias, num momento dado e volvermos a examiná-las mais tarde, quando nos aprouver.

Eis chegado o tempo, em que o h0mem pode, desde antes, estudar os seus próprios pensamentos, como o faria com qualquer outro objeto natural.

A linguagem, todavia, teve suas raízes na necessidade que os homens tiveram de comunicar, entre si, idéias e notícias, por maneiras e modos distintos aos da palavra falada, e é nesta necessidade social que se radica a origem do dilatado campo da expressão, dominando a literatura e a arte.

A cultura adquire-se pela troca de idéias, através da palavra falada ou escrita, isso quando nos atemos ao domínio literário.

E a cultura compreende domínios vastos, incluindo, naturalmente, a literatura.

Daí a necessidade de o escritor ser versado nos vários conhecimentos, para escrever e comunicar algo aos seus semelhantes.

Uma produção literária não deve jamais ser vazia ou deletéria.

Falamos, aqui, sob o prisma psicológico, pois que o homem, como queria Bérgson, é um crescimento no tempo.

O nosso “eu” cresce, prolonga-se com a passagem dos momentos, e esses momentos são apenas perceptíveis através de marcos e sinalizações, em sua trajetória, marcos e sinalizações que são, em substância, a apreensão de novos conhecimentos.

Uma leitura é vazia quando enfada. Quando não informa. Quando nos dá uma sensação de vácuo. Quando não estimula a sensibilidade e o intelecto.

Por exemplo: quem poderá dizer que não há riqueza de informações nesta passagem do genial Castro Alves:

             “Dilacerado, o rio, espadanando,

             Chama as águas da extrema do deserto...

             Atropela-se, empina, espuma o bando...

             E em massa rui no precipício aberto...

             Das grutas, nas cavernas, estourando,

             O coro dos trovões travam concerto...

             E ao vê-lo as águias, tontas, eriçadas,

             Caem de horror no abismo, estateladas..“

É como um correr atropelado de imagens, soberbas, grandiosas, que se estereotipam em nossa retina.

É uma leitura que empolga, que acrescenta algo em nós mesmos, influindo, sobremodo, em nossa evolução na vida, dando-nos uma visão diferente de beleza, possibilitando um aumento de nós mesmos.

Esse estado de alma é melhor interpretado nestes lindos versos de Gonçalves Dias, o infortunado poeta maranhense:

             “Revela tanto amor, tão branda soa

             A tua doce voz, canora e pura,

             Que o homem de a escutar sente no peito

             Infiltrar-se-lhe um raio de ventura”.

E a sensação que nos deve dar as letras é justamente esta: a de grandeza, de ventura, de satisfação e de plenitude.

Eis a verdadeira literatura, aquela que não deprime, que não descoroçoa, que não amesquinha o sentido e o destino da vida humana. Literatura que enriquece nossa alma, que acrescenta algo em nós mesmo, que nos informa e nos engrandece.

Mas, a divagação já vai longe.

Tenho fé no destino das letras, notadamente em Passo Fundo, cidade quase universitária, e que congrega elementos de escol, como estas figuras brilhantes que integram este sodalício e outras muitas, dispersas nos mais variados ramos da atividade e que não participam da felicidade deste convívio.

E tenho fé nas letras passo-fundenses por ver o espírito de solidariedade que anima os nossos letrados, os nossos homens de pensamento, que fazem de sua fraqueza força, de sua magreza monetária a pedra de toque de sua união e de sua riqueza, devendo, em breve, espalharem, triunfantes, suas produções literárias, com o sinal editorial de Passo Fundo.

Ao Grêmio Passo-fundense de Letras, ao seu emérito Presidente Dr. Celso da Cunha Fiori, e, particularmente, a cada um dos membros deste sodalício, quero expressar o meu profundo agradecimento, por me acolherem e chamarem a este convívio.

Espero não desmerecer o brilho da entidade, pois que, apesar dos meus parcos préstimos, tudo farei para não desmerecê-lo.

E concluo, com estes versos estimulantes de Castro Alves:

“Filhos de século das luzes!

Filhos da grande nação!

Quando ante Deus vos mostrardes,

Tereis um livro na mão:

O livro – esse audaz guerreiro,

Que conquista o mundo inteiro

Sem nunca ter Waterloo;

Eólo de pensamentos,

Que abriga gruta dos ventos,

Referências

  1. Discurso de posse no Grêmio Passofundense de Letras, hoje Academia, no dia 14 de junho de 1957
  2. Jorge Edeth Cafruni foi jornalista, poeta, historiador