Difference between revisions of "A solidão e o santo"

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'''A solidão e o santo''' - Isabel sabia que a espera era longa demais para a fragilidade de Artêmio. Deixou   de lado qualquer   outra   preocupação,   buscando ser a melhor cuidadora. Bernadete veio visitar o pai, que estava debilitado, queixando-se de falta de ar. Coragem eu tenho, brincava, a exemplo de Bento Gonçalves, o que me falta é ar, filha. O geriatra, humano e estudioso, avaliou o silêncio artêmico como desligamento voluntário. Os exames de sangue indicavam um declínio galopante da saúde. A serenidade quase alegre do doente mostrava o conhecimento do que lhe acontecia. Hora dessas falou: a viagem chega ao fim. Nada de novo em desembarcar... afinal, outros passageiros podem começar seu caminho. Veio o senhor bispo, que ficou por diversas horas de mãos dadas com o frustrado amigo. Apertando a mão de Artêmio, revelou seu encanto pela vida do amigo. Brincou soprando ao ouvido do santo: acho que a santa madre Igreja anda meio devagar. E surda, retrucou Artêmio, num sopro. Um sorriso maroto foi um bom sinal de vida. De tudo o que mais consolava era quando Isabel se reclinava sobre ele, aproximando a cabeça velha em seu peito e as mãos nas mãos um do outro.
'''A solidão e o santo''' - Isabel sabia que a espera era longa demais para a fragilidade de Artêmio. Deixou de lado qualquer outra preocupação, buscando ser a melhor cuidadora. Bernadete veio visitar o pai, que estava debilitado, queixando-se de falta de ar. Coragem eu tenho, brincava, a exemplo de Bento Gonçalves, o que me falta é ar, filha. O geriatra, humano e estudioso, avaliou o silêncio artêmico como desligamento voluntário. Os exames de sangue indicavam um declínio galopante da saúde. A serenidade quase alegre do doente mostrava o conhecimento do que lhe acontecia. Hora dessas falou: a viagem chega ao fim. Nada de novo em desembarcar... afinal, outros passageiros podem começar seu caminho. Veio o senhor bispo, que ficou por diversas horas de mãos dadas com o frustrado amigo. Apertando a mão de Artêmio, revelou seu encanto pela vida do amigo. Brincou soprando ao ouvido do santo: acho que a santa madre Igreja anda meio devagar. E surda, retrucou Artêmio, num sopro. Um sorriso maroto foi um bom sinal de vida. De tudo o que mais consolava era quando Isabel se reclinava sobre ele, aproximando a cabeça velha em seu peito e as mãos nas mãos um do outro.


Livro escrito por Agostinho Both, publicado em 2012
Livro escrito por Agostinho Both, publicado em 2012
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Transtornos do Padre Artêmio
Transtornos do Padre Artêmio


Pode  haver  quem  pense:  os  santos  devem  ficar  quietos  como  melões. Repletos da graça de Deus, podem estremecer de alegria por todo sempre.  Fogem  dos  ruídos,  tendo  o  silêncio  em  grande  consideração.  Perguntados  se  o  silêncio  é  confortante,  dizem  que  é  uma  graça  e  se,  ainda   no   silêncio,   puderem   ouvir   a   Deus,   ele   se   torna   divino.   A   contemplação silenciosa pode fazer o tempo ir e vir. Nela todas as coisas visíveis  e  invisíveis,  reais  ou  imaginadas  têm  seu  esplendor  e  profusão,  revelando-se  a  essência  sem  as  destoantes  palavras.  Se  a  velocidade  do  corpo  perde  a  mobilidade,  pode  a  mente  ser  rápida  como  um  beija-flor. Tem  a  oportunidade  de  recolher  os  significados  revelados  e  os  não  revelados. Padre Artêmio, ao contrário, está perdendo a graça do silêncio e  corre  angustiado  para  a  casa  paroquial,  tendo  a  sensação  de  estar  sendo  devorado.  O  sistema  nervoso  está prestes  a  entrar  em  colapso.  Nada  melhor  que  sair  do  desamparo  das  inúmeras  e  ruidosas  palavras  e  se atirar para dentro de uma toca ou nas mãos grandes de Deus. Poderá se confortar para muito além das nuvens e para muito além das pessoas. Todas   as   coisas   animadas   e   inanimadas   não   mais   se   apresentam   humildes  à  sua  atenção.      Nada  mais  é  suficiente  porque  nem  mesmo  no  silêncio  consegue  retirar  mais  um  sentido  em  tudo  que  faz.  Quis,  então,  saber quais motivações poderiam impulsioná-lo para além. Deus surgiu-lhe como solução, mas a salvação que tanto pedira andava minguada e a paz se  dissolvia  como  pó.  A  comunhão  solene  com  Deus  estava  de  poucos  liames,  porquanto  a  boca  estava  azeda  e  morria  o  seu  ânimo,  como  um  peixe se debatendo na grama. O vigário comia o pão que o diabo amassou e agora os ruídos aumentavam em torno de si. O inferno constituía-se até de  seus  melhores  fiéis,  tão  mal  andava  o  santo  homem.  Privara-se  de  todas   as   carícias   e   Nossa   Senhora   sabia   de   quantas   promessas   compunham-se as horas para que se preservasse a pureza do corpo e da alma.  Aí,  puro  como  um  São  Luiz.  Na  verdade,  o  cansaço  deixara-o  sem  as  antigas  vontades  de  salvar,  de  consolar  os  velhos,  as  viúvas  e  os  jovens. O seu silêncio, por mais profundo e divino que fosse, compunha-se de solidão. Padre  Artêmio  sabia  da  angústia  com  que  a  vida  se  traduz.  Sobrevinha-lhe    um    estado    que    se    caracterizava    como    perigo,    desconhecendo   o   motivo   e   a   origem.   Percebia-se   submergido   e   transtornado,  preso  a  um  lado  que  não  esperava.  Tinha  tudo  em  Deus  e,  agora,  como  uma  nave  à  deriva.  Habitara  com  as  estrelas,  sentindo,  por  vezes,  um  sopro  de  Deus.  Disso  poderia  até  jurar.  Não  contava,  então,  com  o  sistemático  deserto.  Perdera  a  bússola,  quando  antes  sabia  de  todas  as  direções  a  serem  tomadas.  As  decisões  aristotélicas  tidas  como  inspiração   do   divino   faziam   sucesso   e   muito   bem.   Tinha   certezas   absolutas:  uma  lógica  que  ia  do  primeiro  motor  de  tudo  até  a  suavidade  sobre o bem a ser feito. Congratulava-se com sua mãe por saber que ela ouvia  fartos  elogios  a  seu  respeito. 
Pode haver quem pense: os santos devem ficar quietos como melões. Repletos da graça de Deus, podem estremecer de alegria por todo o sempre. Fogem dos ruídos, tendo o silêncio em grande consideração. Perguntados se o silêncio é confortante, dizem que é uma graça e se, ainda no silêncio, puderem ouvir a Deus, ele se torna divino. A contemplação silenciosa pode fazer o tempo ir e vir. Nela todas as coisas visíveis e invisíveis, reais ou imaginadas têm seu esplendor e profusão, revelando-se a essência sem as destoantes palavras. Se a velocidade do corpo perde a mobilidade, pode a mente ser rápida como um beija-flor. Tem a oportunidade de recolher os significados revelados e os não revelados. Padre Artêmio, ao contrário, está perdendo a graça do silêncio e corre angustiado para a casa paroquial, tendo a sensação de estar sendo devorado. O sistema nervoso está prestes a entrar em colapso. Nada melhor que sair do desamparo das inúmeras e ruidosas palavras e se atirar para dentro de uma toca ou nas mãos grandes de Deus. Poderá se confortar para muito além das nuvens e para muito além das pessoas. Todas as coisas animadas e inanimadas não mais se apresentam humildes à sua atenção. Nada mais é suficiente porque nem mesmo no silêncio consegue retirar mais um sentido em tudo que faz. Quis, então, saber quais motivações poderiam impulsioná-lo para além. Deus surgiu-lhe como solução, mas a salvação que tanto pedira andava minguada e a paz se dissolvia como pó. A comunhão solene com Deus estava de poucos liames, porquanto a boca estava azeda e morria o seu ânimo, como um peixe se debatendo na grama. O vigário comia o pão que o diabo amassou e agora os ruídos aumentavam em torno de si. O inferno constituía-se até de seus melhores fiéis, tão mal andava o santo homem. Privara-se de todas as carícias e Nossa Senhora sabia de quantas promessas compunham-se as horas para que se preservasse a pureza do corpo e da alma. Aí, puro como um São Luiz. Na verdade, o cansaço deixara-o sem as antigas vontades de salvar, de consolar os velhos, as viúvas e os jovens. O seu silêncio, por mais profundo e divino que fosse, compunha-se de solidão. Padre Artêmio sabia da angústia com que a vida se traduz. Sobrevinha-lhe um estado que se caracterizava como perigo, desconhecendo o motivo e a origem. Percebia-se submergido e transtornado, preso a um lado que não esperava. Tinha tudo em Deus e, agora, como uma nave à deriva. Habitara com as estrelas, sentindo, por vezes, um sopro de Deus. Disso poderia até jurar. Não contava, então, com o sistemático deserto. Perdera a bússola, quando antes sabia de todas as direções a serem tomadas. As decisões aristotélicas tidas como inspiração do divino faziam sucesso e muito bem. Tinha certezas absolutas: uma lógica que ia do primeiro motor de tudo até a suavidade sobre o bem a ser feito. Congratulava-se com sua mãe por saber que ela ouvia fartos elogios a seu respeito. 


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Revision as of 23:00, 26 August 2021

Capa: Silvana Oliveira
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File:A solidão e o santoEbk.pdf
Autor Agostinho Both
Título A solidão e o santo
Assunto Romance
Formato E-book (formato PDF)
Editora Projeto Passo Fundo
Data da publicação 2012
Número de páginas 94
ISBN 978-85-64997-71-4

A solidão e o santo - Isabel sabia que a espera era longa demais para a fragilidade de Artêmio. Deixou de lado qualquer outra preocupação, buscando ser a melhor cuidadora. Bernadete veio visitar o pai, que estava debilitado, queixando-se de falta de ar. Coragem eu tenho, brincava, a exemplo de Bento Gonçalves, o que me falta é ar, filha. O geriatra, humano e estudioso, avaliou o silêncio artêmico como desligamento voluntário. Os exames de sangue indicavam um declínio galopante da saúde. A serenidade quase alegre do doente mostrava o conhecimento do que lhe acontecia. Hora dessas falou: a viagem chega ao fim. Nada de novo em desembarcar... afinal, outros passageiros podem começar seu caminho. Veio o senhor bispo, que ficou por diversas horas de mãos dadas com o frustrado amigo. Apertando a mão de Artêmio, revelou seu encanto pela vida do amigo. Brincou soprando ao ouvido do santo: acho que a santa madre Igreja anda meio devagar. E surda, retrucou Artêmio, num sopro. Um sorriso maroto foi um bom sinal de vida. De tudo o que mais consolava era quando Isabel se reclinava sobre ele, aproximando a cabeça velha em seu peito e as mãos nas mãos um do outro.

Livro escrito por Agostinho Both, publicado em 2012

Apresentação

do Primeiro Capítulo, pelo Autor

Transtornos do Padre Artêmio

Pode haver quem pense: os santos devem ficar quietos como melões. Repletos da graça de Deus, podem estremecer de alegria por todo o sempre. Fogem dos ruídos, tendo o silêncio em grande consideração. Perguntados se o silêncio é confortante, dizem que é uma graça e se, ainda no silêncio, puderem ouvir a Deus, ele se torna divino. A contemplação silenciosa pode fazer o tempo ir e vir. Nela todas as coisas visíveis e invisíveis, reais ou imaginadas têm seu esplendor e profusão, revelando-se a essência sem as destoantes palavras. Se a velocidade do corpo perde a mobilidade, pode a mente ser rápida como um beija-flor. Tem a oportunidade de recolher os significados revelados e os não revelados. Padre Artêmio, ao contrário, está perdendo a graça do silêncio e corre angustiado para a casa paroquial, tendo a sensação de estar sendo devorado. O sistema nervoso está prestes a entrar em colapso. Nada melhor que sair do desamparo das inúmeras e ruidosas palavras e se atirar para dentro de uma toca ou nas mãos grandes de Deus. Poderá se confortar para muito além das nuvens e para muito além das pessoas. Todas as coisas animadas e inanimadas não mais se apresentam humildes à sua atenção. Nada mais é suficiente porque nem mesmo no silêncio consegue retirar mais um sentido em tudo que faz. Quis, então, saber quais motivações poderiam impulsioná-lo para além. Deus surgiu-lhe como solução, mas a salvação que tanto pedira andava minguada e a paz se dissolvia como pó. A comunhão solene com Deus estava de poucos liames, porquanto a boca estava azeda e morria o seu ânimo, como um peixe se debatendo na grama. O vigário comia o pão que o diabo amassou e agora os ruídos aumentavam em torno de si. O inferno constituía-se até de seus melhores fiéis, tão mal andava o santo homem. Privara-se de todas as carícias e Nossa Senhora sabia de quantas promessas compunham-se as horas para que se preservasse a pureza do corpo e da alma. Aí, puro como um São Luiz. Na verdade, o cansaço deixara-o sem as antigas vontades de salvar, de consolar os velhos, as viúvas e os jovens. O seu silêncio, por mais profundo e divino que fosse, compunha-se de solidão. Padre Artêmio sabia da angústia com que a vida se traduz. Sobrevinha-lhe um estado que se caracterizava como perigo, desconhecendo o motivo e a origem. Percebia-se submergido e transtornado, preso a um lado que não esperava. Tinha tudo em Deus e, agora, como uma nave à deriva. Habitara com as estrelas, sentindo, por vezes, um sopro de Deus. Disso poderia até jurar. Não contava, então, com o sistemático deserto. Perdera a bússola, quando antes sabia de todas as direções a serem tomadas. As decisões aristotélicas tidas como inspiração do divino faziam sucesso e muito bem. Tinha certezas absolutas: uma lógica que ia do primeiro motor de tudo até a suavidade sobre o bem a ser feito. Congratulava-se com sua mãe por saber que ela ouvia fartos elogios a seu respeito. 

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