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Gizele Zanotto[1]
 
Gizele Zanotto<ref>Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Coordenadora do ''Núcleo de Estudos de Memória e Cultura'' (NEMEC/PPGH) e do ''Grupo de Trabalho de História das Religiões e Religiosidades - Rio Grande do Sul'' (GTHRR/RS). Email: gizele@upf.br</ref>
 





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AS DUAS MORTES DE MARIA PEQUENA

Em 30/08/2014, por Gizele Zanotto


Gizele Zanotto[1]


“É mais digno e mais nobre homenagear a memória dos mortos do que bajular os vivos...”

Gomercindo dos Reis


A rica e complexa história de Passo Fundo não deixa de surpreender, em especial no que concerne às crenças políticas, sociais e religiosas de sua população étnica e culturalmente plural. Após avaliar algumas das manifestações religiosas citadinas – especialmente as Romarias de Nossa Senhora Aparecida e São Miguel, bem como o culto à Maria Elizabeth[2] -, nos deparamos com memórias acerca da dita “primeira santa popular de Passo Fundo”, cognominada Maria Pequena. Os relatos sobre o “martírio” de Maria Meireles Trindade instigam a várias reflexões. Neste artigo, pretendemos tecer algumas deles de modo inicial, pois ainda há muito o que pesquisar e muito o que aprender sobre a “santa popular” que teve sua devoção findada, sua história silenciada por decisões políticas em nada destituídas de sentido(s).


Maria Meireles Trindade em contexto

Em fins do século XIX a vida cotidiana na cidade de Passo Fundo foi agitada em função das polarizações políticas que abrangiam o estado do Rio Grande do Sul. Com uma história marcada pelas dicotomias entre líderes locais, novamente vemos uma situação análoga desenvolver-se pouco após a instauração da República no país. Foram consideráveis seus reflexos no estado extremo-sulino e, especificamente, entre a população passofundense do que virá a ser denominada Revolução Federalista.

Com a conformação de forças conflitivas entre os denominados maragatos (federalistas, gasparistas) e pica-paus (republicanos, castilhistas) o cenário local foi mobilizado pelas forças defensoras do modelo federalista de maior autonomia ao estado, preconizado pelo Partido Federalista (PF) liderado por Gaspar da Silveira Martins, e a proposta republicana defendida pelos membros do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), conduzido por Júlio Prates de Castilhos, então Presidente do Estado e idealizador da Constituição Estadual de 1891. Pouco depois Castilhos fora deposto e uma série de líderes passou a comandar o estado, num período designado “governicho”, dada a efemeridade de cada um dos substitutos do líder do PRR. Em 1893 as tensões precipitaram em conflitos armados que se prolongaram até 1895 e que se estenderam a Santa Catarina, ao Paraná e até ao Uruguai[3].

Passo Fundo foi o cenário de vários enfrentamentos da Revolução Federalista e, para além dos conflitos cruentos, a população viveu momentos de tensão, medo e mesmo de fuga ante a repercussão da disputa política e bélica que se estabelecera. Entre as batalhas de relevo que assolaram a região Monteiro elenca os combates do Boqueirão, do arroio Teixeira, do Passo da Cruz, do Umbu, dos Valinhos, dos Três Passos, do Pulador[4], e mais uma série de “combates menores ou menos conhecidos” (MONTEIRO, 2006). No entremeio dessas peleias tivemos eventos significativos que mobilizaram a população. Entre eles está o assassinato de Maria Meireles Trindade, a Maria Pequena.

Segundo os registros, Maria Meireles era filha da caingangue Marcelina Coema – “uma formosa bugrinha das selvas de Nonoai” (REIS, O Nacional, 01 de junho de 1955, p. 02) - e de Nicanor Trindade, portanto, sua ascendência seria etnicamente dupla, algo comum à época, mas também pejorativamente considerado pelas teorias raciais vigentes e aceitas por grande parte das elites sociopolítica e econômica. Maria Meireles teria se casado com o Tenente Marciano Angelino, defensor do legalismo/republicanismo/castilhismo, que atuou no conflito contra os federalistas, ao lado do seu filho. O casal vivia em Passo Fundo, na região da atual Vila Carmem (Figura 1).

Figura 1- Mapa de Passo Fundo - destaque para a Vila Carmem

Fonte: Google Maps


Segundo registros de Gomercindo dos Reis (1898-1965), que nos anos 1950 coletou informações e entrevistas visando produzir a obra A tragédia da Cruzinha acerca de Marcelina Coema e de Maria Pequena – nunca publicada na íntegra –, para além de seu assassinato, outros dados apresentados nos são relevantes para a compreensão da rápida e eficaz fama de “santa” que a mesma recebeu após o falecimento. Em artigo publicado no jornal O Nacional Reis nos informa que Maria Trindade tinha fama de “vidente”. Nesse sentido, sua constituição como pessoa singular, uma mediadora dotada também de dons premonitórios, lhe consagravam perante a comunidade local e mesmo regional. Segundo Reis, “Maria Pequena, que falava com Nossa Senhora, era vidente antes de morrer. Consultada por comandantes de corpos em 1893, ela previu a derrota das forças legalistas nos combates de Valinhos e Três Passos” (REIS, O Nacional, 01 de junho de 1955, p. 02).

Tais informações nos levam a considerar que ainda em vida Maria Trindade destacava-se como figura portadora de expressivo poder simbólico e respeito. Afora sua vinculação marital com um tenente, observar que a mesma teria feito consultas a comandantes de corpos indica um trânsito e um respaldo ante personalidades da época, mesmo sendo uma mestiça – “bugra, índia, pobre” (GUGGIANA, 2012). Considerando esta situação como derivativa de um dom extracotidiano, conforme definido por Weber, podemos observar que a “vidente” só o era assim considerada porque pessoas viam e/ou atribuíam-lhe tal faculdade, tal carisma, tido como “uma qualidade pessoal considerada extracotidiana (...) e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como ‘líder’” (WEBER, 2000, p.158/159).

Nesse sentido, o encontro trágico de Maria Meireles com soldados federalistas ocorrido em 28 de novembro de 1894 ampliaria ainda mais a reverência já existente acerca de seus dons. As crônicas relatam que, em fins de novembro um “piquete maragato” fora em busca do tenente republicano Marciano Angelino, esposo de Maria, bem como de seu filho, também soldado. Inicialmente a busca teria se dado na residência de Marciano Angelino e Maria Trindade. Não encontrando ninguém, os maragatos teriam sido informados (por quem???) de que a esposa estaria na região do Arroio Raquel (Figura 2), onde fora lavar roupas.


Figura 2- Mapa Atual de Passo Fundo – Vila Carmem e Arroio Raquel

Fonte: Bing – Maps by Nokia


Chegando ao local, os maragatos teriam inquirido Maria Trindade sobre o paradeiro de seu marido e filho. A memória desses fatos foi narrada por Reis e replicada por outros autores, poetas e outros artistas. Ney D´Avila detalha que “No dia 28 de novembro de 1894 Maria Meireles Trindade encontrava-se lavando roupas no Arroio Raquel, nos arredores da então cidade de Passo Fundo. Um piquete federalista que andava a procura do esposo dela encontrou-a ali e interpelou-a. Maria Pequena negou-se a informar o lugar onde homiziara-se o marido, o qual estava acompanhado por um filho adolescente. Diante da negativa foi degolada. Um típico ato de vingança, certamente motivado por algum “acerto de contas” com o procurado” (D´AVILA, 2014).

Violências a mulheres e crianças – tidos como inocentes - durante os conflitos do século XIX no Rio Grande do Sul não eram raridade. O próprio Paulo Monteiro, em obra sobre essa questão, salienta estupros e assassinatos ocorridos no contexto da Federalista em Passo Fundo (MONTEIRO, 2010, p. 81). Nesse sentido, a procura e pressão sobre Maria Trindade se coadunam com um contexto geral de brutalidade, desmandos, agressões, perseguição, vingança, coação e assassinatos que permeavam as relações sociais tanto em momentos de paz quanto, ou ainda mais, em tempos de conflito. Todavia, ao tratar-se de Maria Meireles Trindade, os fatos teriam sido ainda mais agravados pela sua “heroica” recusa em colaborar com o “inimigo”. Segue Monteiro narrando que Maria “Disse que não sabia onde o esposo se encontrava. Levou um pontaço de faca, e continuou negando. Esfaquearam-na, uma segunda vez. Manteve a negação. Mais uma facada, e outra negativa. Sentindo que nada arrancariam daquela mãe e esposa, degolaram-na ali mesmo. No próprio local do martírio foi sepultada por mãos caridosas” (Idem, p. 82). Seu túmulo permaneceu no local até a década de 1950, quando, em função das reformas das vias urbanas, foi removido.


A “santificação” de Maria Pequena

Imediatamente após a morte, segundo os registros, teriam iniciado práticas de devoção e deferência à Maria Trindade, que então passa a ser conhecida como Maria Pequena. Considerando seu carisma anterior à morte derivado de sua pretensa vidência e diálogo com Nossa Senhora, imaginamos que a morte violenta só ampliou a fama desta mulher. Enfrentando soldados visando defender sua família e demais envolvidos com o legalismo, Maria Trindade evidenciou coragem, força e determinação. Segundo Reis, Maria Pequena “foi mártir de sua fé cristã, do seu amor filial e conjugal e ainda de sua inabalável crença republicana” (REIS, O Nacional, 01 de junho de 1955, p. 02). Vemos aqui acionadas várias motrizes de deferência à vida e a memória da “vidente”. O autor, responsável pela redação de um “livro histórico, épico, humorístico e lírico, com um fundo religioso” (Idem), dá importantes vínculos que são associados à “mártir” que não poderiam ser olvidados.

Inicialmente, Reis destaca sua fé cristã. Não á toa o próprio autor menciona no mesmo artigo que Maria Pequena falava com Nossa Senhora. Considerando a força do catolicismo na história estadual e regional, tal vínculo traz legitimidade a esta mestiça que, de casa, traria uma cultura diversa aos ideais “cristãos civilizacionais” por ter na mãe uma “natural desta terra”. O catolicismo, naquele contexto, redimiria assim como tornaria possível a inserção de todos no espectro salvífico e civilizacional católico e brasileiro, visto que até 1889 , quando da instauração da República, o vínculo à Igreja Católica é que tornava possível não só o acesso aos bens salvíficos mas também a cargos, direitos e mesmo cidadania. Ser cristão significava estar inserido nos ditames do progresso e do país[5].

Esta referência tornava a imagem de “bugrinha” mais “palatável” ante a sociedade passofundense, especialmente ao tornar-se esposa de um tenente, de um representante do poder militar estatal nessas plagas do Planalto Médio. Junto a isso, seu vínculo católico é articulado com a figura de Nossa Senhora, a intercessora principal entre os homens e Deus, entre os homens e seu filho. Um vínculo direto a Nossa Senhora legaria a Maria Trindade a conexão direta com o sagrado pela via preferencial, pela via maternal. Considerar Maria como mártir da fé cristã, como Reis o fez, imaginamos, articula também à sua morte a defesa da religião, a defesa do status quo e a defesa do que fora considerado um dos pilares da identidade brasileira então a constituir-se.

Todavia, não fora somente o vínculo cristão que marcou a vida de Maria Trindade. Para Reis ela era também vidente, alguém que vê, um ser com capacidade de prever, de antecipar os acontecimentos e, por isso, alguém digno de admiração e, porque não, de temor. Este dom a teria tornado conhecida e reconhecida. Considerando que também pudesse conhecer seu destino, Maria teria sido ainda mais digna de honras por não escapar de tão trágico fim, de proteger os seus e, com isso, a peleia republicana. Neste sentido é que entendemos a deferência de Reis ao considerar Maria Pequena mártir republicana.

Sua degola instigou a construção de seu túmulo, significativamente na região em que fora assassinada. Tal situação constituiu tanto um lugar sagrado (lugar de veneração), quanto um objeto sagrado (a própria morta), que passa a ser reverenciada diariamente recebendo flores, velas e, claro, pedidos que foram pretensamente atendidos, consolidando sua imagem de “santa popular”, capaz de realizar pedidos e milagres.

Segundo Vauchez, o processo de santificação de um personagem incute na configuração de um ritual que pouco a pouco vai dissociando a imagem do personagem vivo (no caso, de Maria Trindade) de seus vínculos com homens-mulheres comuns (VAUCHEZ, 1985, p. 290). Suas características ordinárias são diminuídas e mesmo silenciadas – vida sexual, dívidas, características ruins, conflitos, etc. – em razão da ascendente consideração de seus atributos – bondade, caridade, vidência, mediação, contato com o sagrado, modelo de virtude, etc. O santo, após ser constituído como tal, põe seu poder a serviço do homem: “Os fiéis, e, em breve os devotos do santo, não se enganam: todos sabem que o homem de Deus é capaz de operar milagres e que praticamente não pode recusar-se a realizá-los” (Idem). Em busca de realizações concretas, os devotos de Maria Pequena prestam-lhe homenagens, mas também suplicam sua ajuda para resolver questões cotidianas de enfermidades, conflitos, miséria, tensões. Buscam apoio e milagres. Buscam amparo.

Uma das formas com que a devoção e crença em Maria Pequena nos mostrou sua efetividade ante os fiéis foi a constituição, ao redor de seu túmulo, de um cemitério de “anjinhos”, crianças falecidas antes dos sete anos que foram enterradas no “espaço sagrado” do cemitério, que ficou conhecido como Cemitério da Cruzinha. Ali se buscava proteção para as almas dos “inocentes” que seriam apoiados pela mãe mártir que defendeu seu próprio filho até a morte. Seu culto perdurou, se consolidou, pois tido como eficaz: “Maria Pequena é estimado por milhares de pessôas, que admiram a sua memória e acreditam nos seus milagres” (REIS, O Nacional, 01 de junho de 1955, p. 02).


As comemorações do centenário de Passo Fundo e o remodelamento urbano

São raros os vestígios da história de Maria Pequena, assim como são raras e/ou desconhecidas imagens de seu túmulo. Esta situação também se vincula as expressivas mudanças urbanas implementadas em Passo Fundo nos anos 1950, quando da preparação dos festejos dos cem anos de emancipação e da constituição de uma imagem citadina marcada pelo progresso que teria constituído o município como capital regional e que desembocaria num futuro próspero para todos[6]. Para tanto era necessário não só refletir sobre a história da cidade – um dos motes para a criação do Centro de Estudos Históricos de Passo Fundo (1954) - atual Instituto Histórico de Passo Fundo[7] -, mas também adequá-la ideologicamente ao perfil que se visava, ou seja, construir uma conexão entre passado, presente e futuro. Junto a isso, comissões foram montadas para dar conta da reordenação urbana, do calendário de festividades e da construção estrutural que desse conta da ampla agenda de eventos prevista.

Para além das narrativas produzidas sobre a cidade em seu processo histórico-social e da prospecção de um núcleo centralizador regional – Capital do Planalto – pensada e construída no período, houve a consideração de que também a própria cidade transmitisse tal discurso. Nesse sentido, o Plano Diretor de 1953[8] preconizava alterações modernizantes que dessem à cidade o “tom” de desenvolvimento e progresso vislumbrados como decisões políticas. Neste plano estava prevista a construção e urbanização de ruas, melhoramentos com calçamentos das vias públicas, reordenação de alguns traçados citadinos e, entre tantas situações, a remoção do Cemitério da Cruzinha em função do prolongamento da rua Coronel Chicuta e da construção de uma nova ponte de ligação sobre o Arroio Raquel (ver Figura 2).

Muitas obras eram necessárias à cidade e foram realizadas sem suscitar polêmicas, todavia, a remoção do túmulo da “santa” instigou mobilizações. Como personagem dessa situação vemos Gomercindo dos Reis, ora atuando como munícipe/cidadão, ora como representante dos familiares de Maria Pequena. De fato, sua consideração pela tradição e devoção à falecida foram imprescindíveis para que tenhamos registros da história e memória acerca de Maria Pequena, praticamente desconhecida pela população contemporânea de Passo Fundo. Ainda no Plano Diretor vemos uma imagem que nos intriga, inicialmente pela proximidade com um cemitério pequeno, em uma baixada, ao lado de uma casa de madeira. A imagem é cerca de outras que dão conta de moradias simples não identificadas em sua localização exata. A imagem nos remete ao Cemitério da Cruzinha (ver Figura 3), embora não tenhamos confirmação disso nem no documento, tampouco de moradores mais antigos da cidade. De todo modo, nos parece instigante ver que esta fotografia está impressa justamente no Plano Diretor que preconiza a melhoria viária e urbanística também da região da Vila Carmem. Até uma resposta efetiva sobre a questão, deixamos ao leitor a indagação e a imagem para que o esforço de identificação desta fotografia seja um dia realizada.

Figura 3- Imagem de casas populares - Plano Diretor de 1953

Fonte: Plano Diretor de Passo Fundo (1953) – Projeto Passo Fundo


A discussão sobre as alterações preconizadas pelo Plano Diretor para a região do Arroio Raquel só vão ser mencionadas na imprensa posteriormente. Em 27 de novembro de 1953 Gomercindo dos Reis publica notícia no jornal O Nacional indicando que no dia seguinte novamente uma romaria seria realizada pelos citadinos até o túmulo de Maria Pequena, “heroína legalista” e milagrosa, objeto de devoção popular. Sem qualquer menção a transladação de seus ossos, o texto apenas indica que o trabalho para a produção da obra em honra a santa estava em andamento (REIS, O Nacional, 27 de novembro de 1953, p. 02).

Diversa foi a reportagem publicada pouco depois, em janeiro de 1954, intitulada Será construída uma capela em honra a Maria Pequena. Nele o articulista apresenta o cenário de obras para a melhoria das condições da cidade e que tem no calçamento da rua Cel. Chicuta uma de suas atuais demandas, que, registra o autor, estaria sendo acolhida com satisfação pela população da região. Todavia, “as obras importarão em maiores lances, visto que meia quadra abaixo do local onde se encontram atualmente os trabalhos de calçamento, existe um regato, com uma ponte estreita sobre a rua e, no lado, o pequeno cemitério de Maria Pequena, objeto de devoção dos passofundenses”. Para o prosseguimento das obras será necessário refazer a ponte e remover o pequeno cemitério que fica em plena rua, segundo a informação publicada (O NACIONAL, O Nacional, 05 de janeiro de 1954, p. 04).

A transladação de cemitérios dos centros das cidades para áreas afastadas foi uma marca da virada do século XIX para o XX, tendo sido impulsionada tanto pelas questões de urbanidade quanto de salubridade. Nesse ínterim, foi inaugurado o Cemitério da Vera Cruz em 1º. de janeiro de 1902 e que durante as primeiras décadas de funcionamento foi acolhendo em seu espaço os restos mortais de cemitérios da cidade que foram então desativados. Esta situação não havia até então abarcado a transladação dos ossos de Maria Pequena e dos “anjinhos”, todavia, nos anos 1950 a situação tornou-se insustentável visto as determinações do novo Plano Diretor. Assim, a administração municipal faria este trabalho, que não seria em nada ordinário. Segundo a reportagem jornalística, “Não se poderá fazer uma transladação pura e simples para um dos cemitérios da cidade. Não. Isso porque Maria Pequena é objeto de culto de parte das pessoas humildes, que veneram sua memória, considerada milagrosa, acendendo velas todas as noites e cercando o cemiteriozinho de todos os cuidados e atenções”, e segue, “Profanar os restos de Maria Pequena, lançando-os numa tumba qualquer, num dos cemitérios da cidade, causaria espécie entre o bom povo daquelas redondezas” (O NACIONAL, O Nacional, 05 de janeiro de 1954, p. 04).

Visando chegar a bom termo ante a singular realidade da situação o vereador Angelino Rafael Jacini teria estabelecido diálogo com o sr. Floriano Schercher/Schroecker/ Schorcher (o nome sofre expressivas variações a cada menção) acerca da doação de parte de seu terreno para a construção de uma capela próxima ao local original. O articulista registra o sucesso dessa tratativa que consagrará um espaço novo para os restos mortais a serem retirados futuramente. Findando o texto o autor destaca dados da vida e morte de Maria Pequena e destaca: “Seu martírio calou no espírito do povo que, desde então, venera a memória de Maria Pequena, como uma santa protetora” (O NACIONAL, O Nacional, 05 de janeiro de 1954, p. 04).

O trabalho de remoção dos ossos foi realizado em maio de 1955 sob o olhar atento de muitos devotos, repórteres e personalidades, como Gomercindo dos Reis que narrou os fatos: “Era grande a expectativa das pessôas que desejavam ver os restos mortais da milagrosa, os quais estavam colocados dentro de uma carneira com paredes de tijolos (...) Apesar de transcorridos 62 anos de seu falecimento, foram retirados diversos ossos em perfeito estado, como gambia, antebraço, vértebras, partes do crânio e quatro dentes perfeitos”. (REIS, O Nacional, 05 de janeiro de 1954, p. 02). Os restos mortais de Maria Pequena e dos anjinhos foram inseridos em uma pequena urna e encaminhados até a catedral para ali permanecerem até ser construída a capela e serem ali depositados seus ossos de modo definitivo. Anunciava-se que tal evento se daria no aniversário de morte da “santa”, em 28 de novembro quando então “A memória de Maria Pequena será reverenciada pelos seus crentes, admiradores e tradicionalistas de Passo Fundo” (Idem). Ideal instigante, derivado da expectativa da ereção da capela que deveria ocorrer, porém, o futuro se mostrou diverso do prospectado.


Uma “santa” sem capela – a segunda e derradeira morte de Maria Pequena

Transladados os restos mortais de Maria Pequena para a nova diocese de Passo Fundo, instituída em 1951 após décadas de trabalho intenso e negociações, a situação do culto à “santa” se modificou profundamente. O espaço da catedral em 1954 ainda em construção e finalização e seu acesso não era livre em todos os horários e momentos. Os devotos então ficaram literalmente distanciados de seu objeto de culto. Nesse sentido, nos são caras as considerações de Andrade acerca da santidade em sua relação cotidiana com os fiéis: “O homem religioso deseja viver o mais perto possível do sagrado. Ele sente necessidade do sagrado no seu dia-a-dia e, como Deus, o Ser supremo está distante, “afastado”, o homem procura experiências religiosas mais “concretas”. Ao substituir a própria divindade, ao deixar de ser um intermediário, o santo pode realizar a sua manifestação máxima: o milagre” (ANDRADE, 2008, p. 253). Embora a memória de Maria Pequena fosse lembrada pela população, um local de devoção que possibilitasse proximidade, intimidade, um espaço sagrado de culto de fato não existia e este distanciamento, acreditamos, foi imprescindível para que a força das crenças em seus milagres fosse minorando.

Ao instituir-se uma diocese local, o controle e a disciplina eclesial e laica foram ainda mais visadas. De tal modo que não nos parece fortuito o interesse em recolher os vestígios de Maria Pequena à catedral – símbolo mor do poderio regional da Igreja local[9] -, mesmo que de forma passageira, como era o intento inicial. O mesmo processo é visto por todo o estado e mesmo país e também se deu com a Romaria de São Miguel, como evidenciam estudos de caso[10]. Ainda há que se rememorar que o combate ao denominado “catolicismo popular”, devocional e pouco ritual, ainda estava vigoroso e mobilizava esforços de religiosos desejosos de separar práticas tidas como errôneas do “verdadeiro” catolicismo. Também Guggiana reflete sobre a situação pouco ordinária da transladação dos restos de Maria Pequena à catedral, ao apontar: “À primeira vista caracteriza uma admissão da Igreja, não quanto a santidade de Maria Pequena, mas quanto à sua importância no ambiente religioso da comunidade popular. Sob outro foco, eliminando seu culto, confinando-o num local sob seu controle e que não permitia visitações, colocação de adereços, agradecimentos a graças recebidas, atitudes comuns nesses casos” (GUGGIANA, 2012). A devoção a “santos” não reconhecidos pelos trâmites da Igreja Católica eram elencados nessa categoria como forma de diferenciação e mesmo de crítica aos procedimentos fluidos, dinâmicos e compósitos vivenciados pelos fiéis, longe da batuta institucional. Como bem destacou Andrade, “Uma religião não será percebida enquanto “popular” senão quando uma religião “oficial” a declara ultrapassada e não legítima” (ANDRADE, 2008, p. 238).

Para além do exposto, há que mencionar que o destino efetivo da ossada ainda é motivo de controvérsia, situação já exposta por vários analistas desse caso. Considerando o apreço do catolicismo com o controle e os registros em geral diários das atividades em seus vários espaços de atuação, soa muito estranho esta recorrência de falta de informações precisas sobre o paradeiro da urna. Pautando-se em memórias de um antigo ex-padre – sr. Jacob Stein, em diálogo com Heleno e Marco Antônio Damian - há indícios da localização sob o antigo altar-mor da catedral, todavia, a falta de documentação do processo é absolutamente questionável e estimulante.

Finalizamos estas considerações retomando outras questões que nos são instigantes e que foram expressas textualmente por Monteiro em diálogo com Guggiana. Para além de questões religiosas, a devoção a mestiça e pobre Maria Pequena afrontaria também as lideranças republicanas passofundenses, “tanto é verdade que alguns faziam passar a idéia de que ela era uma prostituta, o que não era verdade”. Segue Monteiro, “A ´elite´ republicana era formada por descendentes de homens que massacraram os índios para tomarem suas terras. Tanto que o primeiro aldeamento (depois reserva) indígena do Rio Grande do Sul (Nonoai) surgiu no município de Passo Fundo. Uma ´bugrinha´, uma ´china´, filha de branco e índia, é degolada e transformada em santa popular. E se a reunião em torno dessa ´bugrinha´ se transforma em um movimento de contestação à ´elite´. Enquanto os ´capitães´, ´majores´, e ´coronéis´ republicanos enciumados de suas mulheres mandaram degolar o próprio Padre Ramos, Maria Pequena era santificada pelo povo” (MONTEIRO, Apud GUGGIANA, 2012).

As marcas das polarizações sociais, econômicas, políticas e culturais em Passo Fundo têm longa data. Em vários momentos de sua história a exacerbação das mesmas constitui-se em vetor de conflitos que extrapolam a realidade local e intervém na vida social e cotidiana. Tais marcas, entretanto, não se desfazem ao restabelecerem-se as situações tidas como normais. O cotidiano mantém muito dessa polarização como um dos instrumentos culturais de leitura de mundo e de vetor de ação neste mundo que ordenam o pensar e o agir da população local. Com a história de Maria Pequena, ainda permeada por conflitos de memórias dissonantes ante sua vida, morte e dons, vemos a mobilização desse perfil. Para além dessas dicotomias que mais prejudicam do que auxiliam a compreensão da riqueza cultural citadina, vemos a importância sociocultural e política de uma devoção estabelecida pela população local nos anos atribulados de virada do século XIX para o século XX – atribulações essas que certamente em muito contribuíram para a busca de intermediação e consolo através de Maria Pequena, a “bugra, índia, pobre, mas nossa, vitimada por facínoras à beira de um riacho” (GUGGIANA, 2012).

Anos depois outra morte trágica irá mobilizar a população em devoção a uma nova “santinha” de Passo Fundo. O atropelamento da menina Maria Elizabeth de Oliveira em 28 de novembro de 1965, acontecimento este que teria sido previsto pela mesma, produziu uma imensidão de fiéis que ano a ano aumenta. Diante de tão intenso e crescente culto, um processo oficial pela beatificação de Maria Elizabeth foi iniciado e os rituais relacionados a homenagear a “santinha” são mediados por representantes religiosos. Perdeu-se uma santa “atropelada” pelas odes ao progresso, modernização e desenvolvimento de Passo Fundo; anos depois se ganhou uma nova santa “vidente” vitimada pelo trânsito nas remodeladas e calçadas vias da cidade – ironia como diria o pesquisador Diego Dal Bosco Almeida??!! De fato o dia 28 de novembro continua sendo mobilizador de crenças, de práticas devocionais, de agradecimentos por graças alcançadas e de novos pedidos de auxílio, proteção, bênçãos.


REFERÊNCIAS

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[1] Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Coordenadora do Núcleo de Estudos de Memória e Cultura (NEMEC/PPGH) e do Grupo de Trabalho de História das Religiões e Religiosidades - Rio Grande do Sul (GTHRR/RS). Email: gizele@upf.br

[2] Trabalhos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa História das Religiões e Religiosidades: Possibilidades de pesquisa, que reúne graduandos e pós-graduandos da UPF.

[3] Ver: FERREIRA, 1998; MONTEIRO, 2006; RECKZIEGEL, 2007.

[4] Ver: SILVA, 2013.

[5] Sobre o catolicismo no Rio Grande do Sul ver: DREHER, 2006; ISAIA, 1998 e 1996; RAMBO, 2002.

[6] Ver: KNACK, 2007 e 2010; WICKERT, 2010.

[7] Ver: NASCIMENTO, 2014.

[8] Ver: PAIVA, et al. 1953.

[9] Ver: ZANOTTO, 2011.

[10] Ver: ZANOTTO & GUIDOLIN, 2012.

Referências

  1. Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Coordenadora do Núcleo de Estudos de Memória e Cultura (NEMEC/PPGH) e do Grupo de Trabalho de História das Religiões e Religiosidades - Rio Grande do Sul (GTHRR/RS). Email: gizele@upf.br