Minha História do Pulador

From ProjetoPF
Jump to navigation Jump to search

Minha História do Pulador

Em 30/04/2006, por Lindolfo Kurtz


Minha História do Pulador

LINDOLFO KURTZ[1]


Na minha infância tínhamos o hábito - meu pai e eu – de fazer longas caminhadas, aos domingos, nos matos que naqueles tempos circundavam a cidade. Apenas em dias de chuva deixávamos de fazer o passeio, o que para mim era um desgosto.

Com um bornal abastecido de galinha na farofa, rapadura e biscoito, além do guarda-chuva, bem cedo, saíamos e passávamos o dia colhendo ervas medicinais, que meu pai conhecia bem, e frutas silvestres; balançando-nos em cipós, vendo e ouvindo pássaros, tomando banho no arroio de águas límpidas e voltando para casa à noitinha, cansados, mas felizes. Esses passeios deram- me resistência física às caminhadas que até hoje pratico.

Certo sábado, meu pai me disse que no dia seguinte iríamos a um lugar muito importante. Saímos ao clarear do dia e horas depois chegamos numa coxilha, o que me pareceu estranho, já que nossos passeios eram invariavelmente em matos. Nesse local tinha uma laje de pedra avermelhada, implantada no solo, medindo mais de metro de altura por meio de largura, com inscrições gravadas, registrando que uma grande batalha ali se travara. Só pela fisionomia séria que meu pai demonstrava, naquele momento – ele que era normalmente brincalhão e risonho percebi que, realmente, ali havia acontecido algo muito grave. E meu pai disse-me que nesse local havia acontecido uma terrível batalha, confirmando a gravação na pedra. Em seguida fomos para outra coxilha, onde outra pedra idêntica registrava o acontecido.

A noitinha estávamos de volta à casa, cansados. Na verdade, eu não havia achado muito interessante esse passeio, pois criança não aprecia fatos históricos.

Passaram-se os anos e muito mais tarde fui trabalharem Carazinho, para onde ia às segundas-feiras, pelo trem que era chamado “passageiro” e, aos sábados à tarde, voltava para Passo Fundo pelo mesmo trem. Cada vez que passávamos por aquele local, de dentro do vagão, eu via aqueles marcos na solidão das coxilhas. Foi quando me veio a idéia de fazer alguma coisa pela sua preservação, pois assim como estavam seria fácil serem retirados.

A esse tempo praticamente era desconhecida a Batalha do Pulador, pois mesmo nos colégios, nas comemorações do aniversário de Passo Fundo, enfim, na história de nossa terra, pouco difundida, nada se falava nem se conhecia a esse respeito. Apenas alguns moradores mais antigos ouviram falar do ocorrido, sem conhecer melhor os fatos. O Instituto Histórico e Geográfico de Passo Fundo tinha integrantes que conheciam a história desse importante combate, mas não era divulgado para a coletividade. Apenas na obra de Antonino Xavier, "ANNAES DO MUNICÍPIO DE PASSO FUNDO", havia registro desse combate, mas sua obra, embora valiosa, não era difundida, nem a coletividade tinha interesse em conhecer a história de sua terra, como tem hoje, graças, em grande parte, ao curso de História da UPF.

Estive no Pulador muitas vezes, tirando fotografias dos marcos, bem como das ruínas da sede da fazenda de Antônio Melo, em cujas terras ocorreu o sangrento episódio. Nas primeiras fotos, a ruína ainda tinha a maior parte do telhado e todas as paredes ainda em pé, porém, tudo o que era de madeira - assoalho, forro e aberturas - não mais existiam. Foi numa dessas oportunidades que verifiquei, nas paredes internas, amareladas pelo tempo, muitíssimas manchas escuras, que presumi serem de sangue pois aquela casa serviu de improvisa de hospital (ou enfermaria), para atendimento dos feridos da força republicana. Quando verifiquei, em uma das paredes o sinal de uma mão ensangüentada que se apoiou nela e escorregou para baixo deixando nítidos sinais dos dedos em sangüentados, minha suposição confirmou-se. E quando levei um médico ao local, ele me esclareceu que realmente eram marcas de sangue que penetrou no; poros da parede e, em contato com o oxigênio do ar, oxidou o ferro contido no sangue. Assim, posso dizer que pus minha mão no sangue dos combatentes, quase um século depois do triste acontecimento.

Em várias oportunidades voltei àquele local, tirando fotografias, até que um dia encontrei as ruínas sem telhado, e, poucos anos depois, já não existiam, derrubadas que foram pelo novo proprietário das terras, que colocou os escombros em uma barroca, sem se dar conta de seu valor histórico.

O que mais me preocupou foi a informação que me passou um peão da granja. Contou ele que o gerente havia dito várias vezes não gostar daquele marco, situado a uns duzentos metros para dentro da propriedade e que qualquer dia mandaria tirar e jogar dentro da barroca.

Preocupado com isso, e sem saber o que fazer para preservar o marco, dirigi-me ao "O NACIONAL", naquele tempo na Avenida Brasil, explicando a situação ao redator da época, o jornalista Ivaldino Tasca. Este fez publicar, na edição seguinte do jornal, um alerta a respeito da ameaça que pairava sobre o marco.

No dia seguinte ao da edição, apareceu o gerente da granja, com um exemplar na mão, declarando que sua intenção não era destruir o marco, mas sim colocá-lo para o lado de fora da cerca. Alguns dias depois fui conferir e, realmente, o marco havia sido retirado de seu lugar original e colocado fora da cerca, junto à estrada, o que aumentou o risco de desaparecer.

Em junho de 1981, procurei o prefeito, Dr. Firmino Duro, e lhe informei a respeito do risco que corria esse marco histórico, tendo ele se interessado muito pelo assunto, tanto que, de imediato, me convidou para levá-lo ao local. Em chegando aos marcos, ele leu as inscrições, e, vendo que estávamos no dia 27 de junho, perguntou-me se eu o procurara nesse dia por ser o aniversário da batalha. Respondi que foi coincidência, porquanto eu nem havia prestado atenção ao dia em que nos encontrávamos.

Embora já estivesse concluído o programa de comemoração da Semana do Município, a ser festejada em agosto, pediu-me ainda o prefeito que eu fizesse um plano rápido e econômico, para melhorar a situação dos marcos, e inserir uma solenidade nos referidos locais. Na mesma oportunidade, visitamos o senhor Victor Lacorte, proprietário da gleba leste, onde se situa o marco referente à posição do exército revolucionário, tendo o Dr. Firmino Duro manifestado interesse que o pequeno espaço, de 10m x 10m, fosse transferido para o Município, a fim de garantir a permanência dele sem contestações futuras. O sr. Victor Lacorte declarou que aquele espaço, a partir dali, já era do Município, sem necessidade de qualquer documento, que bastava a sua palavra e que seus filhos já sabiam disso.

Efetivamente, ao chegar a Semana do Município, o modesto, mas útil, melhoramento, fora concluído, conforme projeto que fiz, inclusive o cercamento em torno dos marcos. Realizou-se então uma bela cerimônia cívica, com a presença de autoridades, vereadores, professores e cidadãos em geral, inclusive moradores do distrito de Pulador, que eu já havia convidado pessoalmente alguns dias antes.

A solenidade constou de uma visita ao marco oeste, local onde se situaram os combatentes legalistas, retornando ao marco leste, onde se posicionou o exército revolucionário. Nessa oportunidade, a convite, usei da palavra, tecendo comentários sobre o trágico acontecimento. Momento muito emocionante foi quando o corneteiro da Brigada Militar tocou o "Silêncio", com aquele som triste do clarim ecoando pelas coxilhas e canhadas. Era o dia 6 de agosto de 1981.

No governo do prefeito Fernando Machado Carrion, com apoio da prefeitura e lojas maçônicas, foram construídos capiteis para a proteção dos dois marcos. Fez-se uma bela cerimônia de inauguração, inclusive uma simulação da batalha, com aproximadamente 200 brigadianos usando o fardamento da época, trazidos de Porto Alegre especialmente para o evento. Os revolucionários foram representados por gaúchos da região, armados de garruchas e lanças. Foram disparados tiros de festim, o que causou susto a muitos dos presentes.

Na administração do prefeito Osvaldo Gomes, foi realizada, no local, grandiosa cerimônia, comemorando os cem anos da batalha, oportunidade em que foram descerradas placas relativas à data. Na oportunidade, a convite da organizadora da cerimônia, secretária Lourdes Canelles, usei da palavra, tecendo considerações relativas ao fato histórico ali ocorrido.

Informações complementares:

- As pedras de arenito, com que foram feitos os marcos, não existem em nossa região. Devem ter sido trazidas da região do Vale do Sinos ou de Santa Rosa, no noroeste do Estado.

- Os dizeres foram gravados em 1898, por Thomaz Canfield, e foram ali colocados em 24 de fevereiro de 1900, em cerimônia da qual existe minuciosa ata.

- Além dos dizeres relativos à batalha, os marcos têm também gravados a cruz cristã e, ao lado, símbolos maçônicos. Não se sabe quem ou qual a instituição que os instalou.

- No cinqüentenário da batalha, em 1944, foi realizada grande cerimônia, inclusive com trem especial levando populares ao local. Daí em diante o fato caiu no esquecimento.

- O grande bosque de eucaliptos hoje existente entre os locais dos dois marcos não existia na época da Revolução. Foi plantado na década de 1970.

- Não foi inaugurado o uso da metralhadora durante a batalha. Ela já tinha sido usada, pelo menos, no cerco da Lapa, no Paraná, vários meses antes.

- Há historiadores que denominam a Batalha do Pulador como Batalha (ou combate) do Umbu. Trata-se de uma confusão. O combate do Umbu ocorreu em 16 de janeiro de 1894.0 engano ocorre porque nesse local, o Umbu, pouco adiante da capela de São Miguel, o exército revolucionário defrontou-se com uma patrulha legalista, sendo trocados alguns tiros. Dita patrulha recuou, atraindo os revolucionários até o local, no Pulador, onde ocorreu a grande batalha.

- O senador José Gomes Pinheiro Machado, organizador da poderosa Divisão do Norte, nunca esteve combatendo em Passo Fundo. Quem esteve foi seu irmão, Salvador Pinheiro Machado, que comandava um regimento legalista e governou o Estado entre 1917 e 1918.

- Manoel Nascimento Vargas, pai de Getúlio, nunca esteve combatendo no Pulador. Parece-me que a confusão se origina do fato de ter nascido no Pulador, e ter sido, aos dezoito anos, voluntário na Guerra do Paraguai, de onde nunca mais voltou.

- Em 1986 fui procurado pelo Dr. Manoel Vargas, o Maneco, filho de Getúlio Vargas. Pediu-me que o levasse ao Pulador, pois queria conhecer o local da mais violenta batalha da Revolução, bem como o povoado onde nasceu o avô, Manoel do Nascimento, porquanto estava escrevendo sua biografia. Tinha esperança de encontrar a casa em que nasceu o avô, o que dificilmente poderia ocorrer. Consultados diversos moradores, ninguém soube informar nada. Quanto ao combate, o Dr. Maneco me assegurou que seu avô nunca esteve combatendo aqui.

- Quanto à denominação dessa batalha, os historiadores referem-se a ela como Batalha (ou combate) do Pulador, Combate do Campo dos Mello ou, ainda, Batalha Campal de Passo Fundo.

- Há outro fator relacionado com o local da batalha, que envolve aspectos transcendentais dos quais não tenho entendimento, mas que mais tarde pretendo abordar.

Sinto-me feliz em haver contribuído com o resgate de um acontecimento tão grave e tão importante (mil vezes não tivesse ocorrido!) para a história de minha terra.

Vejo com muita satisfação que hoje são feitas pesquisas, palestras, visitas turísticas, desfile de cavaleiros em simulação de batalha. Enfim, acredito que o acontecido, embora trágico, encontra-se agora inserido na história de Passo Fundo.

Referências

  1. Lindolfo Kurtz, atualmente residindo em Porto Alegre, é sócio correspondente da Academia Passo-Fundense de Letras, da qual foi membro titular por vários anos