Duas grandes emoções na Jornada de Literatura

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Duas grandes emoções na Jornada de Literatura

Em 31/12/2003, por Ana Carolina Martins da Silva


Duas grandes emoções na Jornada de Literatura[1]


ANA CAROLINA MARTINS DA SILVA


Além de contato com a grande literatura, a lOª Jornada Nacional de Literatura, promovida pela UPF e pela Prefeitura Municipal de Passo Fundo, cujo tema deste ano foi: Vozes do terceiro milênio: a arte da inclusão, proporcionou-nos momentos de grande emoção. Para começar, no dia 26/08, na abertura, tivemos pela primeira vez a presença de um Ministro de Estado na Jornada: O Ministro da Educação, Dr. Cristóvam Buarque, falou o que queríamos ouvir: melhora na educação, melhora na qualificação dos professores, inclusão e mais inclusão. Foi bom ouvi-lo, dissipou um pouco aquelas críticas maldosas que têm cobrado 500 anos em um, do Presidente Lula.


Emoção I

Ainda neste dia de abertura, tivemos a palestra com Roger Chartier abordando "A leitura no contexto do século XXI". Ele comentou aspectos gerais da origem do livro (enquanto objeto e enquanto valor), fez algumas considerações sobre os passos que a leitura tem percorrido: palavras em manuscritos, em impressos e em versão digital, ou seja, a influência da informática na mudança de hábitos de leitura. Além dessa visão histórica, citando datas e similares, ele citou o grande desafio que nos ronda, que é a inclusão das pessoas num mundo cultural globalizado, sem que percam sua identidade cultural própria. Ilustrou estes comentários com a questão do idioma. Segundo ele, mais de 50% do domínio da cultura digitalizada está no idioma inglês, mais especificamente, aos cuidados dos EUA. Isto é perigoso, pois, ao absorver a tecnologia e as informações, o leitor absorve também o modelo cultural de forma implícita. Sua palestra foi interrompida devido ao tempo, pois era dia de abertura e a solenidade se estendeu um pouco, mas, em síntese, a preocupação manifestada por ele foi esta. Já em sua palestra no II Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio, promovido pela Universidade de Passo Fundo, Brasil, e pela Universidade de Extremadura, Espanha, cujo tema foi "Mitos e Tradiciones Populares, lecturas abiertas para el siglo XXI", o pesquisador, considerado por muitos, como um dos maiores especialistas na história do livro e da leitura , atualmente Diretor de Estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, abordou o tema Mitos e Tradições populares, citando muitas passagens de Cervantes, no D. Quixote.

O estudioso francês comentou que a literatura não apenas conta, mas ela também julga. D. Quixote acusa Sancho de ignorância ao ouvir seus "causos", como se a Literatura escrita fosse a verdade oficial e a do povo, mentira. Ao passo que a do povo, em geral, é a legítima. Chartier ainda citou algumas contradições, no que tange à leitura, e fez reflexões sobre elas. A saber:

1. A construção de um novo público leitor. Segundo o pesquisador, assim como o aumento de leitores, o de leitura amplia a cosmovisão das pessoas, massifica o conteúdo, a informação. Como se o escrito matasse o oral. Ressaltou a importância de se separar o que é literatura e o que é mercado. Fez um passeio pela origem do livro e contou que, no princípio, a palavra viva era a verdadeira, a escrita era a corrupção disto. A boa literatura então deve transitar pela ficção sempre deixando uma margem para a pergunta: mas será que seria possível isto acontecer de verdade? Unindo o prazer de querer crer e a dúvida.

2. Legitimidade e falsidade na produção dos textos. Citou que alguns autores tentam escrever como o povo, mas usam metáforas e palavras que o povo jamais usaria, assim como fazem uso de valores que o povo não faria; ressaltando, portanto, a importância do original.

3. Contextualizar a literatura. Abordou a literatura como registro de seu tempo, sua estética, seu mundo. Ressaltou a importância de se contextualizar sempre a obra na sua própria época, para poder absorver com mais intensidade o seu conteúdo, inclusive, podendo assim verificar sua legitimidade.

Leitura obrigatória para nós, que ama¬mos as letras, Chartier vem respaldar uma tendência da maior parte das pesquisas em leitura e literatura: localizar a verdadeira identidade do povo, através de seu patrimônio cultural registrado em seus contos populares.

Para conhecer melhor Roger Chartier, busque, entre suas tantas obras:

1. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESp, 1999.

2. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.


Emoção II

À noite, primeira oportunidade em que o público da Jornada ficou absolutamente em silêncio, em muitos anos, Frei Betto falou sobre aspectos de inclusão social na América Latina, Fome Zero e sobre a importância da literatura como elemento de resistência e libertação do indivíduo e do povo. Acabou-se por concluir que ele realmente pode ser um homem santo, nos moldes que o mundo costuma proclamar. Sua fala de libertação e a favor dos pobres e sofredores de violência ficou entre a poesia e a fala sagrada. No dia seguinte, 27/08 , antes do debate sobre "Violência X Cidadania", Frei Betto foi novamente pontual e brilhante, nos moldes que já expus acima. Um aparte importante e justo, é comentar sobre Marcelino Freire (FREIRE, Marcelino. Angu de sangue. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000) que, como os outros autores, apresentou, ilustrando com sua obra, a literatura como testemunha e grande fonte de protesto e denúncia da violência, bem como de apoio à cidadania. Usando uma fala escrachada, como se apresenta em seus trabalhos, disse que fala assim porque denuncia coisas graves e tristes e que não achava certo ficar enfeitando o que é terrível. Leu um de seus contos e encantou a todos.

Porém, voltemos a Frei Betto. Para quem quer conhecê-lo melhor, bem como as suas idéias, pode começar por um livro chamado O vencedor (Frei BETTO. O Vencedor. São Paulo, Ática, 2003). Este, conta a história de um casal que, muito jovem, sem querer: acaba envolvendo-se no perigoso mundo do tráfico de drogas, como usuário, por algum tempo. Mais maduros, achando que tudo havia passado, ambos começam a ter uma vida sadia, mas o tempo vem cobrálos das atitudes passadas. O filho mais velho envolve-se com drogas e leva a família à ruína financeira e a um sofrimento intenso, embora, em paralelo, este transtorno os faça pessoas melhores, mais dedicadas umas às outras e, principalmente, os faz pessoas honestas.

A história de Frei Betto tem tudo para não dar certo como literatura. Traz cenas de seriado de TV, cenas de higb society bem a gosto das famosas novelas das oito e, para completar, um tema quase vulgarizado, posto que vende muito: as drogas.

"Do bolso interno do paletó, Lucânia puxa a carteira de couro italiano. Abre o zíper dourado e pinça um pequeno papel muito bem dobrado. Estende-o a Mário. Do outro bolso tira um caderninho e um lápis, risca o número 12 ao lado da letra M e escreve "13" "(... ) – Beleza, já me seguro bem esta noite - exclama, refazendo as dobras de papel. Guarda-o no bolso e muda de assunto. - E o nosso esquema, tudo na moita?" (pág. 10).

"No recreio do colégio Boston, Pedro aproxima-se de Clara.

- Onde posso descolar um baseado? ( ... )

- Sabe, o pipoqueiro que fica do outro lado da rua, junto à banca de jornais? Peça pipoca sem sal.

- E quanto é?

- Nada, o cara pirou. Deve ter plantação de maconha no fundo do quintal.

À saída, Pedro dirige-se ao pipoqueiro indicado.

- Tem pipoca sem sal?

- O homem estende-lhe o saquinho de pipoca e recebe dinheiro. Pedro come as pipocas e, no fundo, enroladas num plástico, encontra duas trouxinhas de maconha." (pág.59).

Mistura de chavões, esta obra poderia ser enquadrada como mais um texto comercial dedicado a este filão de consumidor chamado "escola", que usa os cotidianos de muitas famílias conflituadas para despertar seus alunos para o perigo das drogas, ou similares.

Seria fácil carimbá-lo como um livro paradidático, mais do que literário. Porém, ao nos reportarmos ao autor de "O Vencedor", tudo isto muda, pois Frei Betto é de verdade e da verdade. Nascido em Belo Horizonte, em 1944, estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia. Frade dominicano, é recebedor de diversos prêmios literários, assessor da Pastoral Operária e de movimentos populares, colabora com vários jornais e revistas. Atualmente é o coordenador do Programa Fome Zero do Governo do Brasil. Homem comprometido com as causas sociais, percebe-se que seu livro não é comercial, é sincero. Sua intenção é promover a discussão sobre as causas maiores dos problemas que afetam a sociedade brasileira e planetária, como um todo.

Lendo o texto com a consciência de que ele é para ser tido como arte e como ferramenta de transformação, este passa a ser extremamente emocionante, bem feito, bem construído. Temas como tráfico de drogas, dependência química, traumas psicológicos, carências afetivas, saem da realidade brasileira e adaptam-se perfeitamente à realidade internacional, universalizando a obra, através das experiências de Freud. A cocaína, principal fio condutor da história, acaba tendo um julgamento justo. Toda a história a acusa, mas Freud a defende: "Talvez possas imaginar o misto de apreensão, curiosidade e satisfação que sinto. Gravata branca, luvas brancas, e até camisa nova, um cuidadoso corte nos cabelos que restam, etc. Um pouco de cocaína para desatar-me a língua" (pág.1l5).

Com o crédito das palavras de Freud, age o principal criminoso: Mister Big.

"Prossigo em minha política de liberar a droga. Quero aplicar no ramo, vender arrogância paradisíaca em papel ates de seda, sob controle oficial, como ocorre a quem fabrica uísque no fundo do quintal. E os viciados não seriam mandados para a cadeia, e sim para as clínicas, como acontece aos alcoólatras. Para isso, conto com a venerável ajuda do doutor Freud" (pág. 156).

Loucura e ganância dominam o mundo de O Vencedor. Para Frei Betto, dominam ainda mais; a avidez pelo poder e pela ostentação. No livro deste homem santo, a coacína perde. Para vencê-Ia, o amor é o principal aliado. Também deixa entender que a vitória compreende: honestidade na polícia, no governo, bem como a solidariedade; fundamentais para o processo de reconstrução da sociedade e da família com paz, saúde e prosperidade.

Por Frei Betto, por Chartier, por Freire, por Nelly Novaes Coelho, por tantos outros escritores maravilhosos, pelas obras de arte, pela música, pelo teatro, pelos amigos, pelos colegas professores, encontrados pelos caminhos da lona santa da Jornada, preciso admitir: jamais seríamos os mesmos, sem ela; ou ainda, sem ela jamais seríamos os mesmos, nem os outros (novos) em que nos tornamos, a cada edição.


(Ana Carolina Martins da Silva é professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, infantil e infanto-juvenil. Mestre em Comunicação Social e oficineira / bonequeira de teatro de bonecos. Acadêmica da APL Cadeira nº 17, cujo patrono é Ernani Cuaragna Fornari, poeta, novelista, romancista e teatrólogo gaúcho, nascido em 1899 e falecido em 1964).


Obras de Ana Carolina


-           RbsING, Tania M.K. e SILVA, Ana Carolina Martins da. Práticas Leitoras para uma cibercivilização.- Passo Fundo: EDIUPF, 1999. Série Mundo da Leitura. VaI. I.

-           RbSING, Tania M.K. e SILVA, Ana Carolina Martins da. Práticas Leitoras para uma cibercivilização lI: 500 anos de Brasil: memórias que nossa consciência não escolheu. -Passo Fundo: EDIUPF, 2001. Série Mundo da Leitura. Vol. II.

-           SILVA, Ana Carolina Martins da. A VIOLÊNCIA no âmbito da série Vagalume In RbsING, Tania M.K. (ORO.) Da violência ao conto de fadas: o imaginário, meninos de rua, meninos de escola e adultos desescolarizados. -Passo Fundo: EDIUPF, 1999. Série Mundo da Leitura.

-           SILVA, Ana Carolina Martins da. Um ipê no coração. -Passo Fundo: Aldeia Sul,1996.

-           SILVA,Ana Carolina Martins da. Piedade: Ponte ou Muralha? -Bento Gonçalves: Grafite, 2001.

-           SILVA, Ana Carolina Martins da. Poesia do Brasil In Antologia (org) Ademir Antônio Bacca. -Bento Gonçalves: Grafite! Proyecto Cultural Sur: 2002.

-           SILVA, Ana Carolina Martins da. A Pedagogia do Teatro de Bonecos - um causo acontecido em Passo Fundo. -Passo Fundo: Aldeia Sul. (No prelo).

Referências

  1. Da revista Água da Fonte nº 0